domingo, 17 de agosto de 2014

Santo André

A cidade que continua por fazer
João Sousa tem bem a noção de que é um dos “pioneiros” da cidade nova de Santo André. Técnico de correntes fortes de electricidade, foi ele que fez a primeira caixa de média tensão na área de Sines para a instalação da nova refinaria. “Ainda estavam a fazer as terraplenagens”, conta. Era 1971: o Gabinete da Área de Sines (GAS) acabava de ser criado e 41 mil hectares seriam expropriados a pequenos e médios proprietários, numa área de mais de 35km, da lagoa de Santo André até Porto Covo, para desenvolver o projecto industrial e portuário de Sines, empreendimento que mudou radicalmente a face do litoral alentejano.
“Aqui não havia nada, nada, rien du tout. Era areal, pinhal, arrozal, a costa e a lagoa”, conta João Sousa, de 72 anos, apontando para a carta topográfica militar de 1944 na parede, tentando mostrar que havia um antes (e um depois) deste complexo urbano criado nos anos 70 que hoje se chama Vila Nova de Santo André (cidade, apesar do nome), no concelho de Santiago de Cacém, a primeira cidade construída de raiz em Portugal no século XX.
Um antes difícil de imaginar, entre a lezíria e o ferragial, o pomar, a vinha e a pesca à linha. Um antes em que os lugares tinham nomes estranhos: Giz, Brescos, Cebolas, Deixa-o-Resto, Azelhal. Um antes que pertencia apenas, desde o século XIX, ao “ciclo do arroz” da Comporta à Lagoa, que alternava o solo das colheitas de arroz em pântanos e pauis. Difícil de imaginar, “porque não tem nada que ver com a imagem de marca do Alentejo, uma zona seca, onde falta água, de seara, de planície, de grandes espaços. Com o novo complexo do porto de Sines começa a construção da contemporaneidade em Portugal”, explica à Revista 2 o historiador João Madeira, também professor na escola secundária em Santo André.
A cidade é um corpo estranho, ainda hoje, 40 anos depois, para quem chega e para quem nela vive. Totalmente nova, construída do zero, no meio do areal, desenhada de raiz por homens que sonharam (talvez?) grande de mais: seria uma espécie de Brasília, de cidade do futuro, onde trabalharam quase todos os grandes arquitectos portugueses da democracia? Uma cidade nova perdida num grande território como a América, ou um colonato em Israel? Antes um “cogumelo urbano”, “um microcosmos” que, diz Madeira, como um fungo nasceu aqui na Charneca do Areal.
Ao ciclo do arroz seguiu-se o do “cimento armado”, conta o escritor Luís de Sttau Monteiro em Um Areal de Esperança, uma obra inédita, encomendada pelo Gabinete da Área de Sines nos anos 80 (já vamos aos porquês) sobre a história, as origens e as pessoas de Santo André, a que a Revista 2 teve acesso por cortesia de João Madeira. A partir de 1971, o Gabinete tornou-se num “gigantesco latifundiário”, que veio quebrar a “monotonia desta angústia natural” de uma área vazia onde “os plantadores da ‘cidade a haver’”, Santo André, vieram “semear” betão: “E as chaminés das fábricas reduziram os pinheiros à dimensão de brinquedos”, escreveu Sttau.
Nascido da revisão do plano energético nacional no final dos anos 60, o complexo industrial de Sines, tutelado pelo GAS, foi criado em 1971. “O país precisava de uma nova política industrial, eram precisos ideias e objectivos porque o modelo que tínhamos estava esgotado”, explica Guilherme Câncio Martins, arquitecto e um dos fundadores do GAS (a par de António Martins, engenheiro). Na altura, “saiu um relatório sobre a localização de um possível complexo de indústrias de base em Sines, com porto de águas profundas, siderurgias, refinarias e indústria automóvel. Para se fazer Sines e o pólo urbano de Santo André, era necessário que houvesse ali uma política industrial continuada, persistente e com capacidade de execução: foi assim que se criou o GAS.”
Foi o próprio Marcelo Caetano que anunciou a criação do novo porto de águas profundas e do complexo industrial (refinaria e petroquímica) no seu programa semanal na televisão pública, Conversas em Família. E era com o próprio Caetano que “as mães do Gabinete, eu e o António Martins”, graceja Câncio, reuniam e despachavam semanalmente.
Talvez o projecto de Sines se tivesse transformado numa “distopia”, diz João Madeira. Foi gizado no auge do “optimismo reformista” do final do Estado Novo, e a nova cidade nasceria integrada no desenvolvimento económico e industrial da área. Mas foi um projecto que, diz João Madeira, “nasceu logo em contramão”: criado para receber os grandes petroleiros, teve de ser repensado após a primeira crise petrolífera de 1973, que veio mostrar as fragilidades das economias dependentes das flutuações do preço do barril de crude. Ainda assim, a descoberta de jazidas de petróleo em Cabinda, Angola, no final dos anos 60, veio dar uma nova esperança a um país pequeno que precisava das colónias em África para garantir a sua independência energética. O 25 de Abril de 1974 interrompeu essa ambição e o processo revolucionário que se lhe seguiu obrigou a um contínuo repensar do projecto de Sines. Um projecto que “lançava as bases da maior aventura portuguesa deste século [XX]”, escreveu Sttau no seu inédito, “já que nele se alicerçava a esperança de irmos entrar numa era de industrialização progressiva e planificada.”
Santo André surgiu assim como elemento urbano do complexo industrial. Era necessária uma nova cidade para acolher os futuros trabalhadores. Ainda se consideraram soluções mistas — expandir a área urbana de Sines e/ou de Santiago de Cacém —, mas Câncio Martins explica que, entre outras razões (e vários estudos, que envolviam níveis de poluição, tampão verde de pinhal, possibilidade de expansão urbana ou risco de suburbanização das cidades existentes), as rivalidades históricas entre Sines e Santiago não permitiam chegar a consenso. As gentes de Sines (pescadores, piratas, lobos do mar) e as de Santiago (proprietários rurais, fidalgos, camponeses) nunca se entenderam: “Aquela gente do mar... eles acham que são piratas e vivem da lei dos corsos, mas as gentes do mar não têm nada a ver com a lei da terra. É outra cultura: ali, era a cultura do mar contra a cultura da serra.”
A zona onde Santo André foi construida era de areal, pinhal e arrozal
Desenhou-se, por isso, um projecto urbano inovador para Santo André recorrendo aos métodos mais modernos de planeamento urbano (modelos matemáticos), inspirado nas new towns inglesas (como Milton Keynes), e assessorados por arquitectos e urbanistas como Adam Mazor (israelita) ou Lloyd Rodwin (norte-americano). O Gabinete projectou inicialmente uma cidade para 16 mil habitantes com a possibilidade de chegar aos 100 mil. “O projecto era absolutamente visionário”, diz João Madeira, “mas é quando o GAS se extingue no final dos anos 80 que se percebe que toda aquela grandiosidade não correspondia à realidade”. Para Câncio Martins, “não há sonhos grandes nem pequenos: há ou não há sonhos. E acho que Sines não era só um sonho, era uma realidade feita de pessoas.” O tempo, diz, deu-lhe razão: “Hoje, o porto de Sines é um dos mais importantes do país” e sublinha a sua relevância geoestratégica com a ampliação do canal do Panamá e a criação do novo canal na Nicarágua. “O que nunca nos faltou foi a visão a prazo e essa cada dia se confirma mais. Sabíamos para onde íamos. É isso que falta ao país, hoje.”
As tensões entre a terra (Santiago) e o mar (Sines) continuaram, mesmo quando no meio do areal de Santo André começaram a nascer as primeiras casas, os primeiros bairros. A nova cidade começou a ser construída em 1973, os primeiros habitantes, misto de população temporária da construção civil, junto com migrantes do Baixo Alentejo e da zona de Lisboa e Setúbal, começaram a ocupar as casas rasas no Bairro da Lagartixa em 1974. “E o Bairro da Lagartixa foi-se cobrindo de casas baixinhas, acinzentadas, muito semelhantes às construídas em muitas zonas da Europa, a título temporário, para suprir as carências habitacionais criadas pela guerra”, escreveu Sttau.
O ano de 1974 é fundamental, diz Francisco do Ó Pacheco, presidente da Câmara de Sines entre 1976 e 1997. “É nesse ano que a população de Sines descobre, de facto, o que era o projecto do GAS.” Depois da Revolução, os sineenses criaram uma “comissão de protesto à forma como o complexo estava a ser gerido” — contestavam as expropriações, os pagamentos e, sobretudo, “quais as reais intenções para o porto de pesca” na cidade, explica Pacheco. “Fizemos várias sessões de esclarecimento antes e depois do 25 de Abril. Ouviu-se um certo número de coisas. O porto de pesca está lá hoje porque o GAS ouviu os interesses da população e porque deu instrumentos para que ele se realizasse”, contrapõe Câncio Martins.
Se, antes do 25 de Abril, as autarquias não tinham voz, “em 1974 conseguimos retomar as nossas competências e a câmara não queria sentir-se responsável pelos erros do GAS”, conta Pacheco. “A minha primeira medida enquanto autarca foi correr com eles, pô-los a andar daqui”. Eles, o Gabinete. Sines era “um estaleiro com as obras da refinaria, do porto, da auto-estrada”. Eram cerca de “6, 7 mil trabalhadores”, “quase todos homens”, “as chatices que isso dava na pacatez da vila, a tensão social com as mulheres, as tabernas cheias, o aumento da prostituição: em 1977, tive de impor um ‘recolher obrigatório’ ao mandar encerrar os estabelecimentos à meia-noite.”
O arquitecto Francisco Silva Dias, que tomou as rédeas da segunda fase do projecto em 1975, participou em várias sessões de esclarecimento: “Punha-se em causa se o projecto deveria continuar ou ser suspenso, porque era um ‘elefante branco’ e para isso, dizia-se, já chegava o Alqueva. Uns queriam que continuasse, outros diziam que já se tinha investido muito, que deveria ser repensado. Na altura, já era o Governo de Vasco Gonçalves, decidiu-se continuar com o projecto, e ainda bem.”
João Sousa fez a primeira caixa de média tensão na área de Sines para a instalação da nova refinaria
Para Câncio Martins, “não houve reveses”. Sines queria manter “o modelo que lá estava: uns velhotes a jogar às cartas e uns tipos nas redes a pescar. Quando chegava o Verão, tinham 3 ou 4 mil turistas, faltava-lhes a água potável, não tinham condições. Esse era o modelo que Sines queria. Eles nunca aceitaram nem perceberam o projecto”. A discussão, aqui, era decidir qual o melhor modelo para o desenvolvimento do país: se o industrial ou turístico. Câncio Martins não tem dúvidas: “Para turismo, temos capacidade por todo o lado. Porto de águas profundas temos só aquele, Sines.” Já Pacheco, que defende o turismo local, assegurou anos depois, com o primeiro Plano Director Municipal, “estancar a expansão industrial” na zona e “integrar parte do concelho de Sines na paisagem protegida do Sudoeste Alentejano”.
Enquanto em Sines se lutava contra o todo-poderoso Gabinete, 15 quilómetros a norte, em Santo André, o GAS era uma espécie de “Estado dentro do Estado”, quase como uma “autarquia”, explica o professor Mário Primo, que chegou à cidade em 1976 para dar aulas na primeira escola preparatória. Foram anos turbulentos (74-75-76), de PREC, de incertezas, de governos provisórios. Mário Primo dá apenas como exemplo que, “quando queríamos materiais de educação para a escola” — papel, réguas, compassos —, “o Gabinete era o nosso Ministério da Educação”.
“Os gajos [do Gabinete] eram loucos: aqui era tudo à grande”, diz João Pires, de 48 anos, especialista em controlo industrial, um dos primeiros habitantes da cidade — tinha, então, 10 anos. “Eu era miúdo, sabia pouco, mas ouvia as conversas dos adultos. Era claro que numa altura em que havia crise em Portugal, o Gabinete tinha um poder e uma capacidade de execução fora do comum. Era um pouco como o marquês de Pombal da época”, continua.
“Aqui viveram-se grandes ilusões nem sempre confirmadas”, diz Mário Primo. “Era um complexo industrial tão grande que ainda nem estava terminado e já havia um Livro Branco a questionar a justeza do projecto”. Sem dúvida, continua o professor, “quem geriu o complexo certamente que teve à sua disposição enormes somas de dinheiro: foi uma cidade construída em pouquíssimos anos, as empresas de construção abriam falência [por má gestão], os orçamentos das obras resvalavam, há inúmeras histórias de investimentos precipitados.”
A construção de alguns fogos “foi levada a cabo num clima perturbado por acidentes de percurso relacionados com a falência de uma empresa de construção civil”, descreve Sttau Monteiro. “As cicatrizes destes incidentes estão bem patentes no centro urbano: rachas profundas nas paredes de muitos edifícios mal construídos, ou terminados à pressa por empresas arruinadas e, rachas, ainda mais profundas, nas vidas de quem neles reside.”
Bastava ver “as construções que eles faziam”, diz Pires, que primeiro viveu no Bairro Azul, de construção colectiva para acolher os trabalhadores temporários. A sua mãe era uma das pouquíssimas mulheres da cidade, trabalhava na cantina do estaleiro. “Aquilo não tinha paredes nem divisórias”. Quando começaram a preparar as construções para o Bairro dos Caixotes, onde Pires viveu depois, “era tão grande e tinha uma área tão vasta que as pessoas se perguntavam: será que eles vão fazer ali uma praça de touros?” Pires graceja: “Eles eram tão loucos” (os do Gabinete) que era “bem possível que fizessem uma praça de touros antes de fazerem infra-estruturas para as pessoas”. “A gente não tinha nada, nada. Não havia estradas, passeios, a electricidade de toda a cidade era fornecida por um gerador. Havia uma papelaria, uma mercearia e um talho. Quase não havia comida: só saibre”, descreve. Não havia gasolina e, durante anos, a população tinha de ir até Santiago ou Sines para se abastecer. Na escola de Mário Primo, não havia telefone: “O telefone era público e estava lá fora, no pinhal, preso a uma árvore.” Não havia iluminação pública, “isto era quase inabitável: era uma grande angústia viver aqui”, conta Primo.
A opinião geral de que o Gabinete era essa entidade superpoderosa “que não prestava contas a ninguém”, que “despachava directamente com o primeiro-ministro” e que “não respondia a nenhuma autoridade local ou a qualquer ministério”, diz Francisco do Ó, que vivia “acima das possibilidades do país”, com administradores residentes em Lisboa ou em Tróia, a viajar “diariamente para sul com ajudas de custo”, não era um simples chiste popular. “Não era um rumor, era uma realidade”, diz Câncio Martins. “Se não fosse assim, aquilo que lá está não seria como é. Já viu o que era cada sector puxar pelos seus interesses?” O arquitecto justifica, assim, a dimensão do projecto: “Havia muitos interesses. Havia até quem quisesse fazer a nova refinaria ali no Terreiro do Paço”, ironiza. “Estamos a falar de famílias e de interesses económicos, todos aqueles que começaram a fazer campanhas — se for a ver, as mesmas famílias e os mesmos interesses de hoje — com tentativas de boicotar o projecto. Mas havia uma orientação clara, e desde sempre ela manteve-se forte. Se o GAS tem algum mérito, foi ter tido um rumo e haver pessoas que, ao nível do poder político, não foram em conversas e tiveram visão e estratégia”, acrescenta.
Exemplar do poder do Gabinete, aquando da instalação da primeira farmácia em Santo André (só em 1982), escrevia-se assim no Cidade Aberta, jornal do GAS: “Foi recentemente concedido pela Direcção-Geral de Saúde, única entidade a quem compete a indigitação do concessionário para a exploração duma farmácia em qualquer zona do país, o alvará para a abertura da primeira farmácia em Santo André. (...) Todo este processo se tem arrastado ao longo dos anos, apesar dos esforços do GAS no sentido de solucionar o problema. Não tendo o Gabinete competência para a designação de um farmacêutico, pôs em 1978 à disposição da Direcção-Geral de Saúde o espaço destinado às futuras instalações da primeira farmácia desta Cidade.” A chegada da farmácia era tão esperada pela população que o Gabinete, continua o artigo, “decidiu acelerar, na medida das suas possibilidades, a sua abertura ao público, pelo que se dispôs, a título excepcional, a realizar as obras exteriores nos módulos atribuídos”. Habitantes do Bairro Pôr-do-Sol contaram à Revista 2 que as obras da farmácia se fizeram num “ápice” e que, então, se trabalhou “dia e noite” na sua instalação.
Lagartixa, Pôr-do-Sol, Pinhal, Caixotes, Bairro Azul, Panteras, Picapaus, Flores, Horizonte, Torres, Atalaia, Petrogal, Empec, Serrotes, Liceu: os bairros chamam-se assim, como se a cada bairro se quisesse atribuir uma identidade em falta. Nomes que nascem das empresas que os construíram (Petrogal, Empec), ou da cor com que os pintaram (Azul, Panteras “cor-de-rosa”), da sua forma física estranha (Serrotes), ou do sonho de quem os fez: “Construímos o nosso próprio bairro, as nossas casas, em 1979. Fizemos os arruamentos, demos a toponímia”, explica João Sousa. “Chama-se Bairro Horizonte porque estava no nosso horizonte ter casa própria. As ruas são coordenadas: Lua Nova, Lua Cheia, Estrela, Sol Nascente e Sol Poente.”
“Queríamos que se começasse a dar nome às ruas: a questão da toponímia foi uma das mais importantes”, explica o arquitecto Luís Vassalo Rosa, que chegou ao projecto do Centro Urbano de Santo André em 1981. Reconhecendo o trabalho inovador que ali vinha sendo feito desde os anos 70, “quer pelos instrumentos utilizados, quer pela interdisciplinaridade das equipas”, estabelecendo “uma visão macroestratégica do urbanismo”, Vassalo Rosa tornou-se director do Centro Urbano com uma missão: “Fazer a revisão do plano de acordo com uma nova perspectiva, a vinda da fábrica de automóveis da Ford”, que iria instalar-se em Sines e que, cria-se então, traria um grande volume populacional, constituído pelos trabalhadores e pelas suas famílias.
A possibilidade da chegada da Ford nos anos 80 significou um novo fôlego, “uma nova esperança de que a área de Sines ia finalmente dar a volta”, explica João Madeira. Mas a fábrica acabou por não vir — o Bairro do Pinhal tinha acabado de ser construído para esse propósito. As vivendas feitas para os administradores nunca chegaram a ser ocupadas. Com os anos, foram abandonadas, vandalizadas, pilhadas e só recentemente reconvertidas em habitação.
Poder desenhar o futuro como desejar “pode ser um sonho ou um pesadelo” para os urbanistas e arquitectos
A ideia de que, para um arquitecto ou um urbanista, o grande sonho é ter um vasto espaço só seu para aí poder desenhar o futuro como desejar, pode também ser “uma grande angústia”, explica o arquitecto Francisco Silva Dias: “Pode ser um sonho ou um pesadelo”, ri-se. Confessa, como um dos mentores do Centro Urbano, que naquela altura “andávamos à procura do que seria um gérmen de cidade, quase como se andássemos à procura da pedra filosofal. Quais os ingredientes que devíamos misturar para que aquilo fosse uma aldeia, uma vila, uma cidade, uma metrópole, e um dos ingredientes que nos faltavam era o apelo daquele lugar”, conta. Ali não havia “uma preexistência qualquer, umas ruínas, um moinho, nada!” Era um lugar sem história: “Não sabíamos quem seria a população no futuro, quem iria lá viver, e isso mostrou-nos que o passado, a história, o haver comum têm importância” na construção de uma cidade.
Quando Vassalo Rosa ali chegou, dez anos depois do nascimento do projecto, viu “que as pessoas se sentiam muito desenraizadas, que nada daquilo era seu, que aquilo era extremamente anónimo”. Era importante “dar nomes às coisas, para que as pessoas tivessem as suas referências e que os nomes estivessem naturalmente relacionados com o que lá ocorria”. Um dos projectos foi pedir um trabalho de cor ao pintor Eduardo Nery, que trabalhou várias gradações do cor-de-rosa num bairro a que depois se chamou de Panteras. O mesmo sucedeu com a cor amarela do bairro que depois se chamou Picapau, inspirado na série brasileira Sítio do Picapau Amarelo. “Tudo isso era aliciante, porque eram coisas que, de facto, não eram importadas de outro sítio e para ali levadas. Eram coisas que nasciam dali mesmo, e que ficaram”, conta Vassalo Rosa.
Não foi só o arquitecto que sentiu que chegar a Santo André, naquela início dos anos 80, era “ser-se quase estrangeiro”. Também o escritor Luís de Sttau Monteiro no seu estudo etnográfico documentou algo semelhante: “Quando o autor destas linhas chegou ao novo aglomerado de Santo André, teve a nítida sensação de ter saído da Europa e de ter entrado numa cidade inteiramente alheia à sua experiência. (...) Nada, porém, em Santo André se pode classificar de moderno. Santo André não é moderno nem deixa de ser: é pobre, triste, pouco imaginativo, quase primitivo.”
Nuno Damas veio de Moçambique para o Bairro da Petrogal
Era já a cidade nova, o centro urbano, cidade do futuro, o tal “cogumelo” no meio das areias e do pinhal, mas, no fundo, continuava a ser aquele corpo estranho que mesmo quem lá vivia não sabia compreender onde começava, onde terminava. “Eles não faziam ideia do que era viver aqui”, diz João Pires. Pires veio de Moçambique com a independência. João Sousa passou por Angola, de onde regressou em 1974. Também Nuno Damas, 41 anos acabados de fazer, da idade da terra, veio de Moçambique para o Bairro da Petrogal, empresa onde trabalhou o pai. São todos retornados: grande parte da população de Santo André nos 70 veio das ex-colónias. Era um lugar onde havia trabalho e onde havia casas. “Começaram a chegar, trazendo o seu capital na bagagem: uma dor permanente e sem cura possível”, escreveu Sttau, após entrevistar centenas de habitantes. Mas, contrariamente à opinião comum de que Santo André é “uma terra de retornados” (João Madeira), de que “houve sempre um estigma negativo em relação a Santo André porque foi associada aos retornados” (Mário Primo), ou de que “quem deu identidade a Santo André foram os retornados” (Câncio Martins), o estudo sobre integração de residentes nas ex-colónias em Vila Nova de Santo André, da investigadora Cristina Galhardo Mendes, revela que, apesar de “em momento algum [ter sido] colocada em causa a forte presença de oriundos das ex-colónias”, o Censo de 1981 situa “a população de Moçambique e Angola em 41%, enquanto a estimativa para os oriundos de zonas diversas de Portugal foi de 57%”.
Não eram a maioria, mas não importava que os números dissessem o contrário: em 1974, Santo André era uma espécie de “terra prometida” e, para uma população desenraizada, bem preparada, de quadros técnicos com experiência nas ex-colónias, que vinham trabalhar para a indústria petrolífera, aquele poderia ser o sítio certo para começar de novo. Havia, contudo, uma tristeza, uma monotonia naquela cidade vazia de blocos de cimento armado, como descreve Sttau: “À medida que ia percorrendo a cidade, o autor destas linhas ia-se sentindo cada vez mais deprimido, mais angustiado, mais desejoso de regressar ao mundo dos vivos. (...) A cidade era triste, e a tristeza das casas era de tal forma contagiosa que se pegara às pessoas.” Em contacto com a população retornada, Sttau Monteiro reproduzia testemunhos de um grande vazio, de perda, de nostalgia, de um quase trauma pelo “regresso”.
Talvez por isso Vassalo Rosa tenha “obrigado o casario a sorrir” (roubando a expressão a Sttau), encomendando os trabalhos de cor. Mas também outros: o Departamento de Planeamento do Centro Urbano (DPCU) desenvolveu então uma série de projectos de contacto com a população, de envolvimento das crianças, “a primeira geração para se enraizar”, explica Vassalo Rosa, através do desenho dos espaços verdes, livres, de equipamentos desportivos, e com a criação do Cidade Aberta.
“Ao repensar o projecto, reflectir sobre o que já estava feito e consolidar o espaço urbano, era necessário lançar aquela parte que, para mim, era mais importante: a memória. Isto é, a constituição de um espaço público, requalificando-o, porque as coisas estavam ainda muito desarticuladas”, diz Vassalo Rosa. “A nossa preocupação era que a população sentia que aquele território não tinha história nem memória.”
E não tinha, de facto: “A evolução da cidade fez-se de forma gradual: um bairro, depois outro, depois outro”, conta Damas, que frequentou a primeira escola primária, no Bairro Pôr-do-Sol. “As estradas ainda eram de areia: havia um autocarro da Petrogal que nos levava de casa à escola todos os dias”. Alguns dos percursos, conta João Pires, eram os “caminhos dos resineiros: a carrinha da Petrogal roçava na copa das árvores, a abrir caminho pelo pinhal fora”. Parecia tudo longe, distante, nessa cidade “polinucleada”, “aglomerado” urbano, fruto de “modelo matemático”, nomes que as populações não compreendiam. No fundo, diz Nuno Damas, “quem fez Santo André foram as crianças, na escola, no futebol, no judo, porque as coisas estavam muito dispersas, cada um fechado no seu bairro.” Eram “muito bairristas”, diz Damas, “elegíamos os melhores e os piores bairros”: as Torres eram um dos melhores porque “era o único bairro com elevador e as crianças iam lá só para os experimentar.” Conta João Pires: “Nos anos 70, tinha 10, 11 anos, queria ir dos Caixotes até ao Bairro da Lagartixa e era tão longe, tão longe que a minha mãe tinha receio que eu me perdesse.” São quase dois quilómetros, na altura, através de uma grande extensão de areia (no Inverno, de lamaçal) e de pinhal.
João Pires com o filho. Em miúdo, o seu sonho era que Santo André tivesse um liceu
João Pires é um dos pioneiros — tal como Mário Primo, Nuno Damas ou João Sousa. É o mesmo miúdo, agora com 48 anos, que aparece numa das páginas do jornal Cidade Aberta, em 1982, num inquérito de rua. Já na época, não poupava críticas ao Gabinete, porque Santo André “não é uma cidade como dizem que querem fazer” e deixava um desejo: “Quanto ao futuro, gostava de ter um liceu. Já não será para mim, porque, promessas há muitas, mas vejo poucas concretizadas. Gostava que houvesse mais desporto, para que uma pessoa não tivesse que andar a voltear aí pelas ruas, sem ter nada que fazer.”
Mais de 40 anos depois, Santo André parece ser ainda um espaço à procura da sua identidade. Vassalo Rosa sente que “as coisas ficaram muito aquém daquilo que desejámos, aspirámos”. Os arquitectos e urbanistas sonham, planeiam, desenham maquetas, traçam estradas e caminhos, mas sabem que as cidades são feitas de pessoas. Câncio Martins costuma citar o filme de Eric Rohmer O Amigo da Minha Amiga a este propósito: “Por vezes, pensámos que o arquitecto podia criar o Homem, mas abandonámos essa ideia.”
Talvez “aquele tenha sido um sonho demasiado grande”, diz Francisco Silva Dias. “Começou com uma certa megalomania, mas podemos pensar que, se não fosse assim, não teria sido — aproveitaram-se muito bem as circunstâncias políticas, um certo entusiasmo que a Primavera Marcelista trazia”. Ainda assim, Santo André parece ter encontrado esse “gérmen de cidade”, ainda disperso, desarticulado, pouco densificado, “gérmen que acaba por coincidir com o gérmen de país, de nação, na democracia: era importante que as pessoas pudessem ser felizes ali”, diz Silva Dias. A “gratificação” de cada regresso à cidade de Francisco Silva Dias, contrapõe-se com uma “certa nostalgia” de Vassalo Rosa: “Quando lá vou, continuo a pensar que, materialmente, como estrutura urbana, ainda continua muito perdido. Quando chegamos a estas coisas, pensamos que vamos fazer algo e que as coisas se vão concretizar como a gente as pensa, mas depois ficam muito aquém.”
As pessoas foram ficando. Nuno Damas, empresário, diz que, depois de ter vivido vários anos em Lisboa, para estudar, regressou e não quer sair: “Sou de cá e gosto disto. Estou a uma hora e meia de Lisboa e a dez minutos da praia. Não tenho stress, não tenho poluição. Isto é seguro, não temos problemas de estacionamento”, diz. Os salários “são altos”, as “pessoas vivem bem”, mas falta “dinamismo autárquico, faltam empresas, faltam eventos” porque “esta é uma terra de oportunidades”, mas não “temos sabido aproveitá-las”.
João Sousa sente que “Santo André começou a morrer quando viu que os filhos da primeira geração não tinham possibilidade de emprego”. Santiago, Sines ou Lisboa têm as suas características: “E nós, que características temos? Um kartódromo? Um pavilhão gimnodesportivo da Petrogal? Falta um ‘nós’ a Santo André”, diz Sousa. Apesar dessa “mágoa”, acabou por ficar, criou família, assentou: a filha é médica no Hospital de Santiago, os netos vivem aqui. João Pires também criou a sua própria empresa. Enquanto conversava com a Revista 2 no Parque Central, o filho brincava na rua, às escondidas, à apanhada. Santo André “é uma cidade com algumas qualidades — tirando o traçado”, ironiza. Aqui “respira-se liberdade, há uma noção de espaço e de natureza que não temos noutra cidade. De facto, não tem um lado bucólico, ruas estreitas, edifícios históricos, mas é um sítio bom para viver.” O filho, que nasceu em Aveiro “por acidente”, costuma dizer “que aqui é Portugal e em Portugal temos tudo.”
Sttau Monteiro conclui o seu livro com uma nota sobre um amanhã, um futuro de uma cidade nova feito das crianças que “quando, daqui a muitos anos, se recordarem dos tempos em que andaram aos ninhos, ou a trepar às árvores, serão os pinhais de Santo André que eles voltarão a ver”. Foi essa a satisfação da cidade viva que Vassalo Rosa encontrou, tantos anos depois, quando a visitou: “São essas pessoas que vão construir o futuro. A cidade está sempre a transformar-se. São capas sucessivas. Essas gerações é que vão fazer Santo André, porque Santo André ainda não está feito.”    

Comentários

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Caracteres restantes:
  1. Bom artigo de um assunto já várias vezes abordado, por ser um caso raro em Portugal. Já seria era hora de fazerem uma peça com o panorama exterior, do que foi a construção de uma cidade nova para os habitantes de Santiago do Cacém e de Sines. Do que foi ver as cidades a estagnarem durante cerca de duas décadas por imposição do GAS para crescer um corpo estranho nos seus "quintais". Nota para o Azelhal que de facto se chama Azinhal!
  2. Uma reportagem de qualidade! Parabéns! Gostei especialmente de correr a notícia e de surgirem as imagens lentamente. Gosto

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