Nunca se pode pretender que um sistema jurídico esteja completo e se torne válido para sempre, excepto naquilo que os crentes acreditam tratar-se de livros sagrados, revelações divinas directas ou via profetas.
A Constituição e as leis fazem parte das criações humanas, duma sociedade num momento determinado e respondendo às preocupações legítimas da sociedade.
Veja-se o exemplo da Constituição Americana, uma das constituições escritas mais antigas existentes e verifiquem-se a quantas emendas já se submeteu desde a sua criação. Desde 1789 submeteram-se trinta e três propostas de emendas e vinte e sete viram-se aprovadas. Falamos dum período de pouco mais de dois séculos. Em França, já nos encontramos na V República criada em 1958, a Constituição aprovada sob De Gaulle já conheceu diversas alterações.
Em Moçambique, a Constituição aprovada no Tofo poucas semanas antes da independência conheceu diversas alterações, tal como a grande revisão aprovada em 1990.
Note-se que nas revisões após a entrada da RENAMO na Assembleia da República fizeram-se diversas emendas, todas aprovadas também com o voto da própria RENAMO e das oposições diversas que se sucederam até agora.
Houve iniciativas até da FRELIMO que não se aprovaram nem se promulgaram no curso das discussões.
Não existe tabu contra revisões. Requer-se sim que elas correspondam a lógicas correctas, que os momentos o exijam, que discussões bem amplas criem os consensos indispensáveis.
O jurista alemão Thomashausen há muito que se relaciona com a RENAMO, já bem antes dos Acordos de Roma em 1992. Conhece bem o leader da RENAMO e os sucessivos secretários-gerais que por lá passam, assim como os diversos dirigentes. O jurista alemão Thomashausen discordou das ideias do jurista moçambicano Gilles Cistac. Ambos próximos da RENAMO e do seu leader. Obviamente que a reflexão de Thomashausen me parece muito mais estruturada e lógica que a do malogrado Cistac.
Esteve Thomashausen ou está ainda ligado à Fundação Adenauer, uma organização da direita alemã há muito existente.
Presumo que ninguém venha a insinuar que André Thomashausen se deixou corromper pela FRELIMO ao considerar inconstitucionais e insensatas as propostas da RENAMO sobre regiões autónomas e províncias autárquicas. Isso provocaria um AVC colectivo a toda a direcção da Fundação Konrad Adenauer!
O princípio essencial da autarquia é o do governo pelos vizinhos, pelos moradores locais, um pouco como a gestão dum condomínio pelos seus proprietários. Trata-se de discutir, resolver e por vezes financeiramente contribuir para solucionar os problemas que se enfrentam.
Um absurdo procurar que entre Cuamba e Lupilichi, Nangade e Pemba, haja vizinhança, questões comuns a resolver.
Entre os moradores do Zimpeto e de Chamanculo os problemas mostram-se bem diferentes, por isso mesmo nas cidades, incluindo Maputo, a autarquia divide-se em bairros e estes em quarteirões.
Na localidade, no quarteirão e no bairro discute-se, propõe-se ao órgão local o que preocupa os moradores. Não há nem faz sentido uma província autárquica, absurdo.
Jogar com adjectivos para se acrescentar aos nomes província autónoma, província autárquica, não passa de um jogo infantil e insensato. Mutatis mutandis o exercício resume-se a uma brincadeira de palavras pouco sérias e sem significado real.
Mais séria a tentativa de retirar aos municípios poderes que detêm e pior ainda, declarar que as Assembleias Provinciais não se submetem às decisões da Assembleia da República. Vejamos alguns aspectos do projecto com a data de 16 de Março entregue pela Chefe da Bancada Parlamentar da RENAMO à Assembleia da República:
No número 1 do artigo 4 da dita proposta retiram-se aos municípios os poderes que já exercem e transferem estas capacidades para as ditas autarquias provinciais. Repete-se o arrazoado no número 1 do artigo 28. Declara-se pois acabar com os municípios em termos práticos, ficarem a existir só em nome! Absurdo. Recuo no já feito e na tradição criada. Em 1998 havia 22 municípios, hoje mais de 53 reconhece o citado documento da RENAMO.
No número 2 do artigo 15 da dita proposta afirma-se taxativamente: «Não há nenhuma relação de hierarquia, subordinação ou dependência entre as assembleias de província e a Assembleia da República.» Conclusão, a Assembleia da República como órgão de soberania e o mais alto órgão legislativo torna-se uma ficção e a assembleia de província torna-se um órgão de soberania!
Nos Estados Unidos, no Brasil, na Alemanha Federal, na Índia, na África do Sul, para citar países com estados federados, o Congresso, ou órgão com outra denominação equivalente, prevalece sobre as assembleias dos estados, as assembleias dos estados subordinam-se ao órgão de soberania e não podem de modo algum assumir-se como órgãos de soberania.
Se estes exemplos não bastam para considerarmos que à margem das normas constitucionais estamos a alterar a Constituição, há então que reconhecer que não existe lógica e só tolice!
Toda a administração do Estado, em termos práticos desaparece, a começar pelo governador até ao administrador do distrito ou localidade. Deixam de existir os municípios e os seus poderes. Deixa de haver a governação pelos moradores.
Tudo se submete à tal Assembleia Provincial, Conselho Provincial, Presidente do Conselho Provincial criados para agradar quem sempre ameaça o país e que mata, destrói, queima. Noutros locais o homem considerar-se-ia um terrorista internacional. TPI acorde!
Finalmente, cessa a celeuma em torno do Presidente Guebuza. Soube a tempo e horas transmitir a presidência do Partido a Filipe J. Nyusi, apenas dois meses desde que este tomou posse como Chefe do Estado. Celeuma em muito alimentada por fofoquice e especulação. Guebuza cumpriu o que devia fazer. Tal como Chissano, torna-se Presidente Honorário do Partido, e não membro da Comissão Política, Pemba apenas o elegeu Presidente. Creio bem que em África e fora do continente muitas vezes o solicitarão para trazer o seu bom conselho e experiência. Bom discurso de renúncia e fraco na abertura, intimidatório. A seu tempo e a frio comentarei.
Por favor senhores jornalistas, não escrevam que Guebuza resignou, péssima tradução do inglês. Ele renunciou, demitiu-se, sim, vejam no dicionário o que significa em português resignar.
Um abraço aos que sabem fazer.
Sérgio Vieira
P.S. Viva o 7 de Abril! Viva a memória de Josina e de todas as mulheres que já partiram e vivem e se batem pela igualdade e dignidade da mulher. Viva às mães, mesmo se solteiras, viva as trabalhadoras, para todas o meu beijo de solidariedade e respeito.
R.P.S. Contrariamente às fofocas que apareceram nuns facebooks, em nenhum momento o acidente de viação que sofri faz umas três semanas foi provocado por uma viatura que me perseguia. Ninguém me perseguiu, salvo um grande buraco não assinalado na rua. Igualmente ninguém espancou um bom amigo meu.
Ao fim da fofoquice o meu abraço,
SV
O PAÍS – 22.04.2015
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