16 abril 2015
Luanda – Integra da declaração de voto da Deputada Mihaela Webba sobre a proposta de lei do registo eleitoral.
Fonte: Club-k.net
O objectivo desta Declaração é explicar aos cidadãos que represento, filiados ou não em partidos políticos, os fundamentos do meu voto discordante da maioria enquanto membro da Comissão dos Assuntos Constitucionais e Jurídicos da Assembleia Nacional.
As Comissões de Trabalho Especializadas são órgãos colegiais internosda Assembleia Nacional, que têm um importante papel parlamentar. São elas que preparam, discutem, alteram e votam na especialidade as propostas de diplomas antes de serem aprovadas em plenário.
Nos termos do artigo 68.o do Regimento da Assembleia Nacional, compete às Comissões de Trabalho Especializadasapreciar as propostas de lei, os projectos de lei, os projectos de resoluções, as propostas de alteração e os tratados submetidos à Assembleia Nacional, produzir os correspondentes relatórios e pareceres e, no fim, “votar, na especialidade”, os textos aprovados, na generalidade, pelo Plenário, nos termos e com os limites estabelecidos pelo seu Regimento.
A democracia não consagra apenas o princípio da maioria. Consagra também o princípio da fundamentação do voto de vencido. Ela prevê que os membros do órgão colegial que ficam vencidos expressem na acta o seu voto de vencido e as razões que o justifiquem. Quando se trate de pareceres a dar a outros órgãos, as deliberações são sempre acompanhadas das declarações de voto apresentadas. O registo na acta e nos pareceres do voto vencido isenta o emissor deste da responsabilidade eventual resultante da deliberação tomada. Infelizmente, a maioria na Assembleia Nacional não entende isso e, por isso, não permite declarações de voto vencido em sede das comissões de trabalho especializadas.
Votei vencida porque:
1) Por via desta lei, o Presidente José Eduardo dos Santos pretende atribuir a si próprio a competência de realizar o registo eleitoral, que a Constituição já atribui a uma outra entidade, a Administração eleitoral. O princípio da reserva da constituição, consagrado no art. 117.o, significa que nenhum outro diploma, senão a Constituição, pode atribuir competências ao Presidente da República. Os deputados não têm, por isso, mandato para aprovar uma lei ordinária que atribui competências ao Presidente da República. “As competências do Presidente da República são as definidas pela presente Constituição” (art. 117.o da CRA). E estas estão definidas nos artigos 118.o a 124.o da CRA. Em nenhum lugar a Constituição atribui ao PR a competência de realizar o registo eleitoral. Seja como Chefe de Estado, Titular do poder executivo ou Comandante em Chefe das FAA. A única competência em matéria eleitoral que a Constituição atribui ao Presidente da República é a de convocar as eleições. O Titular do poder executivo não tem nenhuma competência em matéria eleitoral.
2) Todos os grupos parlamentares menos um partilham dessa opinião e manifestaram, durante os debates e a votação, a vontade patriótica de cumprir e defender a Constituição.
3) Os juristas que vieram ao Parlamento defender a pretensão do Senhor Presidente da República, argumentam que a lei visa proceder à conceptualização do registo eleitoral e à definição do seu regime jurídico, por força do estabelecido no número 2 do artigo 107.o da CRA, que estabelece o seguinte:
Artigo 107.o (Administração eleitoral)
1 ‐ “Os processos eleitorais são organizados por órgãos de administração eleitoral independentes, cuja estrutura, funcionamento, composição e competências são definidos por lei”.
2‐ “O registo eleitoral é oficioso, obrigatório e permanente, nos termos da lei”.
4) Ou seja, defendem que a CRA estabelece que o registo eleitoral é “oficioso” e, como tal, deve ser feito de maneira diferente por uma entidade diferente da Administração eleitoral. Por esta razão, alteraram o título da proposta de lei para “Lei do Registo Eleitoral Oficioso”.
5) Argumentam também que o registo eleitoral não é matéria eleitoral. É matéria pré eleitoral que não cabe na esfera da administração eleitoral, mas sim da Administração Pública.
6) Todos os grupos parlamentares menos um entendem que não existe na Constituição “registo eleitoral que pertença a uma fase pré eleitoral” nem existem nas democracias “processos pré eleitorais”. O único acto registal que o cidadão faz antes do registo eleitoral é o registo de nascimento, que nada tem a ver com as eleições. A emissão do bilhete de identidade também nada tem a ver com o artigo 107o da CRA porque nada tem a ver com as eleições.
7) Todos os grupos parlamentares menos um entendem que deve ser a Administração eleitoral a realizar o registo eleitoral oficioso, porque se trata de uma matéria eleitoral, que a Constituição coloca directa e expressamente sob a sua alçada.
8) Entendem que a questão não reside no carácter “obrigatório”, “permanente” ou “oficioso” do registo. A questão não reside na adjectivação da coisa, mas na sua natureza, na sua substância. Trata‐se de registo eleitoral. Sendo “obrigatório”, “oficioso”, ou “permanente”, ele é, PRIMEIRAMENTE, e será sempre REGISTO ELEITORAL.
9) Até as crianças entendem facilmente que registo eleitoral é matéria eleitoral. Abarca a emissão do cartão eleitoral, a identificação dos eleitores, a produção dos cadernos eleitorais, a criação da base de dados das eleições, a definição dos locais de voto, etc.
10) Sendo o registo eleitoral matéria eleitoral, os Deputados não têm mandato nem competência para tratar matérias eleitorais de forma diversa daquela que é prescrita pela Lei suprema da República de Angola. Não podem, portanto, atribuir ao Titular do poder executivo competências em matérias eleitorais, sob pena de agredirem frontalmente o princípio da supremacia da Constituição consagrado no art. 6.o da CRA.
11) O legislador ordinário não pode “conceptualizar o registo eleitoral” atentando contra a Constituição. Nem pode definir o regime jurídico do registo eleitoral violando a Constituição. Tem de fazê‐lo nos limites da Constituição. E estes limites são o artigo 6.o, o artigo 107.o e sua epígrafe e o artigo 117.o, todos da CRA. Quem deve realizar e actualizar o registo eleitoral é a administração eleitoral e não a Administração Pública, que é dirigida pelo Titular do poder executivo.
12)O Senhor Presidente da República e os juristas que vieram ao Parlamento defender a sua pretensão, pensam que os angolanos não enxergam as suas reais intenções nem são capazes de distinguir a Administraçãopública da Administração eleitoral. Mas enganam‐se.
13)A Constituição separa bem os poderes e as competências das várias administrações e define claramente quais são as administrações que são independentes e não subordinadas ao Presidente da República.
14) O Titulo IV, que estrutura a organização do poder do Estado, estabelece, ao lado dos três órgãos de soberania, a administração eleitoral, a quem incumbe realizar o registo eleitoral, que é oficioso, obrigatório e permanente (artigo 107o). O Título Vdefine a estrutura e os princípios que regem a actividade da Administração pública, que inclui a Administração local do Estado (artigos 198.o a 201.o). O Título VI estabelece o poder local, que inclui a administração local autónoma no quadro das autarquias locais (artigos 213o a 222o).
15) A Administração eleitoral é independente do Presidente da República e não está subordinada ao Titular do poder executivo nem ao poder legislativo. Por isso mesmo, os membros dos órgãos da Administração eleitoral são inelegíveis ao cargo de Presidente da República (artigo 110.o, no 2, al. f)) e ao cargo de Deputados (artigo 145.o, no 1, al. c)).
16) Estas disposições salientam também que a designação administração eleitoral refere‐se a uma estrutura orgânica concreta e não a uma função, como alguns pretendem fazer crer. Administração eleitoral é, pois, uma instituição distinta e separada de outros órgãos do Estado, com competências distintas da Administração Pública. Por esta razão, a Constituição estabelece que “relativamente a outros órgãos”, compete à Assembleia Nacional “eleger membros dos órgãos de administração eleitoral...” (artigo 163.o, alínea d).
17)Nos termos da Lei Constitucional de 1992, o Governo e o Presidente da República podiam envolver‐se em matérias eleitorais e organizar o registo eleitoral. Por isso organizaram o registo eleitoral no período de 2005 a 2007, nos termos da Lei no 3/05 (Lei do Registo Eleitoral), ora revogada. Mas nos termos da Constituição de 2010, nem o Titular do poder executivo (Governo), nem o Presidente da República têm competências para organizar o registo eleitoral, que é oficioso, obrigatório e permanente.
18) Ao Presidente da República, enquanto titular do Poder Executivo, compete, sim, dirigir a Administração Pública, dirigir os serviços e a actividade da administração directa do Estado, civil e militar, superintender a administração indirecta e exercer a tutela sobre a administração autónoma (artigo 120o, alínea d).
19) O Presidente da República não pode dirigir a administração eleitoral, directa ou indirectamente, nem pode exercer competências eleitorais, porque a administração eleitoral é o órgão que organiza o processo de eleição ou rejeição, pelo povo, do Presidente da República em exercício. Há um inequívoco conflito de interesses.
20) A insistência do Titular do poder executivo em violar a Constituição e chamar a si uma competência que a Constituição não lhe confere é, no mínimo, muito suspeita.
21)E quando nos recordamos que essa entidade é a mesma que ainda não respondeu aos Deputados a carta que lhe foi remetida sobre quem são os beneficiários dos créditos mal parados concedidos pelo Banco Espírito Santo Angola (BESA) para os quais se prontificou a fornecer uma garantia do Estado no valor de cerca de cinco mil milhões de dólares, esta suspeita aumenta.
22)A suspeita aumenta ainda mais porque se trata da mesma entidade que persiste em não explicar aos angolanos o destino que deu aos mais de cinquenta mil milhões de dólares do diferencial do preço do petróleo no período de 2010 a 2014, que ficaram à sua guarda, nos termos da lei que aprovou os respectivos OGE ́s.
23) O que a proposta de lei pretende fazer é invalidar ou baralhar as bases de dados do registo eleitoral existentes e forçar a Comissão Nacional Eleitoral a organizar eleições com base numa nova, a BDCM, que éalimentada pelas Administrações municipais e geridas e mantidas pelo Titular do poder executivo. Tal BDCM não pode “em caso algum” ser fiscalizada por ninguém. É com base nela, e só com base nela, que o Executivo pretende que a CNE afecte milhões de pessoas aos respectivos locais de voto, produza cadernos eleitorais e organize a votação (art. 8.o, 9.o, 11.o, 13.o, 14.o, 15.o, 16.o, 58.o (3), 60.o (6)).
24)Tal pretensão agride o princípio da transparência e frusta o objectivo da protecção do eleitor pelo princípio da permanência nas listas.
25) Convém registar que o elemento mais crítico na organização de eleições é o estabelecimento, logo de início, e de forma permanente,da correspondência comprovada entre o local de residência real e actual do eleitor e o seu local de voto. Devem ser o mesmo em todas as eleições. Esta correspondência deve ser garantida no acto de registo eleitoral pela mesma entidade que mantém as bases de dados dos locais de votação. É o que se designa por protecção do eleitor pelo princípio da permanência nas listas.
26)Esta correspondência nunca foi assegurada pela entidade que manteve e mantém a custódia das bases de dados do registo eleitoral, o Titular do poder executivo. Pelo contrário, as bases de dados foram manipuladas, o que fez com que em 2012 por exemploas pessoas residentes em Viana foram mandadas votar no Moxico, as do Lobito foram mandadas votar no Bié e as de Cabinda, foram mandadas votar em Malange.Estes erros ainda não foram corrigidos
27) Durante os debates na especialidade, os representantes do Titular do poder executivo apresentaram várias contradições e não conseguiram convencer os deputados da boa‐fé da proposta de lei. Primeiro diziam que o FICRE não está na posse do Executivo porque foi entregue à CNE para depois afirmarem que o FICRE será incorporado na Base de dados do Executivo apesar de revogado pela presente lei....
28)Tudo indica que quando chegar a altura de se produzirem os cadernos eleitorais e de os eleitores se dirigirem aos locais de voto, a proposta de lei em questão poderá criar uma grande confusão, maior do que a confusão organizada em 2008 e em 2012.
29) Além disso, o Titular do poder executivo introduziu na presente proposta de lei uma relação subtil de dependência entre o registo eleitoral e a emissão do bilhete de identidade. Todos os grupos parlamentares menos um rejeitaram tal relação, que se afigura desnecessária, propiciadora de fraudes e insustentável.
30)Defendo, tal como os demais deputados da UNITA, que a Administração eleitoral pode utilizar, se desejar, as bases de dados do Bilhete de Identidade produzidas pelo Executivo, mas não deve depender delas, nem limitar‐se a elaspara produzir cadernos eleitorais correctos nem para controlar a integridade da identidade dos votantes no acto da votação.
31) Defendo também que o Titular do poder executivo deve emitir bilhetes de identidade para todos os cidadãos.Aliás, já o devia ter feito. Mas não deve, nos termos da Constituição, usurpar as competências da Administração eleitoral e realizar, através das suas administrações municipais partidarizadas, registos eleitorais. Nem deve impor que as eleições sejam organizadas apenas a partir das suas bases de dados de bilhete de identidade ou bases de dados de cidadãos maiores que pretende criar em 2015sem permitir que ninguém fiscalize a sua integridade, universalidade e conformidade com a Constituição.
32)Tal imposição, concretizando‐se, configura uma obstrução real e prática ao cumprimento, pela CNE, do comando legal constante da alínea dd) do art. 144.o da Lei no 36/11, de 21 de Dezembro. Configura também uma sabotagem subtil aos intentos do legislador ordinário quando, em Dezembro de 2011, ordenou a transferência de competências relativas à actualização do registo eleitoral para a CNE.
33) De facto, o legislador ordinário já criou, em 2011,as condições jurídicas para a Administração eleitoral proceder ao registo eleitoral oficioso.Fê‐lo ao mandar transferir para a Administração eleitoral a custódia e gestão dos programas informáticos, ficheiros (incluindo o Ficheiro Informático Central do Registo Eleitoral), bases de dados e demais elementos relativos ao registo eleitoral que estavam na posse da Administração directa do Estado (MAT).
34)E qual foi o objectivo desta ordem? Foi “garantir a sua integridade e actualização” (al. cc) e dd) do artigo 144o da Lei no 36/11).
35) Portanto, foi sempre entendimento da Assembleia Nacional, desde 2011, que a actualização oficiosa do registo eleitoral é para ser feita pela administração eleitoral e não pelo Titular do poder executivo.
36) Por fim, importa realçar que ser o registo eleitoral oficioso não significa que tem de ser a Administração directa, central do Estado a fazê‐lo. Ser o registo eleitoral oficioso significa apenas que, independentemente da obrigatoriedade dos cidadãos com capacidade eleitoral activa e que ainda não o tenham feito de procederem ao seu próprio registo, incumbe ao Estado o dever de promover a inscrição dos mesmos, podendo e devendo para o efeito requisitar ou solicitar a entidades públicas ou privadas os elementos de que careçam.
37)O órgão (administrativo) do Estado a quem a Constituição atribui a competência de efectivar o registo oficioso é a Administração eleitoral, e não a Administração Pública. Nesta base, o Titular do Poder Executivo não pode, em boa‐fé, invocar o carácter oficioso do registo eleitoral para atribuir a si próprio a competência de realizá‐lo. Oficioso ou presencial, obrigatório ou voluntário, permanente ou não permanente, ele é e será sempre registo eleitoral. E como tal, é matéria eleitoral que a Constituição coloca fora da alçada do titular do Poder Executivo do Estado.
38) Registe‐se, a propósito, que a democracia não é apenas o regime das maiorias sazonais. Ela encerra um conjunto de princípios e regras que, por via dos processos eleitorais, permitem que o povo ‐ o titular do poder político – demita os governos e as minorias de hoje se tornem maiorias amanhã. Algo vai mal numa democracia quando as regras eleitorais são permanentemente alteradas, mesmo violando a Lei Mãe, ou quando são aprovadas apenas pela maioria só para não permitir que as minorias de hoje se tornem a maioria de amanhã.
39) A democracia exige que, no decurso dos mandatos e enquanto se forma a vontade dos eleitores, as minorias tenham espaços de intervenção pública para apresentar ao povo os argumentos e considerações opostos aos argumentos e considerações que serviram de fundamento aos votos vencedores.
40) As contribuições que oferecemos durante o debate para a substituição do texto proposto ou sua melhoria, não minimizam a possibilidade de se orquestrar a fraude eleitoral ou a gestão danosa dos dados eleitorais por via da proposta de lei ora votada. Mais importante ainda, não a transforma em acto válido, porque “as leis, os tratados e os demais actos do Estado, dos órgãos do poder local e dos entes públicos em geral só são válidos se forem conformes à Constituição” (CRA, art. 6o, no 3).
Luanda, 15 de Abril de 2015
Mihaela Webba
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