Foi para mim um enorme prazer ler este livro da nossa Alcinda Honwana. Não há neste texto nenhuma facilidade, não há encomenda, não há uma leitura folclórica da realidade Africana como acontece noutras pesquisas em que África surge como uma entidade que está para além das leis e do entendimento.
Sou um escritor, sou um leitor ávido deste tipo de estudos que nos ajudam a saber quem somos e para onde podemos ir. Tenho, contudo, pouca competência para falar deste tipo de assuntos. Uma das coisas mais graves é acreditarmos que somos capazes em matérias em qu apenas somos curiosos. Por isso, eu confessei à Alcinda que iria falar do livro, sim, mas apenas para partilhar um ou dois sentimentos que a sua leitura provocou em mim. Eu fiz um pequeno texto, que passo a ler:
Há uns largos anos atrás, eu tive a triste ideia de atravessar a fronteira de Ressano Garcia por altura do fim do ano. Eu estava em trabalho no Kruger Park e vinha passar o Natal em Moçambique. Foi um dos momentos mais penosos da minha vida: fiquei retido horas sem fim numa interminavel fila de carros, chapas, camiões e autocarros. E testemunhei o modo como milhares de mineiros moçambicanos – esses que chamamos de magaíças – se acumulavam com as suas tralhas que transbordavam das cabines das carrinhas e dos camiões. E ali desfilava esse comboio de viaturas tão carregadas que às vezes pareciam ser cogumelos andantes. Aquela bagagem de cada um dos minerios não era apenas um fardo. Era um mundo de esperas e esperanças empacotadas, um mundo de trouxas que a poeta Noémia de Sousa chamou de trouxas de sonhos.
Durante essa espera aconteceu o seguinte: dois jovens mineiros moçambicanos pediram-me boleia. Eu vinha sozinho, tinha um jeep cuja caixa aberta estava vazia. Com todo o gosto abri as portas para que os jovens entrassem. Não entraram logo. Disseram-me, em coro: voltamos já. De repente, escutei um estrondo nas traseiras do meu carro. Olhei assustado e vi que tinham colocado uma cama no porta bagagens. Já não eram dois, eram cinco jovens que lançavam as mais variadas coisas para dentro da caixa do carro. Havia de tudo, fogão, mesas, cadeiras, ventoinhas, sacos de farinha, embalagens de snacks, grades de cerveja. Em minutos, o meu pobre jeep ficou igual a qualquer outra viatura de carga. Eu saí do carro simplesmente para contemplar a minha pobre viatura e, para dizer a verdade, quase não vi o carro tão imensa era a barriga de mercadorias cobertas com lonas e amarradas por cordas. No longo percurso para Maputo eu só esperava que nenhum dos meus amigos me surpreendesse a conduzir uma viatura de carga, transitado de escritor de subsistência para o negócio de chapa.
Ao ler o livro de Alcinda Honwana, lembrei-me do sentimento que tive nessa minha travessia da fronteira. Porque ao viajar com os jovens mineiros algo se tornou para mim visível: aquela gente não atravessava apenas a fronteira entre dois países. Grande parte daqueles magaiças atravessava uma outra linha divisória de mundos. Essa linha de fronteira dividia ao meio as suas vidas, separava as idades, demarcava estatutos de existência. Muitos saíam de Moçambique jovens e regressavam homens, com esse outro passaporte que os habilitava a pagar o lobolo, a casar, ter filhos e converterem-se em homens adultos.
Podia ali haver pobreza – e havia muita pobreza – mas havia uma travessia, havia um cruzar de mundos, uma mudança de esperança e uma esperança de mudança.
Essa linha de fronteira entre idades deixou de existir para muitos dos nossos jovens condenados a viverem sem emprego, sem autonomia, sem casa nem familia construida por eles próprios. Esse jovens vivem suspensos numa viagem que nunca chegaram a empreender, numa fronteira que nunca chegaram a cruzar. Esses jovens vagueiam em terra de ninguém até descobrirem que essa terra de ninguém não é uma simples faixa entre duas vedações. Essa terra de ninguém é a terra toda inteira, estendendo-se de um e de outro lado das suas vidas.
O que eu transportava nessa viatura não eram apenas meia dúzia de jovens. Era uma parte do meu país, era um tempo em trânsito para outro tempo. Nao sei que destino tiveram esses jovens, talvez hoje eles sejam pais, talvez os seus filhos acreditem que poderão, também eles, emigrarem para um outro tempo. O mais provável, contudo, é que esses seus filhos estejam encalhados nesse cais sem barco, nesse tempo de ausência que Alcinda Honwana trata como assunto central deste livro.
A intenção do livro é clara desde o título: vamos falar do Tempo, num tempo do Tempo convertido numa sala de espera. Esse futuro por que tanto se anseia emagreceu ou foi devorado pelo presente. Há no livro um jovem de Maputo que é questionado por Alcinda sobre o que pensa do futuro. E ele responde com uma pergunta: “Futuro? A minha vida é só hoje.” Existe pois um sentimento de dupla carência, perante um passado que não se escuta e um futuro que não se vê. Quem é cego para o futuro vive sem sonhos. Quem vive sem sonhos tem carências e urgências que podem encher praças e ruas de violentos protestos.
Eu disse como esperei na bicha na fronteira. Esperar é algo que faz parte do nosso Curriculo como cidadãos. Essa aprendizagem da espera é uma sabedoria, mas também pode ser uma domesticação da esperança. Existe, na verdade, uma diferença entre esperar e ficar à espera. Muitos jovens não ficam à espera. Deitam mãos ao destino, esgravatam entre as pequenas sobras da economia informal. Alcinda é clara nesta asserção quando diz e eu cito: enquanto o conceito de waithood pode sugerir passividade, a minha pesquisa indica que estes jovens não estão meramente à espera. Pelo contrário, eles estão proativamente engajados para criar novas formas de existência e de interacção com a sociedade.
O problema dos países jovens é que podem envelhecer muito cedo. Os países envelhecem se são geridos por sistemas politicos cuja lógica se escleresou. Não se trata, como se infere do livro, de questionar apenas governos. Não se trata de questionar os politicos individual ou colectivamente. Trata-se de interrogar a própria política. Trata-se de questionar os modelos de governação e as formas de gestão política das nossas sociedades.
Existe ainda no nosso país a tendência a desqualificar o Outro apenas porque pertence a um outro partido. Só escutamos os que pensam como nós. Um partido (qualquer que ele seja) não pode pensar que fala com os jovens apenas porque faz reuniões com a sua própria organização juvenil. Devia haver uma lei que obrigasse os partidos a escutarem primeiro aqueles que lhe são adversos. Fala-se muito para os jovens, fala-se pouco com os jovens. Pior que o silêncio é um diálogo falso.
A soma destes equívocos de estrutura faz com que nem sempre reconheçamos como nosso o país que surge nos jornais, na rádio e na Televisão. E acumulamos situações estranhas como esta em que o chamado lider da oposição ainda fala de uma Frelimo “comunista”. E essa outra estranha indefinição em que se diz que não estamos em guerra mas também não estamos em Paz, e que já caminhamos para a trigésima ronda de negociações em que apenas um dos lados comparece. E ainda essa outra situação de dualidade em que saudamos Mandela como o arquiteto de uma nação sem raças mas a nível interno ainda continuamos a discutir quem é moçambicano genuíno e quem é originário.
Uma das sugestões do livro é que não basta a leitura política e jornalistica dos fenómenos. Infelizmente é essa leitura a única que nos chega. Falta-nos uma produção académica interventiva, carecemos de uma intelectualidade responsável capaz de produzir um pensamento produtivo e inovador. Falta-nos mais Alcindas Honwanas.
O se vai seguir neste tempo sem sonho? É impossível saber. Em Moçambique nós vivemos ainda essa condição de ver gente a fazer fila nos postos eleitorais. Existem muitos países onde os jovens desistiram, deixaram de votar, descrentes do processo, desconfiados dos resultados do processo. AH revela como, por exemplo na Tunísia, grande parte dos jovens se divorciaram dos partidos e do modo clássico de fazer política. Amanhã poderemos ser como a Tunísia e o que hoje se investe no voto acaba por desaguar como revolta de praça e manifestação de rua.
Existe hoje o receio que essa juventude, frustrada e sem emprego, actue como uma bomba relógio e seja causadora de convulsões sociais. Pois se queremos realmente evitar essa explosão, então, cultivemos a esperança no lugar do desespero, cultivemos o diálogo verdadeiro, criemos soluções eficientes para incluir os jovens. Uma coisa me parece certa: é melhor uma juventude inquieta do que uma juventude submissa. Sobretudo, porque nenhuma juventude é tão submissa assim. O que não pode florescer no tempo certo, acaba sempre por explodir mais tarde.
18.12.2013
Mia Couto
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