O Parlamento moçambicano está para aprovar um código penal que inclui um artigo problemático. Segundo esse artigo, e pelo que oiço dizer por aí, quem violar alguém será obrigado a casar-se com a vítima. Trata-se, obviamente, duma palhaçada jurídica resultado duma leitura pouco cuidada (a versão que eu tenho do código penal é datada de 31 de Agosto de 2006, tem 548 páginas, 486 artigos, sem contar com as propostas de emendas! Quem pode ler isso tudo com atenção?), mas também do legado colonial que não nos quer largar. Tenho a certeza de que os deputados não vão aprovar esse código com esse artigo. E isso será, por um lado, resultado da indignação nacional e internacional, mas também do bom senso dos próprios deputados. Parece tempestade em copo de água.
Mas o assunto interessa-me por outras razões. Muitos dos que se pronunciaram contra este lapso jurídico, incluíndo (como não podia deixar de ser) a Amnistia Internacional, levantaram uma questão muito específica: disseram, com efeito, que a lei violava direitos humanos. Recebi convites para juntar a minha assinatura a apelos que visavam travar uma violação grave dos direitos humanos em Moçambique. Ontem reli a Declaração Universal dos Direitos Humanos à procura do direito humano que essa lei em particular violava, e não o encontrei. A questão pode parecer académica, mas não é. Há diferença entre autorizar a violação sexual (ou a tortura, por exemplo) e não ter sanções à medida do problema. A lei em questão reconhece a violação sexual como um crime e penaliza (ainda que de forma bastante fraca) o perpretador. Logo, do ponto de vista estritamente formal essa lei não constitui nenhuma violação dos direitos humanos. Se ela constituísse isso, então, e logicamente, teríamos de considerar todo o edifício jurídico moçambicano como sendo violador dos direitos humanos porque apesar de condenar todo o tipo de crimes não tem mecanismos eficazes de punição dos perpretadores. Na verdade, nessa linha de argumentação teríamos também de dizer que todo o edifício de relações internacionais é um atentado aos direitos humanos, pois apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos não impede (por via de todo o tipo de instrumentos internacionais, incluíndo o reajustamento estrutural...) que as pessoas não usufruam dos direitos consagrados nessa carta.
O que quero dizer é simples. Não me parece útil para a sanidade da abordagem dos nossos problemas recorrer a argumentos normativamente sonantes na esfera global, mas que na prática são de pouca utilidade ao nível local. A linguagem dos direitos humanos é útil como referência normativa, mas do ponto de vista prático ela só faz sentido quando articulada localmente. O local ao qual me refiro não é a tradição ou cultura, mas sim a experiência histórica que nos constitui como comunidade e que nos condena a vivermos juntos. Por enquanto. Refiro-me à conversa que é necessária entre nós, a conversa que o cidadão a título individual ou de forma colectiva deve manter com o seu representante, uma conversa que não acontece apenas ao nível desse horrível instrumento de governação herdado da Frelimo gloriosa e que se chama “auscultação popular” (muitas vezes acompanhado da criação duma comissão que depois vai ao exterior “colher experiências”), uma conversa, portanto, que constitui ela própria a política, dá sentido e conteúdo à política. Essa conversa produz e alicerça uma verdadeira sociedade civil enquanto articuladora dos vários interesses que fazem o nosso país; uma conversa que não está virada lá para fora, para discursos normativos vagos que impõem a indignação como forma de governo. Refiro-me a uma conversa que incute à nossa sociedade civil profissionalizada o hábito de falar com os representantes dos eleitores, o hábito de primeiro falar com o deputado ou com o partido cá dentro antes de lançar um apelo internacional para seja que assunto for. Só isso vai tornar o nosso país forte na defesa dos direitos humanos.
Embora considere a ideia de direitos humanos importante para a moralização da acção política (e não só), tenho, pessoalmente, muitas reservas em relação aos instrumentos internacionais. Tenho simpatia pela posição dos antropólogos americanos que se opuseram à declaração quando ela foi emitida pela primeira vez em 1945 com base no argumento segundo o qual ela seria demasiado etnocêntrica. Há, naturalmente, uma certa convergência ética ao nível internacional. Contudo, incomoda-me bastante que se aceite quase de forma tácita que o significado profundo que cada um desses direitos insere seja apenas intelegível a partir da experiência cultural ocidental. A minha simpatia por este tipo de instrumentos sofreu um revés enorme quando uma das minhas filhas (que estuda direito) chamou a minha atenção no ano passado para o artigo 38 do Estatuto do Tribunal Internacional aprovado em 1945 e que não sofreu praticamente grandes alterações até hoje. No número 1 desse artigo, que se refere à resolução de conflitos de interpretação do estatuto, a alínea c dispõe que nesses casos as partes farão recurso, entre outros, aos princípios jurídicos gerais de “povos civilizados”. O termo “civilizado” é usado pelas versões em francês, inglês e português para qualificar “povos” ou “nações”. Em alemão encontrei duas versões, nomeadamente “Kulturstaaten” e “Kulturvölker”, todas elas de conotações horríveis para quem está familiarizado com o discurso racial europeu do século XIX e com a ideia de “estado natural” empregue outrora para classificar a nossa parte da humanidade.
No fundo, o meu argumento – para que me apedrejem com conhecimento de causa – é simples: o discurso dos direitos humanos, como todo o discurso normativo e emocional, não me parece muito útil para a abordagem séria dos nossos assuntos. É importante como ponte para a conversa com os outros lá longe, mas enquanto não formos capazes de formular a nossa crítica a uma lei como a que não incomodou o sono dos nossos deputados em termos localmente intelegíveis, termos fundados na nossa própria experiência histórica, teremos um edifício jurídico bonito, mas sem vida, e que em nada contribuirá para a causa dos direitos humanos.
Estamos juntos. Ou não.
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