OPINIÃO
A administração central e local, a extensa e poderosa máquina da justiça, a máquina das finanças, o exército e o clero, que o governo pagava, acabaram por dar ao regime a classe média de que ele precisava.
No programa Barca do Inferno, Isabel Moreira repetiu um dos piores lugares-comuns da irresponsável propaganda da oposição. Nesta altura da nossa história, tudo se admite: a ignorância, a malícia e o fanatismo. Disse a sra. deputada (do PS) que o governo de Passos Coelho tenta, e sempre tentou, “diabolizar” o funcionalismo público, como se em Portugal o funcionalismo público antes desta longa crise gozasse de um prestígio inatacável e geral.
Isto implica, como qualquer pessoa medianamente culta perceberá, o desconhecimento absoluto do que foi a vida políticaportuguesa desde (e para não ir mais longe) 1832. E também uma curiosíssima cegueira ao que tem sido a obscura vida desta II (ou III) República, da “revolução” de Abril ao consulado do PS e de Sócrates, que Deus guarde.
Em 1832, quando as tropas de D. Pedro desembarcaram no Mindelo e tomaram o Porto, o padre José Agostinho de Macedo proclamou logo que os “malhados” vinham destruir o trono e o altar, mas, sobretudo, tirar os “legitimistas” do Estado e ficar com os “lugares” que eram “legitimamente” deles — prepotência e roubo que indignavam José Agostinho muito mais do que as eventuais desgraças da religião e do Infante. A partir daí a disputa do emprego ocupou invariavelmente o centro da política portuguesa. Até os pronunciamentos militares (a oficialidade fazia parte do funcionalismo) e as guerras civis eram quase sempre provocadas pelo acesso ao emprego público que uma das partes dominava e a outra pretendia. Costa Cabral, o homem mais detestado do século XIX, acabou por cair por causa da sua doutrina do “exclusivismo”, ou seja, por só nomear gente do seu partido e da sua confiança.
Mas como sustentar um Estado representativo (liberal ou democrático) sem uma “classe média” que lhe servisse de base e de apoio, quando a debilidade económica do país não a produzia espontaneamente? Havia uma única solução: que o Estado a criasse, como criou, pelo funcionalismo e pelo subsídio. A administração central e local, a extensa e poderosa máquina da justiça, a máquina das finanças, o exército e o clero, que o governo pagava, acabaram por dar ao regime a classe média de que ele precisava e, com ela, algum equilíbrio e alguma paz. Mas, como as nomeações dependiam do favor partidário, do compadrio e do nepotismo e, além disso, a maioria dos beneficiados — de amanuenses a oficiais e padres — gozava de uma ociosidade e de privilégios que enfureciam a população excluída, o desprezo e o ódio ao funcionalismo foram sempre uma constante na cultura política portuguesa. Só quem não leu os jornais do século XIX e do século XX, e os discursos de S. Bento, e a história, e as memórias, e meia dúzia de estudos sobre a “decadência da Pátria” pode pensar que Passos Coelho e o seu governo andam por aí a “diabolizar o funcionalismo”, como se essa “diabolização” não passasse de uma coisa recente e dispensável.
Sem comentários:
Enviar um comentário
MTQ