sábado, 28 de fevereiro de 2015

Brandos costumes



OPINIÃO
Brandos costumes



14/02/2015 - 06:24


Os que duvidam ainda do racismo instalado na sociedade portuguesa são os mesmos que pensam que o problema não é o desemprego e sim a preguiça do desempregado.

Racismo em Portugal? Desde que o lusotropicalismo se tornou doutrina oficial do salazarismo e os governos democráticos o envernizaram com um discurso de “superação do passado” e de “diálogo” e “cooperação”, o Estado português vive em estado de negação permanente e nunca se mostrou disponível para enfrentar o problema.

Há mais de um século que a maioria dos portugueses se deixou convencer, com a maior das auto-condescendências, pela ideia da exceção portuguesa no mundo e na história, de uma pretensa diferença essencial que teria feito com que, de tanto termos “lançado a semente da solidariedade universal” (como dizia Mário Soares em 1992), de tanto de se ter sabido “entender e misturar realmente com os outros” (Cavaco, em 2008), a nossa vida coletiva tivesse estado isenta de preconceito e perseguição racial - ou que as nossas colónias nem colónias tivessem sido, e, já agora, que a guerra colonial não foi nem colonial, nem guerra sequer...

Neste contexto, como é que se interpreta o que aconteceu há dias na Cova da Moura (Amadora)? Agentes da equipa de intervenção rápida da PSP percorriam o bairro, Bruno Lopes, 24 anos, conversava na rua, em crioulo, com primo e é esbofeteado e pontapeado por polícias sem, dizem as testemunhas, ter oferecido resistência. Moradores protestam, tentam filmar a situação, polícia dispersa-os com violência. Jailza Sousa, 29 anos, da Associação Cultural Moinho da Juventude, assiste a tudo da varanda de casa e, enquanto segura nos braços um filho, é alvejada com balas de borracha. Bruno é levado para a esquadra, detido toda a noite, espancado. “Diziam-me para me candidatar ao Estado Islâmico.” Chamam-lhe “preto, macaco”, que “iam exterminar a nossa raça” (PÚBLICO, 10.2.2015). Cinco ativistas da associação vão até à esquadra para exigir a sua libertação, entre eles Celso Lopes e Flávio Almada, ambos rappers e investigadores, o primeiro na Universidade de Aveiro, o segundo na de Coimbra. Os polícias não os deixam entrar, disparam balas de borracha (duas atingem Celso numa perna), puxam os ativistas para dentro da esquadra, e batem-lhes com fúria: no Hospital Amadora-Sintra, os médicos comprovam dentes partidos, hematomas de tal gravidade que um dos jovens terá sofrido um AVC. Na esquadra, os insultos acompanham o espancamento. Conta Flávio Almada: “Consegui ver a expressão de um dos polícias, quando disse (...): 'Se eu mandasse, vocês seriam todos exterminados. Não sabem o quanto eu odeio vocês, raça do caralho, pretos de merda.' Nunca tinha visto um ódio, em estado bruto, daquela forma (...).” Para quem os espanca, eles não são portugueses: são “pretogueses”!

Sabendo que o caso é denunciado imediatamente nas redes sociais e nos media, a PSP assume o relato habitual: “cinco jovens terão tentado invadir a esquadra, atacada à pedrada”, “um agente terá também sido agredido tendo sido transportado ao hospital com um braço partido.” O problema é que desta vez, além de Bruno Lopes, um dos muitos jovens desempregados do bairro habituados à violência policial, não hesitaram em deter, espancar e pedir a prisão preventiva (recusada pela juíza) para ativistas de um projeto comunitário que tem 30 anos na Cova da Moura, creditado com prémios como o de Direitos Humanos da Assembleia da República. Como diz Flávio Almada, “tenho curso superior, sou ativista, conheço muita gente e muita gente acredita em mim — agora um jovem que tenha pelo menos um antecedente criminal: ninguém o iria apoiar.”

Portugal não é os EUA, a Cova da Moura não é Ferguson. Não é o que se repete sempre entre nós, que aqui não há violência racial? Não vivemos nós convencidos de que uma redoma de brandos costumes nos afasta das tempestades xenófobas do Ocidente rico? Não é daqui que sai a falsa ingenuidade de quem sublinha que em Angola não fizemos o que os franceses fizeram na Argélia, que Moçambique não era a Rodésia ou a África do Sul, que no Brasil colonial nunca fizemos o que os espanhóis fizeram no lado deles da América? Em suma, que nós não somos racistas como os outros!

Mas prestará alguém atenção aos estudos do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultura (ACIDI) e aos relatórios de entidades tão oficiais como a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI) do Conselho da Europa? Ou julgar-se-á que estas comissões só têm é de gastar tempo com os outros? Em 2013, a ECRI verifica que “muitas pessoas teriam má opinião dos ciganos, que consideram parasitas, bem como dos brasileiros e dos africanos, que associam à criminalidade”; o “aumento do número de sites internet racistas” (entre os quais “um forum internet, manifestamente criado em Portugal”, notoriamente gerido por militares da GNR”). Desde o seu relatório de 2007 que entende que “incidentes graves” como os “disparos desferidos contra Africanos e Ciganos” “podem”, na linguagem sempre diplomática destas entidades, “traduzir a existência de uma cultura de preconceitos raciais por parte de certos membros da polícia”, pelo que a ECRI voltou a “[convidar] as autoridades a proceder a um inquérito sobre a possível existência de uma cultura institucional de racismo ou discriminação racial no seio da polícia.” A comissão “está muito surpreendida com a modéstia dos números [relativos a investigações ou a condenações resultantes de denúncias contra agentes da polícia por atos racistas ou de discriminação racial], que lhe sugerem que o sistema atual de apresentação de queixas não funciona”. Na falta de empenho das autoridades portuguesas “vê (...) um sinal inquietante da reticência geral em enfrentar e em reagir ao fenómeno do racismo e da discriminação racial na polícia”, apercebendo-se “que os agentes das forças da ordem processados por violências racistas são raramente condenados, [bastando-lhes] invocar a legítima defesa para serem absolvidos.”

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