sexta-feira, 14 de março de 2014

A indignação como forma de governar



O Parlamento moçambicano está para aprovar um código penal que inclui um artigo problemático. Segundo esse artigo, e pelo que oiço dizer por aí, quem violar alguém será obrigado a casar-se com a vítima. Trata-se, obviamente, duma palhaçada jurídica resultado duma leitura pouco cuidada (a versão que eu tenho do código penal é datada de 31 de Agosto de 2006, tem 548 páginas, 486 artigos, sem contar com as propostas de emendas! Quem pode ler isso tudo com atenção?), mas também do legado colonial que não nos quer largar. Tenho a certeza de que os deputados não vão aprovar esse código com esse artigo. E isso será, por um lado, resultado da indignação nacional e internacional, mas também do bom senso dos próprios deputados. Parece tempestade em copo de água.
Mas o assunto interessa-me por outras razões. Muitos dos que se pronunciaram contra este lapso jurídico, incluíndo (como não podia deixar de ser) a Amnistia Internacional, levantaram uma questão muito específica: disseram, com efeito, que a lei violava direitos humanos. Recebi convites para juntar a minha assinatura a apelos que visavam travar uma violação grave dos direitos humanos em Moçambique. Ontem reli a Declaração Universal dos Direitos Humanos à procura do direito humano que essa lei em particular violava, e não o encontrei. A questão pode parecer académica, mas não é. Há diferença entre autorizar a violação sexual (ou a tortura, por exemplo) e não ter sanções à medida do problema. A lei em questão reconhece a violação sexual como um crime e penaliza (ainda que de forma bastante fraca) o perpretador. Logo, do ponto de vista estritamente formal essa lei não constitui nenhuma violação dos direitos humanos. Se ela constituísse isso, então, e logicamente, teríamos de considerar todo o edifício jurídico moçambicano como sendo violador dos direitos humanos porque apesar de condenar todo o tipo de crimes não tem mecanismos eficazes de punição dos perpretadores. Na verdade, nessa linha de argumentação teríamos também de dizer que todo o edifício de relações internacionais é um atentado aos direitos humanos, pois apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos não impede (por via de todo o tipo de instrumentos internacionais, incluíndo o reajustamento estrutural...) que as pessoas não usufruam dos direitos consagrados nessa carta.
O que quero dizer é simples. Não me parece útil para a sanidade da abordagem dos nossos problemas recorrer a argumentos normativamente sonantes na esfera global, mas que na prática são de pouca utilidade ao nível local. A linguagem dos direitos humanos é útil como referência normativa, mas do ponto de vista prático ela só faz sentido quando articulada localmente. O local ao qual me refiro não é a tradição ou cultura, mas sim a experiência histórica que nos constitui como comunidade e que nos condena a vivermos juntos. Por enquanto. Refiro-me à conversa que é necessária entre nós, a conversa que o cidadão a título individual ou de forma colectiva deve manter com o seu representante, uma conversa que não acontece apenas ao nível desse horrível instrumento de governação herdado da Frelimo gloriosa e que se chama “auscultação popular” (muitas vezes acompanhado da criação duma comissão que depois vai ao exterior “colher experiências”), uma conversa, portanto, que constitui ela própria a política, dá sentido e conteúdo à política. Essa conversa produz e alicerça uma verdadeira sociedade civil enquanto articuladora dos vários interesses que fazem o nosso país; uma conversa que não está virada lá para fora, para discursos normativos vagos que impõem a indignação como forma de governo. Refiro-me a uma conversa que incute à nossa sociedade civil profissionalizada o hábito de falar com os representantes dos eleitores, o hábito de primeiro falar com o deputado ou com o partido cá dentro antes de lançar um apelo internacional para seja que assunto for. Só isso vai tornar o nosso país forte na defesa dos direitos humanos.
Embora considere a ideia de direitos humanos importante para a moralização da acção política (e não só), tenho, pessoalmente, muitas reservas em relação aos instrumentos internacionais. Tenho simpatia pela posição dos antropólogos americanos que se opuseram à declaração quando ela foi emitida pela primeira vez em 1945 com base no argumento segundo o qual ela seria demasiado etnocêntrica. Há, naturalmente, uma certa convergência ética ao nível internacional. Contudo, incomoda-me bastante que se aceite quase de forma tácita que o significado profundo que cada um desses direitos insere seja apenas intelegível a partir da experiência cultural ocidental. A minha simpatia por este tipo de instrumentos sofreu um revés enorme quando uma das minhas filhas (que estuda direito) chamou a minha atenção no ano passado para o artigo 38 do Estatuto do Tribunal Internacional aprovado em 1945 e que não sofreu praticamente grandes alterações até hoje. No número 1 desse artigo, que se refere à resolução de conflitos de interpretação do estatuto, a alínea c dispõe que nesses casos as partes farão recurso, entre outros, aos princípios jurídicos gerais de “povos civilizados”. O termo “civilizado” é usado pelas versões em francês, inglês e português para qualificar “povos” ou “nações”. Em alemão encontrei duas versões, nomeadamente “Kulturstaaten” e “Kulturvölker”, todas elas de conotações horríveis para quem está familiarizado com o discurso racial europeu do século XIX e com a ideia de “estado natural” empregue outrora para classificar a nossa parte da humanidade.
No fundo, o meu argumento – para que me apedrejem com conhecimento de causa – é simples: o discurso dos direitos humanos, como todo o discurso normativo e emocional, não me parece muito útil para a abordagem séria dos nossos assuntos. É importante como ponte para a conversa com os outros lá longe, mas enquanto não formos capazes de formular a nossa crítica a uma lei como a que não incomodou o sono dos nossos deputados em termos localmente intelegíveis, termos fundados na nossa própria experiência histórica, teremos um edifício jurídico bonito, mas sem vida, e que em nada contribuirá para a causa dos direitos humanos.
Estamos juntos. Ou não.
  • Atanasio Zandamela Ainda nao percebi muito bem como funcionara.
    Se o meu vizinho apaixonar se pela vizinha que nao quer nada com ele basta simular violacao ou mesmo violar que no fundo a lei ira formalizar tudo.
    Acho que ainda vao a tempo de mudar de ideia,
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  • Alvaro Simao Cossa Tens muita razao amigo Elisio Macamo , so que dizes que e' palhacada jurica mas e' uma ofenca moral dupla para as vitimas dessa violacao. Esta lei se passar no nosso parlamento eu acho que sera um dos maiores erros que os nossos parlamentares irao cometer . Sera sinal de estupidez e charrito juridico, descaro para as nossas maes, irmas, filhas e esposas, nao faz sentido nenhum para o nosso pais ter leis que so incentivam violadores e estupradores. A legalizacao do crime e' crime tambem.See Translation
  • Bayano Valy tenho que revisitar o teu blogue para ver o que escrevi na alrura quando debatemos justo esta questão. mas que precisamos de uma domesticação lá isso é verdade. só que para tanto temos que nos abstrair See Translation
  • Justino António Cossa O que existe e persiste no no nosso país é a cultura de importar os modelos de ser e estar doutros contextos sociais, em todos os níveis, para aplicar na nossa realidade social. E isso nem sempre resulta, porque directamente ou indirectamente, a curto ou médio prazo, isso acaba criando choques e ´´desequilibrio social. Mais do que se aprovar esse codigo penal, acho que seria pertinenente analisar-se a viabilidade e ou aplicabilidade desse código no contexto moçambicano porque cada caso é um caso. E os valores e regras sociais variam de como cada sociedade constroe o seu mundo. Por isso, a mim também, apoiando-me nas palavras do Dr. Elísio, `` Não me parece útil para a sanidade da abordagem dos nossos problemas recorrer a argumentos normativamente sonantes na esfera global, mas que na prática são de pouca utilidade ao nível local´´.See Translation
  • Amade Mualaca Autentica palhaçada. Entao o segurança que violou uma menina de 4anos isto segundo a reportagem da STV deve casar?See Translation
  • Zenaida Machado "A versão que eu tenho do código penal é datada de 31 de Agosto de 2006, tem 548 páginas, 486 artigos, sem contar com as propostas de emendas! Quem pode ler isso tudo com atenção?" - Quem pode ler isso tudo com atenção? Aqueles que sao pagos salarios e recebem regalias para fazerem isso. O que mais fazem os deputados? Aquele artigo iria passar, sim. Se nao tivesse havido barulho da WLSA. Eu tambem duvidei da seriedade do mesmo. Achei que tivesse havido um engando...uma leitura rapida...ate um colega dizer-me que uma das deputadas, por sinal muito experiente, disse "in record" quando solicitada a comentar esse artigo, que eh preciso que a leis respeitem as culturas locais.See Translation
  • Olivia Mondlane Um pai que viola a filha?See Translation
  • Manuel J. P. Sumbana Eu acho que neste momento só posso indignar-me com a Amnistia Internacional. Quando ela usa métodos de campanha que se assemelham aos métodos quase 'terroristas' que algumas organizações ambientalistas usam, acabam trazendo mais problemas do que soluções.

    Enquanto trabalhava para uma organizaçâo financeira internacional, esta sentiu-se muito pressionada por ONGs internacionais de luta contra o HIV/SIDA até entrar numa posiçâo de liderança nesta luta, para a qual nem tinha experiência nem vocaçâo. Apesar desta ter mobilizado em pouco tempo o balanço da sua participaçâo ficou muito aquém do desejado.
    È claro que só o facto de o parlamento ter acolhido para discussâo esta proposta mostra que os nossos deputados nâo estâo em sincronia com as prioridades do povo em geral.
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  • Elisio Macamo pacífico. creio que estamos de acordo, Atanasio Zandamela, Amade Mualaca e Alvaro Simao Cossa que essa lei é um problema. a discussão que levanto aqui é ligeiramente diferente. o Justino António Cossa responde directamente a isso. espero, contudo, que não tenha dado a impressão de que me oponho apenas à importação de modelos. longe de mim essa intenção. levantei apenas o problema de como a gente lida com estes assuntos e o que isso pode significar para a própria consolidação da democracia. espero que o Bayano volte para completar o seu raciocínio.See Translation
  • Elisio Macamo cara Zenaida Machado, não tenho a certeza se entendi o seu comentário. espero que não tenha entendido a partir do meu texto que eu defendi a ideia segundo a qual os deputados teriam rejeitado a lei mesmo sem a intervenção que está a haver. provavelmente não, e isso está escrito no texto onde digo que isso será graças a essa intervenção e ao bom senso dos deputados que vão reconhecer o lapso. a questão que estou a levantar é em relação ao tipo de barulho levantado por instituições como a wilsa, um barulho perfeitamente legítimo, mas que me parece problemático no contexto duma melhor cultura política nacional. gostaria de saber, por exemplo, se quem fez campanha contra esta lei angariou o apoio de deputados que estão contra - já agora, Ivone Soares, alguém falou contigo a este respeito? - de partidos políticos, etc. para mudar as coisas? é esse tipo de assuntos que gostaria de levantar para discussão. sim, os deputados são pagos para fazerem esse trabalho. mas isso não significa que vão fazer... infelizmente. e quanto à experiência duma deputada: a questão não é se é experiente ou não. a questão é como ela se posicona em relação a um determinado assunto. não tenho dúvidas de que deve haver deputados que concordam com a lei. espero, contudo, que não seja a maioria.See Translation
  • Elisio Macamo obrigado, Manuel, é sobre isso que estou a falar. eu, até ouvir melhores argumentos, não estou convencido de que essa lei viole algum direito humano. é uma lei imperfeita e repugnante, mas não viola nenhum direito humano. e creio ser possível mostrar a sua imperfeição e o seu teor repugnante a partir da nossa própria experiência.See Translation
  • Margarida Paredes Elisio Macamo, já tinha notado que o discurso dos direitos humanos está imbuído de colonialidade e não o acho universal mas essa sua divisão entre "nós" e os "outros", esses outros ocidentais que defendem os direitos humanos e "nós" os moçambicanos, a quem "Não me parece útil para a sanidade da abordagem dos nossos problemas recorrer a argumentos normativamente sonantes na esfera global, mas que na prática são de pouca utilidade ao nível local." não me convence ... os "outros" nunca estão fora de "nós" (Said) por isso os debates locais são debates globais, não?See Translation
  • Elisio Macamo olá Margarida, obrigado pelo reparo. na verdade, eu acho que o discurso dos direitos humanos é mesmo universal e não tenho nenhum problema com isso. mas ele tem interpretação local na alemanha, na suíça, nos estados unidos, etc. ele é viabilizado por meio de debates locais. e é essa interpretação local que me interessa, pois é ela que torna algo universal local. não estou a fazer a defesa de nenhuma essência cultural. espero ter tornado isso claro no texto. o said pode ter razão, mas a prática mostra quem são os outros que estão sempre, e insistentemente, dentro de nós, e dentro de quem nós não estamos...See Translation
  • Granélio Miguel Gabriel Tamele Ser uma mulher a violar qual sera o tratamento a dar? Sera que estamos preparados para isso? Sera que para as pessoas ja casadas nao estaria a contariar o espirito de casamento monogamicos?See Translation
  • Zenaida Machado Foi precisamente isso que entendi, mas ja esta desfeito o mal entendido. Sobre a campanha da Wlsa. Pessoalmente, e ja tinha dito no meu mural, nao percebo eh como eh que esse assunto chega a Amnistia antes mesmo que as jovens mocambicanas tenho conhecimento do mesmo. Fiquei admirada com a quantidade de jovens que estava a leste deste assunto - que ja eh campanha internacional. Penso que ja eh altura de aprenderemos a lutar as nossas proprias batalhas. Algumas podem ser facilmente vencidas se formos organizados. A campanha pela Lei da Familia resultou...a campnha contra a violencia domestica tambem. Neste caso, orientar um grupo de jovens mulheres (12 -18) para que fossem pedir uma audiencia junto aos deputados, teria tido melhor efeito. 1) Seria a oportunidade dos deputados ouvirem das proprias meninas, o que elas querem para o seu futuro. 2) Ajudaria os que sao a favor da lei, a perceberem o outro lado da "estoria" 3) Iria influenciar e reforcar a posicao daqueles que sao contra a lei. e -mais importante 4) Eh forma de incutir nas mulheres jovens/adolescentes o espirito de activismo social e luta pelos seus direitos e controlo do seu futuro, do seu corpo e da sua mente. Isso eh algo que esta a faltar em Mocambique, infelizmente.See Translation
  • Elisio Macamo concordo plenamente, embora de facto não saiba que tipo de trabalho interno houve. achei apenas estranho este envolvimento da amnistia internacional e, fundamentalmente, a ênfase na questão dos direitos humanos. no meu comentário anterior não fiz correctamente o elo para a Ivone Soares para comentar. interessa-me a sua opinião como deputada.See Translation
  • Ivone Soares Se me violares deveras ir preso. Nao concordo que sejas autorizado a continuar a violar-me por mais 5anos com anuência do Estado. Estou redondamente contra isso!!!
  • Elisio Macamo para além da tua posição de princípio contra essa lei foste abordada por alguém, Ivone, para votares? alguém da sociedade civil? tem sido hábito os deputados serem abordados por grupos de interesse?See Translation
  • Tony Ndzawana Em tempos, em certos locais, conta-se, se o homem desejasse uma mulher bastava apenas interpela-la à busca da agua munido de varas para convence-la a ir ao lar.

    Talvez este seja o resgate dos habitos culturais dos nossos antepassados em que o homem, d
    esprovido de argumentos suficientes para fazer passar o seu "charme" parte à violencia.

    Nao tenho duvidas que isso é crime e me faz duvidar da sanidade moral de quem propos o tal codigo penal.
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  • Ivone Soares Tirando jornalistas, ninguém me contactou a esse respeito. Na altura estava fora do país. Mas dei uma entrevista distanciando-me desses artigos do CP.
  • Elisio Macamo um senão apenas, Tony Ndzawana. esse pedaço de legislação foi herdado do período colonial. a preocupação era com a honra da família, não com a integridade física e moral da mulher. tem longa tradição na cultura europeia...See Translation
  • Elisio Macamo pois, Ivone, é esta cultura política que eu deploro.See Translation
  • Carmen Ernestina Forte critica esta, é que realmente nao faz sentido nenhum, vitima de violacao ter que casar com o violador??? Ate chega a perturbar me o ouvido só de ouvir isso...é um tremendo absurdo! È k isso normativamente nao è tao pouco sonante. Dupla violacao dos direitos humanos...nem preciso citar casos de violacao sexual que acontecem p isso estar claramente visivel em constituir um lapso juridico na revisao das leis e sua aplicabilidade.See Translation
  • Tony Ndzawana A meu ver, uma mulher quando violada sexualmente perde a honra. Seria faze-la perder duas vezes ou mais obriga-la a casar-se com o violador.

    Confesso que ainda nao li sobre esses aspectos da "longa tradicao na cultura europeia" que, pelos vistos ja foi abandonados e, seria de mais-valia nao bebermos desse calix.
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  • Amade Mualaca E' em analise a esta autentica tragedia que colocamos os nossos pontos de vista. Acredito eu que mesmo o campones que nada sabe dos direitos humanos tera' essa informacao como um tremendo ruido. Penso eu que mesmo o fidalgo/a entidade que pensou nesta materia notou uma incoerencia nisso, e assuntos incoerentes no deviam em momento algum entrar p magna casa do povo(AR)See Translation

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