A violência contra estrangeiros na África do Sul levanta muitas questões. Uma delas é moral com um desdobramento intelectual que desemboca na coerência, algo que constitui um grande desafio na nossa esfera pública. Quase todo o moçambicano que se indigna perante esta violência fá-lo com referência à ingratidão dos sul-africanos em relação ao apoio que eles receberam de Moçambique durante a sua luta pela civilização do seu próprio país. O que me parece caricato nesta indignação é que ela é também protagonizada por pessoas que são apoiantes da Renamo e do seu líder, os quais colaboraram com o regime do Apartheid e, por conseguinte, pelo menos teoricamente, prejudicaram a luta sul-africana pela liberdade. Estou interessado em saber como essas pessoas equacionam a sua indignação nos termos aqui sublinhados (ingratidão) com o seu apoio aos que prejudicaram a luta sul-africana.
Ao levantar esta questão não quero propor uma discussão sobre se a Renamo devia ter aceite a ajuda do Apartheid, se isso foi mau ou se por causa disso este partido seria ilegítimo. Essa é uma outra discussão que não interessa neste contexto. Nem quero levantar a questão de saber se a Frelimo fez bem, ou não, em apoiar o ANC. Estou apenas a levantar um problema de coerência, nomeadamente o problema de saber como conciliamos uma posição eminentemente moral sob o pano de fundo duma atitude que entra em contradição com essa posição. E nem quero dizer que, por isso, a indignação não seja legítima. Claro que é, e não depende das contradições de quem expressa indignação. Mas como se justifica? Só isso. É um pouco como eu condenar camponeses que atacam representantes dum Estado com o recurso ao argumento segundo o qual seriam ingratos, mas um Estado que, no passado, os ajudou a se libertarem de grandes latifundiários quando eu apoio, hoje, pessoas que nessa altura receberam ajuda desses latifundiários e, por causa disso, moralmente agiram contra esses mesmos camponeses. A questão não é que eu não me possa indignar hoje, mas sim como justifico essa indignação, isto é com recurso a que argumento moral. Ingratidão não pode ser.
Já agora, aproveito para levantar uma questão relacionada com esta. O recurso à violência na África do Sul pode ser manifestação da constatação, por parte de quem comete a violência, que a via legal na África do Sul se esgotou, sobretudo com esse sentimento de gratidão que os dirigentes têm lá em relação aos estrangeiros africanos. Se esse for o caso, como é que aqueles que defendem, em Moçambique, a legitimidade do uso da violência contra um Estado que é considerado como estando sob o controlo de interesses opostos aos interesses do povo injustiçado (apesar de a constituição prever a resolução pacífica de conflitos) condenam a violência dos sul-africanos?
Repito: não estou a levantar questões sobre os méritos individuais de apoiar a Renamo, o ANC, bater ou matar estrangeiros, atacar o Estado, etc. Nada disso. Levanto questões em torno da coerência argumentativa e como ela se manifesta ao nível moral. E digo porquê, já agora. Tenho a forte sensação de que muita contribuição para o debate de ideias não se apoia numa clarificação dos princípios que enformam os nossos posicionamentos. Isso contribui para que haja muita incoerência no debate nacional de ideias. Talvez a “xenofobia” na África do Sul sirva para alguma coisa, afinal. Ela pode nos ajudar a clarificarmos estas coisas. Ou não…
Outro que estragou tudo…
Refiro-me ao Presidente sul africano, Jacob Zuma, que na sua resposta à carta aberta de Mia Couto a dado passo escreve o seguinte:
"Recordou-me a hospitalidade e a generosidade que me foi dada pelos moçambicanos durante o meu exílio no seu lindo país. Estamos de acordo que beneficiamos imensamente da amizade e solidariedade internacionais durante a nossa luta contra o apartheid. Os nossos irmãos e as nossas irmãs no continente africano, em particular, partilharam os seus escassos recursos connosco. Muitos foram mortos por nos apoiarem na nossa luta pela liberdade. O ataque à Matola no seu lindo país constitui exemplo disso. É por esta razão que nós acolhemos de braços abertos os nossos irmãos e irmãs africanos que imigram à África do Sul legalmente…"
São duas coisas que me incomodam. Primeira: de toda a sua experiência em Moçambique Jacob Zuma só reteve a beleza do País? Mais nada? Não teria sido mais apropriado enaltecer outras qualidades do País neste contexto? O adjectivo “lindo” tem um tom condescendente intragável. Segunda: “é por esta razão que nós acolhemos de braços abertos os nossos irmãos e irmãs africanos que imigram à África do Sul… legalmente”. Só esses. Será que a pessoa que escreveu este texto tem consciência do alcance das suas palavras? Cada vez mais estou convencido de que o problema sul africano não é dos que cometem violência contra estrangeiros. É dos próprios dirigentes. Zuma não entende.
É claro que não é obrigado a aceitar todo o mundo. Mas limitar o acolhimento aos que entram “legalmente” é dar combustível aos violentos. Podia ter dito “é por esta razão que nós acolhemos de braços abertos os nossos irmãos e irmãs africanos que imigram à África do Sul. É importante, porém, que encontremos formas de regular a sua entrada para o bem da harmonia social”. Algo assim.
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