A introdução do processo da democratização das instituições políticas moçambicanas que, para o então Presidente da República (PR), Joaquim Chissano, e o Governo da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), era a condição incontornável para obter a aprovação e a tutela das potências ocidentais, no contexto da Nova Ordem Política mundial, a seguir à queda do muro de Berlim, em Novembro de 1989, para o presidente da Resistência Nacional de Moçambique (Renamo), Afonso Dhlakama - que sempre procurou atribuir um cunho heroico à guerra civil dos dezasseis anos – a democratização do sistema político moçambicano é fruto maduro da guerra civil movida pela Renamo, contra o Governo da Frelimo. Esta interpretação, além de proteger Dhlakama contra qualquer tipo de acusação ou processo penal de crimes de guerra, confere-lhe o direito de autoproclamar-se o “pai da democracia moçambicana”.
Numa atmosfera de catadupa de acontecimentos de carácter pouco democráticos, contra todas as expectativas, O Governo da Frelimo - que ainda está a dever os eleitores a renúncia da manobra consistente em esconder-se atrás, ora da Comissão Nacional de Eleições (CNE), ora do Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE), ora do Conselho Constitucional (CC), e provar com 1+1 que Filipe Jacinto Nhysi venceu, efectivamente, as eleições presidenciais de 15 de Outubro - apressou-se através da Comissão Permanente da Assembleia da República (CPAR) a apresentar a proposta sobre o estatuto de Líder de Oposição que, uma vez aprovada pela V sessão extraordinária da Assembleia da República (AR), que decorre desde hoje, dia 26 de Novembro de 2014, Dhlakama passará a ter mais regalias, na sua qualidade de líder do maior partido de oposição no País.
Num País onde os cidadãos foram habituados a ver os “senhores da guerra” e todos os coniventes do circuito de crime organizado a ser premiados pelos seus actos abomináveis, pode parecer natural que, Anfonso Dhlakama, que durante toda a sua vida só fez guerra, tenha também o mesmo direito de ser premiado pelas atrocidades que cometeu. No entanto, tal premio, não só não é fundado sobre a mesma base que funda os prémios dos outros “senhores da guerra” existentes no País, mas ele contraria também os princípios democráticos que Dhlakama diz ter estado sempre a defender.
Estranhamente, a proposta sobre a instituição do estatuto de Líder da Oposição, a ser atribuído a Dhlakama, surge na sequência do anúncio feito pelo PR, Armando Guebuza , aquando da assinatura do Acordo de Cessação de Hostilidades Militares, com Afonso Dhlakama, no dia 5 de Setembro do corrente ano. Em outras palavras, a CPAR apresenta a proposta como mecanismo de transformação em Lei do anúncio feito pelo PR. Portanto, uma conexão susceptível de consubstanciar as acusações frequentemente feitas ao Governo de Guebuza de interferir nos respectivos campos dos poderes legislativo e judiciário.
Alguns académicos que se ocupam de análises da questão política moçambicana já manifestaram a própria aprovação e apoio ao gesto de Armando Guebuza, argumentando que a positividade deste gesto reside no facto dele contribuir para a consolidação da paz que, segundo aqueles académicos, passa através de gestos de inclusão.
O que, na minha ótica, confere estranheza a toda a iniciativa sobre a criação de tal estatuto a ser atribuído a Afonso Dhlakama, é o facto da iniciativa ter sido anunciada nas vésperas das Eleições Gerais de 15 de Outubro, as quais tinham o mesmo Dhlakama como um dos concorrentes à presidência da República. Como se pode, racionalmente, enquadrar no contexto da assinatura do Acordo de Cessação de Hostilidades Militares, de 5 de Setembro, a promessa da instituição de um estatuto de Líder de Oposição, feita a Dhlakama pelo presidente do partido do seu rival na corrida à Ponta Vermelha? E como interpretar o pacífico acolhimento que tale promessa possa eventualmente obter da parte de Dhlakama e da Renamo? Por acaso o presidente visionário, Armando Guebuza, terá tido, antecedentemente, uma revelação sobrenatural dos resultados das V Eleições Gerais de 15 de Outubro? E, qual terá sido a reacção da Renamo? Quando no segredo dos “deuses” ficou revelado que Dhlakama e a Renamo não tinham a chance de vencer as V Eleições, estes preferiram eventualmente aceitar os “derivados do frango” – para fazer uso da lição magistral da Dra Lucília Hama – já que o frango em si estava reservado para os outros? Nesse caso, a opinião pública seria induzida a concluir que o próprio Dhlakama foi o principal cúmplice da “fantochada” eleitoral que posteriormente se fez de vítima publicamente. Em vez da obsessiva pretensão de ser o “pai da democracia moçambicana”, ter-se-ia comportado como um verdadeiro fantoche traidor do povo moçambicano.
Olhando atentamente para os acontecimentos que dominaram o cenário político moçambicano, no período entre 2013 e 2014, existem razões suficientes para suspeitar que alguns episódios possam ter induzido Dhlakama e a Renamo a deixar-se enganar (mais uma vez) pelas velhas raposas da Frente de Libertação de Moçambique.
Em primeiro lugar, o ano 2013 fechou com a clamorosa (e não indiferente) ascensão do Movimento Democrático de Moçambique (MDM) no panorama político moçambicano. Além de renovar os próprios mandatos nas cidades de Beira e Quelimane, este partido conquistou também as cidades de Nampula e Guruè; e aumentou significativamente os próprios assentos nos Municípios de Maputo e Matola. Esta vitória retumbante do MDM nas eleições municipais de 2013 podia ter suscitado, nas hostes da Renamo, o fantasma de receio de perder a posição de maior partido de oposição, nas V Eleições Gerais.
Em segundo lugar, a Renamo – um partido/movimento cujo modus operandi interno continua a ser caracterizado por uma rígida emanação de todas as soluções de todos os problemas da boca do “grande chefe” - ficou muito desgastado quando o Governo da Frelimo, a seguir ao fracassado blitz de Sadjundjira (que visava eliminar Dhlakama), adoptou a estratégia de encurrala-lo num lugar incerto nas matas de Gorongosa.
Se se provasse que a iniciativa de Armando Guebuza de institucionalizar o estatuto de Líder de oposição e de atribuí-lo a Dhlakama fosse de comum acordo com este último e a Renamo, então, estes dois episódios poderiam representar o motivo que teria induzido a Renamo a procurar ou a aceitar a oferta de um “sujo” acordo, para garantir a conservação da posição de maior partido de oposição.
Além das duas primeiras razões que se prestam para cogitar a possível existência de um acordo/compromisso entre os dois históricos rivais (a Frelimo e a Renamo), recuando um pouco na memória, poder-se-ia notar que foi também suspeito a modalidade com que foi aprovada a Nova Lei Eleitoral que regulamentou as mesmas V Eleições Gerais: a Frelimo e a Renamo estavam de costas viradas e as negociações no Centro de Conferências Joaquim Chissano (CCJC) tinham sido interrompidas no dia 28 de Outubro de 2013, na 24ª ronda, alegadamente porque a Renamo exigia a presença de facilitadores e observadores, capazes de aproximar as posições das partes, de modo a evitar impasses registados nas anteriores 24 rondas. De “improviso”, no encontro da 26ª ronda, realizado no Sábado, dia 1 de Fevereiro de 2014, os históricos rivais ultrapassam os principais obstáculos e deram a conhecer que dentro de uma semana seria convocada uma sessão extraordinária ou antecipada à sessão ordinária da AR, para a Revisão da Lei Eleitoral, com vista a acomodar as exigências da Renamo.
Foi estranho para muitos moçambicanos que a questão da paridade nos órgãos eleitorais, cujo desacordo tinha “obrigado” Dhlakama a regressar ao mato, induzido o Governo da Frelimo a concentrar enormes recursos financeiros na aquisição de material bélico, custado o sangue de um número desconhecido de moçambicanos e obrigado Dhlakama a viver como um animal de caça num “lugar incerto”, tenha encontrado, na 26ª ronda, um entendimento miraculoso que não tinha sido possível encontrar nas precedentes 24 rondas. No Editorial, da edição Nº 238, do dia 5 de Fevereiro de 2014, o editor do semanário Canal de Moçambique, Fernando Veloso, observava que se Dhlakama entrasse num compromisso que ajudasse a Frelimo a ganhar tempo para resolver a sua crise interna, então, ele “ficaria para a história como um desconseguido”.
O acordo sobre a Nova Lei Eleitoral e o desbloqueio no impasse das negociações no CCJC foram possíveis graças a contactos diretos, de forma secreta, nas instalações da AR, com a desculpa de ser a forma melhor encontrada para ultrapassar a crise, o mais rapidamente possível. Este secretismo indignou muitos moçambicanos que se interrogavam “que assuntos secretos estavam a tratar, a Frelimo e a Renamo, sobre o pacote eleitoral, que não interessavam os outros partidos e a inteira população moçambicana”!
Já nessa altura, e neste mesmo espaço, publiquei um artigo – O Juízo Final: Dhlakama e a Democracia (ainda disponível online) – mostrando que existiam muitas razões para suspeitar que Dhlakama e a Renamo estavam a repetir a carta errada de 1994 e 2009; que a sua maior preocupação tinha deixado de ser aquela de conquistar o poder e se tinha reduzido àquela de impedir que um outro partido de oposição chegasse ao poder ou conquistasse o segundo lugar.
Se a questão do estatuto de Líder de Oposição, a ser atribuído a Dhlakama, fosse capaz de provar que o próprio Dhlakama foi o maior conivente de Guebuza na engenhosa construção da “fantochada” eleitoral, como é que se poderia, então, enquadrar o comportamento da Renamo que, no dia 28 de Outubro de 2014, no encerramento da Conferência Regional Centro e Norte de Moçambique – reagindo à indicação dos resultados parciais anunciados pelas Comissões Distritais e Provinciais, que davam por vencedor Filipe Nyusi e a Frelimo – reivindicou a vitória do seu candidato, Afonso Dhlakama, com cerca de 80%?
A hipótese mais provável seria admitir que Afonso Dhlakama e a Renamo tenham falhado os cálculos; que eles não tenham percebido que os eleitores moçambicanos iam às urnas das V Eleições Gerais determinados a punir os corruptos falcões da Frelimo e a “vara” preferida com a qual castigar a Frelimo era, precisamente, Dhlakama e a Renamo. E quando se deram conta já era tarde. A contraparte do “sujo” acordo tinha já orquestrado tudo de modo a assegurar que o “frango” ficasse para si e as “miudezas do frango” fosse para a Renamo. A máquina já tinha sido acionada e não se podia voltar para atrás.
A instituição do estatuto de Líder de Oposição e a sua subsequente atribuição a Afonso Dhlakama, embora tenha a possibilidade de obter a aprovação da opinião pública moçambicana que poderá ver nisso um reconhecimento do homem que em várias circunstâncias agiu como seu representante na luta contra a governação desastrosa do dia, a médio e longo prazos poderá constituir um atentado contra o recém-nascido e frágil processo da democratização das instituições políticas moçambicanas.
Se por uma lado, pode-se admitir que a instituição do estatuto de Líder de Oposição e a sua subsequente atribuição a Afonso Dhlakama possa contribuir para a “pacificação” do País, por outro lado, a aceitação deste estatuto, da parte de Dhlakama e da Renamo poderá (com maior probabilidade) confirmar, na opinião pública, duas suspeitas: primeiro, que a proclamação de Filipe Jacinto Nyusi como vencedor das eleições de 15 de Outubro seja resultante de um “cozinhado” feito nos computadores da CNE e do STAE, e a sua presidência da República seja uma incontornável imposição, da parte dos totalitários do regime da Frelimo. Segundo, que tenha existido “sujos” acordos entre os dois históricos rivais, que visam acantonar a ameaça representada pelo crescimento da popularidade do MDM no cenário político moçambicano, e manter os cidadãos reféns do bipolarismo dominado pela hegemonia exercitada pela Frente de Libertação de Moçambique.
A consequência da consolidação destas duas suspeitas, na opinião pública, seria fatal: um desinteresse total pela política, da parte dos cidadãos. O povo sentir-se-ia traído, enganado e gozado pelos políticos. E daí, o suposto “pai da democracia moçambicana” passaria a ser acusado de filicídio (assassinato do próprio filho).
Alfredo Manhiça
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