Em tempo útil
Um dos momentos mais emocionantes destas eleições (para mim) foi ver a esposa dum governador provincial a pedir o voto duma vendedeira de mercado. Fiquei eternecido ao ver isso. São muito raros os momentos quando se revertem os papéis e os poderosos precisam dos fracos. O momento foi simbólico, na verdade tão simbólico que acabou suscitando esta reflexão. Afinal, ao que tudo indica, a democracia tem futuro no nosso país. E, o que é mais importante ainda, ela pode servir de regulador da política. A campanha eleitoral está bem renhida e ao que tudo indica cada voto conta. Qualquer que seja o resultado, Moçambique não voltará a ser o mesmo país. O voto vai passar a contar não só durante as eleições como também longe delas. Esta constatação levanta três problemas que gostaria de reflectir e partilhar aqui.
O problema da nossa cultura política
Muitos de nós fomos socializados para pensar que tudo quanto anda mal, anda mal porque nós somos demasiado impotentes para influenciar as coisas. É assim que muitos ficam a mercê daqueles que sabem manipular as rédeas do poder para os seus fins pessoais. Fazem-no com recurso à ideia fantástica dum poder superior que se sobrepõe a tudo e funciona segundo regras próprias. Ministros não apresentam, nem defendem ideias próprias porque a sua missão é cumprir uma missão; juízes não julgam de acordo com a lei porque a sua missão é de julgar de acordo com a vontade desse poder superior; quase tudo e todos fazem sorna porque nada se pode fazer que não esteja de acordo com essa vontade.
Mas a imagem que evoquei da esposa do governador que vai pedir voto a uma vendedeira de mercado mostra justamente o contrário. Ela mostra que a nossa impotência é, no fundo, recusa de assumirmos a nossa cidadania. Ela mostra que a democracia nos deu um instrumento poderoso, nomeadamente o voto, que pode ser a nossa arma secreta nos nossos esforços em prol dum Moçambique melhor. Isto é particularmente pertinente para os partidos da oposição. É interessante notar que nenhum partido da oposição, desde que se abriram alas à democracia no país, tem mostrado interesse em articular a sua política por meio da organização de interesses sociais. Nunca houve, ao que tudo indica, nenhuma tentativa de abordar os vendedores de mercado (por exemplo), auscultar os seus problemas e integrar as suas preocupações na agenda política dos partidos políticos. Considero isto pertinente para os partidos da oposição porque eles, por razões eleitorais legítimas, apresentam-se como aqueles que vão mudar o país para o melhor porque falam em nome do povo. Uma mudança real implicaria em minha opinião não só falar em nome do povo – toda a gente pode fazer isso – mas sim deixar que o povo fale.
Mas a imagem que evoquei da esposa do governador que vai pedir voto a uma vendedeira de mercado mostra justamente o contrário. Ela mostra que a nossa impotência é, no fundo, recusa de assumirmos a nossa cidadania. Ela mostra que a democracia nos deu um instrumento poderoso, nomeadamente o voto, que pode ser a nossa arma secreta nos nossos esforços em prol dum Moçambique melhor. Isto é particularmente pertinente para os partidos da oposição. É interessante notar que nenhum partido da oposição, desde que se abriram alas à democracia no país, tem mostrado interesse em articular a sua política por meio da organização de interesses sociais. Nunca houve, ao que tudo indica, nenhuma tentativa de abordar os vendedores de mercado (por exemplo), auscultar os seus problemas e integrar as suas preocupações na agenda política dos partidos políticos. Considero isto pertinente para os partidos da oposição porque eles, por razões eleitorais legítimas, apresentam-se como aqueles que vão mudar o país para o melhor porque falam em nome do povo. Uma mudança real implicaria em minha opinião não só falar em nome do povo – toda a gente pode fazer isso – mas sim deixar que o povo fale.
O problema da qualidade do debate público
Falta pouco para o dia da decisão e até aqui não houve um debate substancial dos assuntos. Com isto não quero sugerir a ideia de que nunca tenha havido debates substanciais. Os trabalhos do IESE sobre o padrão de acumulação ou sobre a protecção social têm constituído importantes contribuições para o debate de questões reais no nosso país. Curiosamente, nenhuma das questões levantadas nesses trabalhos tem encontrado eco no debate eleitoral. O maior interesse da dita classe pensante no país tem sido em torno de questões banais e óbvias como, por exemplo, se o presente duma associação industrial e comercial ao Chefe de Estado viola a lei da probidade – um dos maiores não-assuntos desta campanha – se multidões significam aderência – outro não-assunto – se os slógans eleitorais fazem sentido ou não, etc. Há até uma espécie de corrida de tartarugas para constatar a primeira “gaffe”, mais uma incongruência, outro exemplo de arrogância de quem está no poder ou de inexperiência de quem aspira ao poder. Esta corrida é protagonizada, sobretudo (pelo menos no Facebook), por pessoas que se consideram “independentes” e, em alguns casos, são simpatizantes alienados do partido no poder.
É uma postura que me incomoda bastante. Os partidos, no poder e na oposição, fazem o que devem fazer neste momento, nomeadamente dizer às pessoas para votarem neles. Se lhes for possível dizer isso sem terem de justificar porquê, tanto melhor para eles. A consequência, porém, é que o povo – em nome de quem todos eles falam – fica abandonado a si próprio. As vendedeiras de mercado têm apenas a sua experiência do quotidiano como base de decisão de voto. Fora disso, não têm mais nada. Os que deviam estar a discutir de que maneira a despartidarização do estado vai ajudar a melhorar as condições de trabalho e de vida das vendedeiras de mercado, porque a mudança na continuidade vai fazer isso ou como um Moçambique para todos vai lograr essa mudança estão entretidos a vasculhar entrevistas de generais na reforma à procura de ameaças à paz, a criticar o Notícias e a TVM pela sua parcialidade (e quase nunca reprovando o jornalismo ideológico e de muito má qualidade que alguma imprensa privada nos serve), a atacar o G-40 (como se os problemas do país decorressem todos da existência deste grupo e, ademais, como se a actuação desse grupo fosse fundamentalmente diferente da actuação do G-23 milhões menos 40 que também participa ideologicamente na política), a celebrar as auto-críticas que se fazem no interior do partido no poder (sem nunca levantar questões em torno dos processos internos dos partidos da oposição) e todo um rol de questões (questões estruturais que muito provavelmente estão acima da acção individual) que, no fundo, fazem parte da ementa de campanha dum partido na oposição. Dito doutro modo, o partido no poder faz campanha contra os seus adversários formais, nomeadamente os partidos de oposição, mas o seu adversário verdadeiro são os “independentes” e simpatizantes alienados que assumem uma postura algo estranha. Já vi alguns a desejarem sorte aos partidos como se o país não lhes dissesse respeito e como se o resultado destas eleições não fosse ter nenhumas consequências sobre a sua própria vida. Ao invés de promoverem uma melhor discussão dos assuntos passam a vida a atacar o partido no poder.
Mais estranho ainda é que muitos dos que se consideram independentes ou simpatizantes alienados têm muito a perder se o pior acontecer e houver uma mudança para o desconhecido. Uma mudança dessas pode colocar no poder pessoas que não vão atacar os problemas de fundo simplesmente porque não fazem ideia de como fazer isso e, pior ainda, porque ninguém lhes perguntou de tão entretidos que estávamos a discutir o Mercedes Benz oferecido ao Chefe de Estado. Espero não estar a ser obscuro. Não estou a dizer que se a oposição vencer as eleições estaremos mal. Essa seria uma posição fatalista que eu não partilho. Moçambique não vai deixar de existir só porque outras pessoas subiram ao poder. A vida pode ficar melhor, ou pior, mas o país (mesmo com a decisão da Renamo de declarar a independência duma região do país) vai continuar a existir. Estou a dizer que se houver mudança em Moçambique seria bom que ela fosse o resultado duma discussão mais substancial sobre o que aqueles que dizem que vão fazer melhor pretendem fazer. Essa é a maior incógnita do momento. Tanto quanto sei, a Renamo e o MDM apenas dizem que vão fazer melhor (o que do ponto de vista eleitoral é legítimo), mas o que significa isso concretamente? Porque é que aqueles que estão descontentes com a Frelimo não se preocupam em saber de que maneira é que a alternativa vai fazer melhor? A vendedeira de mercado agradeceria. Eu também.
O problema da mudança
A julgar pelo tom das discussões (pelo menos no Facebook) o país quer mudança. A questão, como em tudo o resto, porém, é de saber que tipo de mudança e quem vai trazer essa mudança. Parece que a mudança que o país quer é no sentido dum governo mais atento ao eleitorado, menos arrogante e mais respeitador da constituição num sentido lacto (respeito pelos órgãos e bens do Estado, respeito pela integridade profissional, respeito pelo direito que todos têm à riqueza nacional). A questão, mais uma vez e postas as coisas desta maneira, é quem pode garantir essa mudança. Não vejo, do ponto de vista lógico, nenhuma razão para pensar que o partido actualmente no poder não possa ser o agente dessa mudança. O argumento de não ter feito isso em mais de 30 anos no poder parece-me mais político do que lógico. Os problemas não foram sempre os mesmos e muitos foram nascendo à medida que outros eram resolvidos. Algum descontentamento em relação ao que anda mal pode ser, noutras perspectivas, manifestação dum aumento de expectativas que resultou de sucessos. Os cortes de energia eléctrica são um problema porque o acesso à energia deu às pessoas mais opções na organização da sua vida. Quando alguém diz que não se fez nada em 30 anos sem pensar nos contornos aqui mencionados está a fazer política e não o tipo de debate que poderia ajudar às vendedeiras de mercado. Isso é legítimo do ponto de vista eleitoral, mas pouco útil para os eleitores que precisam de melhor informação para votarem. Acima de tudo, não vejo porque esse partido não possa ser o agente dessa mudança porque, pelo que a imagem da esposa da governadora mostra, o potencial de cidadania está presente e pode ser convocado a participar nessa mudança.
A oposição não vai fazer estas mudanças que são necessárias só porque ela não é a Frelimo, não esteve no poder 30 anos ou porque diz que as vai fazer. É preciso que ela diga como vai fazer isso e seria bom que aqueles que estão descontentes com o estado actual das coisas também a interpelassem para que mais pessoas votem com conhecimento de causa. Em nenhuma das matérias que me parecem relevantes em relação à natureza da mudança vejo a oposição que temos hoje como sendo o melhor veículo dessa mudança. A Renamo já demonstrou a sua incapacidade de se governar a si própria (e seu desprezo pela ordem constitucional) e o MDM parece apenas um partido de protesto do que de acção. À volta desses partidos gravitam, do meu ponto de vista, os motivos mais ignóbis que existem na política, nomeadamente ressentimentos regionais e étnicos, fanatismo religioso (este último responsável pelo jornalismo ideológico e pouco respeitador dos órgãos do Estado de alguns sectores da imprensa privada favorável à oposição) e oportunismo político consubstanciado nas formas de recrutamento de militantes. É claro que qualquer um destes partidos pode nos surpreender e, contra toda a previsão, suplantar os seus próprios e fazer melhor. Mas seria bom que isso também fosse discutido ao invés de se assumir a posição intelectualmente preguiçosa de achar que tudo é melhor do que se tem agora.
De alguma maneira, o momento que o país atravessa recorda um pouco as peripécias históricas que envolveram o Império de Gaza. Ngungunyan perdeu a guerra com os Portugueses porque os seus vassalos pensaram que os portugueses fossem libertadores. Ele ainda os avisou a partir da embarcação que o levou ao exílio, mas a sua voz não se ouviu porque estavam todos a gritar de júbilo pelo facto de Mdungazi (o confusionista) ter sido vencido. A história, para perverter Hegel e Marx, repete-se primeiro como tragédia, depois como farsa.
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