A insegurança e a instabilidade política marcam a antiga colónia portuguesa, tal como há 40 anos. Leia tudo na revista Domingo.
Por:Isabel Faria e Marta Martins Silva
A notícia de que ‘as eleições autárquicas correram sem sobressaltos' ecoa nos ouvidos de João Afonso. Regozija-se com o dia de calma no país onde nasceu e que tem sido assolado por raptos, ataques e instabilidade política. Demorou a partir. Veio em 1978, com pais e três irmãos, tinha 12 anos. "Durante um tempo, acreditámos que podíamos ficar. Os meus pais viveram anos em Moçambique, conheceram-se lá, e achavam que o país devia ser independente."
Nessa época, a cidade de Lourenço Marques - que se tornou Maputo depois da independência - era um palco "de efervescência cultural" e a insegurança um vislumbre nos olhos de menino. "Lembro-me de acontecimentos, como o 7 de Setembro de 1974, tentativa de contragolpe feita pelos portugueses, e de um avanço da população dos arredores para a cidade, em que fomos obrigados a sair de casa. Estávamos a comer e deixámos a feijoada na mesa. Ouviam-se tambores e histórias de pessoas que eram atacadas. Era miúdo, mas senti essa fuga."
Para a família do cantor e compositor - e também sobrinho de José Afonso -, Portugal era "a terra dos avós " e só vieram "pela falta de condições". Em finais de 1977, as chamadas ‘Lojas do Povo' vendiam "apenas Chá Li kung e papa Pensal. Sentíamos a falta de alimentos". A mãe passava horas nas filas, "à procura de carne ou peixe". "E era assim, independentemente de se ter ou não dinheiro."
O pai, engenheiro civil e antigo presidente da Junta Autónoma das Estradas, conseguiu que a saída se desse "a bem, de forma pacífica, mas houve quem fugisse de calças na mão". Mesmo assim, "não havia voos e passámos um mês no Hotel Girassol, já depois de termos entregue a casa ao governo moçambicano. Voltei para a ver. Está quase na mesma, mas cheia de grades..."
Em 2000, na primeira viagem de retorno, João Afonso matou os fantasmas porque "não havia condições para ficar". Regressou em julho último e notou diferença. "Havia alegria, efervescência comercial, não tive receio de nada. Fiquei com perspetivas de... talvez um dia." Agora, "infelizmente, as notícias são más. Custa-me ver um país que estava a prosperar cair neste clima de medo".
Ismael não revela apelido nem profissão. A estadia em Maputo, que já dura há três anos, está mais perigosa a cada dia que passa. "A criminalidade aumentou, no último ano e meio tornou-se mais perigoso circular em zonas nobres, como Julius Nyerere e Polana Shopping e 24 de Julho é o alvo, devido à afluência de estrangeiros e da classe social abastada." Aumentaram "os roubos de carros à mão armada, assaltos na rua e a casas, com a conivência de guardas ou empregados". São principalmente "raptos a empresários muçulmanos, indianos, sul-africanos e europeus, de tal forma que a escola portuguesa no último mês perdeu 40 alunos numa semana". Diariamente, conta Ismael, "sabe-se de pessoas que abandonam ou saem de férias prolongadas e do fecho de empresas".
Ismael tem uma posição confortável no país e redobra cuidados. "Evito usar os mesmos caminhos, antes de entrar ou sair de casa verifico se não há gente. Tento manter um ‘low profile', para que não saibam o que faço, onde trabalho e vivo", relata. A fuga de estrangeiros fez com que "as rendas começassem a baixar, mas a generalidade dos preços mantêm-se inflacionados, ao ponto de muitas coisas serem três vezes mais caras do que na Europa". A habitação é disso exemplo. "Casas razoáveis em zonas não muito seguras andam pelos 15 mil a 20 mil meticais [cerca de 500 euros], quando o ordenado mínimo é de 2500 meticais." Quanto à convivência entre nacionais e estrangeiros, "há muita rivalidade e desconfiança com os estrangeiros, devido à exploração dos recursos naturais moçambicanos".
FUGA À CRISE PORTUGUESA
A barreira dos 60 anos não impediu Carlos Santos de procurar uma escapatória longínqua à crise em Portugal. Na cidade-satélite de Matola, nos arredores da capital - onde foi raptada uma portuguesa - o empresário da construção civil encontrou há dois anos a prosperidade que não via no país natal. "A construção em Portugal estava morta, a crise pôs as pessoas a comer para não morrer. Em Moçambique quem trabalhar muito consegue ter sucesso. Tenho pena de não ter menos 30 anos." Em Portugal ficaram a mulher e as três filhas, mas apesar da distância o investimento emocional e financeiro compensou. "Tenho um armazém, uma loja, um estaleiro e o material escoa. Sem falar de que me senti acolhido por este povo, extremamente simpático. Nunca senti medo."
Nuno Nóbrega nasceu pouco depois da Revolução de Abril. Viveu em Portugal até aos 37 anos, mas os 600 euros que ganhava no call-center da Segurança Social, em Castelo Branco, levaram-no até Moçambique. Está em Nampula desde junho de 2011 e desde novembro é proprietário de uma loja onde vende material para o corte de madeira. O conflito entre a Frelimo e a Renamo veio abalar os alicerces do país e a segurança dos habitantes.
"Antes, aos fins de semana deslocava-me para fora, mas agora evito viajar, porque o maior problema são os ataques às colunas de transporte", conta. O mesmo cuidado tem em relação aos bens que transaciona. "Em vez de encomendar material por terra, encomendo por ar, em aviões da LAM, o que custa o dobro."
Manuel Nascimento ainda estudava em Portugal quando começou a enviar currículos. "Candidatei-me para Inglaterra, Alemanha, Holanda, Moçambique e recebi propostas de vários. Escolhi Moçambique." Chegou em janeiro de 2011 para dar aulas no curso de Optometria na Universidade Lúrio. "O país tem vindo a evoluir e nota--se na construção de infraestruturas, no aumento de veículos e na oferta e qualidade dos serviços", diz. Não sente diferença no dia a dia, à exceção de quando "foi reportado um ataque da oposição em Rapale, a 15 quilómetros de Nampula, e a universidade foi evacuada como precaução". "Os residentes de Nampula estão a comprar mais produtos (principalmente alimentares) para que, caso haja complicações, possam ficar em casa e esperar que passe."
Amaro Monteiro chegou a Moçambique aos 27 anos, em 1962, foi professor do ensino técnico e investigador na Universidade de Lourenço Marques. Passou pelos serviços de centralização e coordenação de informações e dirigiu também o diário ‘Tribuna', até fevereiro de 1974, quando assumiu a direção dos serviços do Centro e Informação do Turismo (CIT), "um órgão porta-voz do regime destinado a ficar debaixo de fogo na primeira oportunidade".
Na época, Moçambique era ainda uma colónia organizada e formal. "Os homens vestiam fato e gravata e nas festas, com frequência, smoking", lembra. Havia grandes diferenças entre o Sul, que sofria a influência anglo-saxónica e vivia "perigosamente divorciado da guerra do Norte". Isso "criava um fosso entre civis e militares e uma tensão grande." A elite social de Lourenço Marques acreditava "que, se acontecesse alguma coisa, a África do Sul deitava a mão aos portugueses" e muitos depositavam esperanças no engenheiro Jorge Jardim, "personagem misteriosa, que tinha um ‘exército' próprio, mantinha uma política de ligação forte com a Zâmbia e o Malawi, sobretudo, e com outros estados africanos".
Sabia-se que algo estava para acontecer, e o diretor do CIT, "pessimista por militância, estava apoquentadíssimo". A 25 de abril, recebeu "um telefonema a dizer que estalara uma coisa de contornos indefinidos". O governador-geral de Moçambique só passou poderes dia 27 à tarde. Embarcou nessa noite, "numa operação às escondidas e no dia 30 começou a desmoronar-se o castelo de cartas", diz. Amaro Monteiro estava entre os que foram ameaçados à porta da assembleia legislativa, convocada "no calendário do antigo regime". Na madrugada de 1 de maio foi aconselhado a partir com a mulher e os quatro filhos para a fronteira com a Suazilândia. Morava em Sommerschield, zona de elite, "a poucas centenas de metros da Cidade do Caniço - equivalente aos bairros de lata e de população negra". Estava ciente do perigo de ser parte da minoria de "200 mil pessoas num território que, na altura, tinha perto de sete milhões".
Pediu demissão do cargo e transferência para Angola, onde a sua família se fixara em 1889. Saiu de Moçambique em agosto de 74, e dos meses que antecederam a partida guarda "o fervilhar de partidos, sem pés nem cabeça, a criação de grupos de pressão que conspiravam e pediam auxílio à África do Sul". Chegavam notícia de ataques fora das cidades. Ainda assim, diz que o "respeito pelos europeus portugueses manteve-se. As coisas mudaram a partir do 7 de Setembro e eu sai antes".
O CONTRAGOLPE
Ricardo de Saavedra, jornalista e escritor, autor do livro ‘Os Dias do Fim' - cuja 5ª edição será reeditada em janeiro pela Casa das Letras -, foi um dos que integraram o movimento. Estava tão descansado que nem tinha o passaporte em dia. Garante que o movimento "foi espontâneo, varreu todo o território e nasceu do protesto popular contra os Acordos de Lusaka - entre o governo português e a Frelimo - e contra aqueles que o estavam a assinar, pois para os moçambicanos não fazia sentido entregar o país a um partido só porque era o único armado".
Na manhã de 7 de setembro de 1974, estava no hospital ao lado da mulher, grávida da mais nova de quatro filhos. Seguiam os acontecimentos através de "um pequeno transístor". Defendiam a tomada do Rádio Clube. "E ao escutar, gritou e mandou-o trabalhar". Juntou-se na rádio a "Velez Grilo (antigo secretário do PCP), Gonçalo de Mesquitela e outros". O golpe chegou às ruas, mas não vingou. Passadas 92 horas de confrontos e muitas mortes, "o governo da altura entregou-se".
Com um mandato de captura em seu nome, Ricardo de Saavedra e Albano Melo Pereira, que fora da força aérea e operador de câmara, fogem para África do Sul. "Vesti o meu melhor fato, com colete, imagine-se!, peguei numa maleta de mão, três carteiras de tabaco de cachimbo, 30 rands e seis contos de dinheiro moçambicano e fomos para o comboio. Os meus contactos asseguravam que uma pessoa me passaria para a África do Sul." Mas o homem "havia sido denunciado". Acabou por ser ajudado pelo guarda-fiscal do comboio, que o escondeu entre as portas "de uma espécie de armário de fusíveis e comandos elétricos". "O comboio andou e quando arrancou novamente abriram-me as portas. A alegria da chegada à África do Sul é inexprimível."
De Moçambique, chegavam notícias de que os próprios brancos na retirada, em gesto de desespero, atiravam pela janela frigoríficos e, à porta dos hospitais, a pilha de mortos juntava brancos e pretos. Três meses depois, a mulher grávida e os filhos juntam-se a Ricardo de Saavedra na África de Sul. Aí nasceu a mais nova, Ruth. Voltou a Portugal em 1987. Em Moçambique deixou "a casa, na Matola, para onde se mudara a 1 de abril de 1974, aos 32 anos. Há meia dúzia de anos fui revê-la. Viviam lá uns pretos simpáticos, que nos deixaram entrar e fotografar à vontade. Lá estavam as árvores que plantáramos, o buraco da desejada piscina fora atulhado, mas de resto era o nosso sonho envelhecido".
CAIXA
A BIBLIOTECÁRIA QUE DISTRIBUIU BANDEIRAS
Maria do Carmo nasceu na paradisíaca ilha do Ibo. Era bibliotecária da Sociedade de Estudos de Moçambique, em Lourenço Marques, "quando tudo se deu". Tinha 38 anos, vivia com a mãe e uma sobrinha. "Apercebi-me de que o exército recolheu e não quis saber de nada." A 7 de setembro de 1974 lutou nas ruas, em protesto contra os Acordos de Lusaka - assinados entre Portugal e a Frelimo - para travar a independência e a descolonização. A bandeira portuguesa, arrastada nas ruas por um "grupo de brancos" foi pretexto para avançar. No dia 7, viu carros com gente a gritar ‘Portugal, Portugal'. "Olhei para uma amiga e disse: ‘Isto assim não dá nada'". Foi ao local de trabalho recolher bandeiras portuguesas e distribuiu-as: "Sempre dava mais cor e vida." Acompanhou as 92 horas de vigília. Enfrentou tiros mas não ficou para contar os mortos. Embarcou no primeiro voo para Portugal. A mãe e a sobrinha chegaram um mês depois.
CORREIO DA MANHÃ(Lisboa) – 24.11.2013
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