Maria José Morgado sobre o caso Sócrates:
Para a diretora do Departamento de Investigação e Ação Penal, nas crises os casos de corrupção vêm ao de cima como o lodo. Sobre a prisão de Sócrates disse apenas que "as pessoas não estão loucas".
Na semana em que o pacote de leis anti-corrupção deu entrada na Assembleia da República e aguarda discussão, e a duas semanas da discussão da lei do enriquecimento ilícito, Maria José Morgado admite que as leis dão jeito, mas do que os magistrados precisam é de ferramentas de trabalho que facilitem detetar a criminalidade económica e financeira, segui-la e confiscar os lucros ilícitos. Na entrevista que deu à RTP Informação, esta quarta-feira à noite, a diretora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) recusou sempre comentar casos concretos. Mas, questionada sobre a decisão de prender o ex-primeiro-ministro José Sócrates, comentou que “as pessoas não estão loucas”.
“Ninguém me perdoaria se eu tomasse uma posição num caso concreto. Mas sou solidária com os meus colegas”, disse, sobre o caso José Sócrates. A decisão do juiz Carlos Alexandre de prender o ex-primeiro-ministro mereceu um único comentário: “as pessoas não são loucas“.
Sobre as fugas de informação, Maria José Morgado disse que “a fuga de informação, por parte da defesa, é frequente em casos de grande corrupção”, ou seja, quando estão em causa pessoas com muito poder. E defendeu que o Ministério Público deveria dar mais informações oficiais sobre os casos, sempre que isso não prejudique os processos.
Sem nunca comentar diretamente o caso Sócrates, a magistrada explicou que “em circunstâncias completamente anormais de compensações avultadas em circunstâncias inexplicáveis, não há nenhuma impossibilidade em termos de previsão penal de imputação de um crime”. Nem mesmo se não for possível provar concretamente uma troca direta de dinheiro por ações.
“A corrupção não tem de estar associada de forma causalista, ‘dou-te isto em troca de um ato concreto’, é algo de mais complexo que pode envolver uma série de comportamentos e decisões. Por exemplo o pagamento de rendas ilícitas a alguém. E essa autoridade, que entra num clima de permeabilidade, já sabe que quando tiver de tomar decisões desfavoráveis em relação a essa pessoa, terá de transformar a decisão desfavorável em favorável ou fechar os olhos. Isto não é corrupção? É corrupção”, disse Maria José Morgado.
A diretora do DIAP atribuiu a existência de mais casos mediáticos nos últimos tempos à maior experiência e coragem dos magistrados, mas também aos efeitos da crise financeira que se vive em Portugal. “A crise económica é como quando o mar baixa, aparece o lodo. Então houve muito lodo que ficou à vista e que possibilitou o avanço da tutela“, disse, acrescentando que a chegada da crise ajudou a explicar “como é que o dinheiro dos nossos impostos era esbanjado e como o orçamento de Estado era uma manjedoura para muita gente”. A própria dureza da crise “permite o partir do vidro e perceber o que está para além de uma paisagem aparentemente harmoniosa”.
Morgado considerou ainda que “há uma grande vulnerabilidade ao nível do Estado central, nos negócios do Estado central, na contratação pública” e deu como exemplo as fraudes na saúde, nomeadamente, na aquisição de equipamentos hospitalares. “A saúde é uma área vulnerável à fraude e corrupção”, onde “há muito dinheiro e recursos muito elevados e que podem comprar decisores, sejam políticos ou públicos”, disse.
Legislação nós temos muita
A serem aprovados, o novo pacote de leis anti-corrupção e o enriquecimento ilícito serão “bem-vindos”, mas a magistrada lembrou que “de dois em dois anos há um pacote anti-corrupção”. E que a lei portuguesa já prevê a inversão do ónus da prova – pedida na lei do enriquecimento ilícito – no artigo 7 da Lei 5/2001, “em que se prevê que um arguido que seja condenado por crimes cujo património seja incongruente com aquilo que é conhecido, presume-se que esse património é de origem criminosa. E o Ministério Público na acusação faz a liquidação desse património e promove ao tribunal a declaração de perda desse património por presunção de proveniência ilícita”, lembrou, dizendo que esse artigo “não tem sido tão utilizado quanto isso”.
O défice na justiça, explicou, é ao nível das ferramentas informáticas, da intelligence e do cruzamento de dados, dificultado pela lei de proteção de dados. “A lei de proteção de dados proíbe o cruzamento dos nossos próprios dados, o que é um absurdo“, disse. À falta destas ferramentas, o pacote de leis anti-corrupção “pode ser vantajoso”, nomeadamente “no controlo de património de cargos públicos e políticos.
Na questão da criminalidade económico-financeira estava a faltar, de acordo com a diretora do DIAP, um risco real para os infratores, de perderem os bens da atividade criminosa e de serem condenados. “Se compararmos com um traficante de droga, ele sabe que se for encontrado com uma certa quantidade de heroína ou cocaína, que é seguramente condenado a pena severa de prisão. Há um risco assegurado a essa atividade. A questão é que na criminalidade económico-financeira, o nosso sistema penal nos últimos 20 anos mostrava dificuldade em criar um risco para atividades como contrabando qualificado, crimes financeiros e tráfico de influências. As condenações eram praticamente inexistentes”. Algo que tem vindo a melhorar. “A justiça tem ganho capacidade, nomeadamente no combate à criminalidade”, disse, acrescentando que “a partir do momento em que há casos mediáticos, isso transmite uma mensagem para os criminosos“. Mas ainda há muito trabalho a fazer porque “ainda temos uma situação de crime económico-financeiro metastizado”, disse.
“Nesta área temos um inimigo sem rosto porque estamos no domínio do crime sem vitima, porque a vítima somos todos nós e não nos podemos queixar coletivamente. Estes são os custos intangíveis da corrupção: são mais défice público, mais despesa pública, serviços públicos mais caros, injustiça fiscal, etc.”.
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