Escrito por António Quadros
Avant-propos
Decorridos cerca de 40 anos da publicação do opúsculo de António Quadros, A angústia do nosso tempo e a crise da universidade (1956), eu próprio, contestando tudo e todos, passava pela Faculdade de Letras de Lisboa onde o positivismo, nomeadamente o alemão –Kant, Husserl, Feuerbach e Marx-, dominava no departamento em que a história da filosofia surgia segmentada em antiga, medieval, moderna e contemporânea. A máquina universitária continuava, pois, a enfermar dos mesmos vícios tão cuidadosamente descritos e apontados por António Quadros, como a entropia sociológica e uniformizadora do ser humano, o funcionalismo burocrático, rotineiro e amanuense do corpo docente, o sistema inquisitorial do esbirro judicativo ou do professor examinador inapto para aferir talentos e encaminhar vocações, ou ainda o preconceito didáctico consagrado por esquemas e modelos estrangeiros inibidores do mais original pensamento português.
Decorridos cerca de 40 anos da publicação do opúsculo de António Quadros, A angústia do nosso tempo e a crise da universidade (1956), eu próprio, contestando tudo e todos, passava pela Faculdade de Letras de Lisboa onde o positivismo, nomeadamente o alemão –Kant, Husserl, Feuerbach e Marx-, dominava no departamento em que a história da filosofia surgia segmentada em antiga, medieval, moderna e contemporânea. A máquina universitária continuava, pois, a enfermar dos mesmos vícios tão cuidadosamente descritos e apontados por António Quadros, como a entropia sociológica e uniformizadora do ser humano, o funcionalismo burocrático, rotineiro e amanuense do corpo docente, o sistema inquisitorial do esbirro judicativo ou do professor examinador inapto para aferir talentos e encaminhar vocações, ou ainda o preconceito didáctico consagrado por esquemas e modelos estrangeiros inibidores do mais original pensamento português.
De facto, António Quadros, sendo um literato, um escritor ou, se quisermos, um intelectual, propunha, incentivava e sugeria uma reforma da mentalidade que passasse por uma Universidade cujo núcleo dinamizador postulasse um Instituto Central de Cultura Superior destinado a um saber teorético actual, vivo e original capaz de vencer forças e tendências fragmentárias no que toca à situação concreta, quando não mesmo histórica da filosofia portuguesa. Enfim, uma ilusão do foro existencial, já que, na linha de pensadores como Unamuno, Ortega, Camus e Karl Jaspers, não era de todo indiferente a um positivismo do sentimento por contraponto ao positivismo do pensamento idealmente abstracto, vago e sem radicação espácio-temporal.
Não obstante, estamos em crer que António Quadros, íntima e paradoxalmente, sabia que a especulação filosófica, no que tem de verdadeiramente criador e imprevisível, não nasce em institutos de cultura nem, muito menos, se pauta por artigos de revistas eruditas e universitárias, ou até mesmo se limita a roteiros bibliográficos ou a trabalhos especializados de divulgação, crítica ou comentário do pensamento alheio. Ora, o mais que se pode esperar daUniversidade, no melhor dos casos, é somente o registo fóssil do pensamento pensado, que quase sempre se refracta e deforma porque reduzido a um condicionalismo textual, metodológico e pseudo-científico que molda estudantes e professores na busca do prestígio social e académico em detrimento da procura da Verdade.
O saber, de experiência feito, confirma pura e simplesmente que assim é. De facto, jamais deparei - palavra de honra - com um professor universitário que se revelasse filósofo, e, como tal, quedasse imune aos dogmas convencionais impróprios de uma inteligência densa, profunda e largamente intuitiva.
Nas Faculdades de Letras, a «filosofia», entendida como produto ou manifestação departamental, equivale à revolta das Letrascontra o Espírito. Por outras palavras, a filosofia não é uma actividade de gabinete, isto é, não é susceptível de desenvoltura e recriação pneumática em gabinetes gélidos onde os estudantes ou os candidatos a profissionais da«filosofia» se prestam a exames, vexames ou até a interrogatórios quase policiais com a mera finalidade de passar à cadeira e, por conseguinte, obter o diploma de fim de curso. De resto, os profissionais em questão destinam-se, na sua maioria, a engrossar as fileiras de funcionários públicos do ensino médio, onde, caso consigam singrar, limitar-se-ão a inculcar aos adolescentes um programa curricular praticamente ditado pelas directrizes ideológicas de uma agência especializada das Nações Unidas, mais particularmente a UNESCO.
Todo este processo encontra-se minuciosamente explicado, detalhado e demonstrado numlivro publicado pelo autor destas linhas, intitulado Noemas de Filosofia Portuguesa: um estudo revelador de como a universidade é o maior inimigo da cultura lusíada. Na actualidade, não há quem tenha manifestado a ousadia de o fazer de uma forma assaz directa e elucidativa quanto aos aspectos verdadeiramente cruciais em jogo, uma vez que, o livro em questão, não só actualiza em altura, largura e profundidade o que, autores como António Quadros e Afonso Botelho, haviam parcialmente dito e diagnosticado sobre a falência moral e espiritual da Universidade, como ainda põe a nu a actividade antipatriótica perpetrada por uma instituição que tem permanecido praticamente incólume nas duas últimas centúrias.
Miguel Bruno Duarte
A crise da universidade
«Para os que gostam das catalogações analógicas, nós diríamos que Álvaro Ribeiro ocupa, em relação à cultura portuguesa, situação semelhante à que Karl Jaspers, o teorizador existencialista do «englobante» e da «fé filosófica» ocupa na actual cultura alemã...».
António Quadros («A angústia do nosso tempo e a crise da universidade»).
«A doutrina positiva é a doutrina do porto seguro, enquanto a doutrina existencial é a doutrina do naufrágio, da navis fracta. Entre esses extremos domina a virtude que corresponde à vocação dos Portugueses, a virtude do Infante de Sagres. A filosofia portuguesa, outrora referida a Aristóteles, ao actualizar-se no período em que está ameaçada pelo existencialismo, não necessita mais do que recorrer a Bergson para deixar de se apavorar perante o ídolo do nada, e de recorrer a Hegel para verificar como se supera a dúvida entre o ser e o não-ser».
Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).
Ser homem é uma situação que se pode pois desenvolver em duas instâncias: a primeira corresponde ao interesse individual; a segunda, ao interesse universal. Na primeira, o homem fecha os olhos ao universo que o rodeia, vendo nele apenas os obstáculos a transpôr para a realização dos ideais egoístas; na segunda, o homem, depois de ter procurado atingir uma concepção do universo, busca fazer de si mesmo um elemento dinamizador desse universo, assumindo a responsabilidade do poder espiritual que lhe foi dado e que, no mundo, ele possui em mais elevado grau do que qualquer outro ser da criação.
Acredito que é na conjugação destas duas razões, a individual e a universal, e não no predomínio de uma sobre a outra, que conduz sempre a um misticismo pessoal, estatal ou religioso, em qualquer dos casos violentando a realidade física ou espiritual da natureza humana, que merece ser respeitada, embora guiada - acredito que é na conjugação destas duas razões, ia a dizer, que o homem pode transcender a crise de angústia, de perplexidade, de contínuo problematismo que vive - nesta idade à beira do extermínio, em consequência do desiquilíbrio entre o progresso dos meios materiais de destruição e o retrocesso dos meios espirituais de elevação.
O mundo medieval, de que não vou fazer a apologia, pois conheço-lhe as imperfeições e as insuficiências, logrou no entanto, nalguns períodos em que o rei, a nobreza, o clero e o povo souberam entender-se, unindo-se numa tarefa comum, conseguir uma atmosfera exemplar, em que cada um, entregando-se sem olhar para os lados, à sua função específica, contribuiu para o bem de todos os outros e para o progresso material e espiritual do homem.
Entre nós, temos o caso flagrante dos descobrimentos, que só foram possíveis porque reis, príncipes, cientistas, estudiosos, eclesiásticos, marinheiros, soldados e artífices, se tornaram harmoniosamente as peças complementares de uma empresa, à primeira vista vedada às possibilidades de um país pequeno, pobre e com poucos habitantes, e que no entanto, desenvolvendo-se ininterruptamente através de cinco reinados, cada geração e cada rei pegando no testemunho que os anteriores lhe passavam, resistiu com uma voluntariedade admirável, porque em escala nacional e secular, às contingências e aos infortúnios da política, das forças contrárias, das pressões externas, da própria inércia da rotina, do hábito, do tempo que gasta energias e consome entusiasmos.
Neste mundo medieval no que ele teve de melhor, a educação do homem realizava-se nas duas instâncias do interesse individual e do interesse universal que há pouco mencionámos: a primeira, correspondente à preparação profissional, tinha como esfera a corporação; a segunda, correspondente ao saber e à missão universal deste saber, tinha como esfera a universidade.
Não vamos historiar a evolução da universidade portuguesa desde esses tempos em que era formada, institucionalmente pela corporação dos estudantes, e culturalmente pela tradição aristotélica. O seu processo de transformação terá principiado com a fundação do Colégio das Artes, e com a difusão entre nós do espírito humanista que impregnava a Renascença italiana. Mas foi sem dúvida a entrada em Portugal, em períodos de menor consciência dos valores nacionais, de duas correntes filosóficas francesas, que lhe deu um rumo diferente da sua primitiva e tradicional substância. Rumo na verdade tão diferente, que dir-se-ia outra instituição, com certeza divergente e até antagónica desse rótulo amplo, ousado e de longo alcance que é a designação de universidade.
Na verdade, foram as reformas do Marquês de Pombal, convertendo a universidade portuguesa às novas ideias do iluminismo e do enciclopedismo, e a do Curso Superior de Letras de Lisboa, em 1870, amoldado por influência de Teófilo Braga ao positivismo de Augusto Comte, que conduziram a instituição universitária ao seu condicionalismo actual.
Proclamada a República em 1910, constituiram-se as Universidades de Lisboa e do Porto, que, sob o influxo da mesma orientação positivista, foram factores de muita importância nesta degenerescência do espírito universitário.
Não vamos historiar a evolução da universidade portuguesa desde esses tempos em que era formada, institucionalmente pela corporação dos estudantes, e culturalmente pela tradição aristotélica. O seu processo de transformação terá principiado com a fundação do Colégio das Artes, e com a difusão entre nós do espírito humanista que impregnava a Renascença italiana. Mas foi sem dúvida a entrada em Portugal, em períodos de menor consciência dos valores nacionais, de duas correntes filosóficas francesas, que lhe deu um rumo diferente da sua primitiva e tradicional substância. Rumo na verdade tão diferente, que dir-se-ia outra instituição, com certeza divergente e até antagónica desse rótulo amplo, ousado e de longo alcance que é a designação de universidade.
Na verdade, foram as reformas do Marquês de Pombal, convertendo a universidade portuguesa às novas ideias do iluminismo e do enciclopedismo, e a do Curso Superior de Letras de Lisboa, em 1870, amoldado por influência de Teófilo Braga ao positivismo de Augusto Comte, que conduziram a instituição universitária ao seu condicionalismo actual.
Proclamada a República em 1910, constituiram-se as Universidades de Lisboa e do Porto, que, sob o influxo da mesma orientação positivista, foram factores de muita importância nesta degenerescência do espírito universitário.
Em que consiste, na verdade, esta Universidade, que um dos seus mais lúcidos e recentes críticos, Afonso Botelho, disse com razão dever chamar-se, mais propriamente «diversidade» do que «universidade?» (1). Sob a influência, por um lado, da crescente complexidade da vida contemporânea, exigindo uma cada vez mais intensa especialização profissional, e por outro lado, das ideias positivistas, proclamando a redução da filosofia ao saber fragmentado e desunido das ciências particulares, isto é, do saber espiritual ao saber material, a universidade tornou-se, pura e simplesmente, num aglomerado de escolas técnicas.
Estas escolas técnicas, visando quase exclusivamente a preparar o aluno para a profissão, realizam assim apenas uma das instâncias da educação do homem, a que nos referimos há pouco: a instância do interesse individual, independente de qualquer outra finalidade, princípio ou ideia. Quanto à segunda instância, a do interesse universal, em vão a podemos procurar na universidade profissionalista de hoje. Ela está ausente - e esta ausência dir-se-ia não ser reconhecida pela maioria dos professores que, emparedados no seu especialismo, não sentem a inquietação espiritual das gerações de estudantes que lhes passsam sob a cátedra. Inquietação espiritual que o liceu, com o seu enciclopedismo dispersivo, e que a idade liceal, menos dada à reflexão do que aos jogos e aos anseios da adolescência, não souberam ou não puderam resolver ou encaminhar. A chamada crise da universidade corresponde acima de tudo, quanto a mim, ao vazio deixado pelo desaparecimento das antigas funções culturais que lhe competiam. A Universidade abandonou a Verdade para servir a Utilidade.
Em face desta situação, rigidamente estabelecida, profundamente vinculada aos interesses pessoais de alunos e professores - ambos aprendendo e ensinando para viver, grande número dos que se debruçam sobre o problema, resolvem-no reconhecendo e admitindo a falência da universidade como formadora do saber, como integradora do homem numa existência transcendente à simples luta pelos bens materiais ou mesmo à mera afirmação de personalidade.
Formulando-a deste modo, a crise da universidade portuguesa é apenas um aspecto da crise da universidade europeia, afirmada e reconhecida pelos espíritos mais lúcidos do nosso tempo. Ortega y Gassett, já escrevia, em 1930: «Comparada com a medieval, a Universidade contemporânea complicou imensamente o ensino profissional que aquela proporcionava em germen, e acrescentou a investigação, abandonando quase por completo o ensino ou transmissão da cultura.
Estas escolas técnicas, visando quase exclusivamente a preparar o aluno para a profissão, realizam assim apenas uma das instâncias da educação do homem, a que nos referimos há pouco: a instância do interesse individual, independente de qualquer outra finalidade, princípio ou ideia. Quanto à segunda instância, a do interesse universal, em vão a podemos procurar na universidade profissionalista de hoje. Ela está ausente - e esta ausência dir-se-ia não ser reconhecida pela maioria dos professores que, emparedados no seu especialismo, não sentem a inquietação espiritual das gerações de estudantes que lhes passsam sob a cátedra. Inquietação espiritual que o liceu, com o seu enciclopedismo dispersivo, e que a idade liceal, menos dada à reflexão do que aos jogos e aos anseios da adolescência, não souberam ou não puderam resolver ou encaminhar. A chamada crise da universidade corresponde acima de tudo, quanto a mim, ao vazio deixado pelo desaparecimento das antigas funções culturais que lhe competiam. A Universidade abandonou a Verdade para servir a Utilidade.
Em face desta situação, rigidamente estabelecida, profundamente vinculada aos interesses pessoais de alunos e professores - ambos aprendendo e ensinando para viver, grande número dos que se debruçam sobre o problema, resolvem-no reconhecendo e admitindo a falência da universidade como formadora do saber, como integradora do homem numa existência transcendente à simples luta pelos bens materiais ou mesmo à mera afirmação de personalidade.
Formulando-a deste modo, a crise da universidade portuguesa é apenas um aspecto da crise da universidade europeia, afirmada e reconhecida pelos espíritos mais lúcidos do nosso tempo. Ortega y Gassett, já escrevia, em 1930: «Comparada com a medieval, a Universidade contemporânea complicou imensamente o ensino profissional que aquela proporcionava em germen, e acrescentou a investigação, abandonando quase por completo o ensino ou transmissão da cultura.
Isto representou, evidentemente, uma atrocidade, cujas funestas consequências, a Europa está agora a pagar. O carácter catastrófico da situação presente deve-se ao facto de o inglês médio, o francês médio, o alemão médio, serem incultos, não possuírem um sistema vital de ideias sobre o mundo e o homem correspondentes ao tempo. Esse personagem médio é o novo bárbaro, atrasado em relação à sua época, arcaico e primitivo em comparação com a terrível actualidade e data dos seus problemas. Este novo bárbaro é principalmente o profissional, mais sábio do que nunca, mas também mais inculto - o engenheiro, o médico, o advogado, o cientista» (2).
Benedetto Croce, o conhecido filósofo italiano que, como Ortega y Gassett, a Europa perdeu há pouco tempo, dizia há cinco anos a um escritor brasileiro que o foi entrevistar em Nápoles: «No melhor dos casos, o estudante excepcional sai dos bancos académicos munido apenas de instrumentos de pesquisa; apura o orgão para uma função posterior. E, se esta não tiver oportunidade, acaba por se atrofiar. Além disso, o verdadeiro saber, a Universidade é incapaz de o dar» (3).
Como quiseram resolver Ortega e Croce esta «importância cultural» da universidade moderna? Através de institutos extra-universitários de cultura. Ortega, juntamente com um pequeno núcleo excepcional de pensadores entre os quais é justo destacar Xavier Zubiri e Julian Marias, fundou em Madrid o «Instituto de Humanidades». Croce, que foi um dos criadores, em Itália, de um instituto correspondente, mas de orientação muito diversa, o «Instituto italiano dos estudos históricos», chegou a dizer: «Daí, a imperiosidade dos Institutos, que nestes últimos anos vêm surgindo nos centros mais densamente culturais do mundo. O curioso é que tais institutos como o de Jean Wahl em Paris ou o de Ortega em Madrid - surgiram sem uma prévia consulta: as condições universitárias hodiernas, absolutamente incapazes de atender aos reais anseios das autênticas vocações, acabaram por impor a nova fórmula de estudos, às vezes programaticamente paralela à Universidade, às vezes supletiva e, quase sempre, contraposta ao espírito universitário actual, que hoje naufraga no seu especialismo estéril e meramente propedêutico. Diante disto, não há a menor dúvida de que a crise universitária só será resolvida... fora da Universidade» (4).
Afigura-se-me que esta solução, correspondendo ao pensamento dos que defendem a inutilidade da salvação da universidade como tal, deixando-a confinada à sua tecnicidade, e transferindo os problemas da formação cultural e da universalização do saber para fora das suas portas, ignora ainda o nódulo da questão universitária. Abandonar a segunda instância da educação do homem aos sabores e caprichos comerciais da imprensa, da rádio, do cinema ou da televisão, à multiplicidade dispersa do movimento editorial, à irresponsabilidade filosófica de uma arte que se dirige pelas modas e que perdeu a ciência dos símbolos, ou ao pequeno grupo de mestres de élite que possam reunir-se em volta de um Instituto extra-universitário, que as exigências da vida moderna necessariamente obriga a ser escassamente frequentado - é no final de contas o mesmo. Um Instituto desses pode sem dúvida formar uma élite de altos espíritos, uma dezena de vocações para a cultura superior que de outro modo talvez não tivesse campo para se desenvolver. Vou mais longe: creio na utilidade e até na necessidade desses focos de alta cultura. Mas não lhes podemos pedir que formem gerações inteiras. E, nesta viagem em que todos estamos empenhados, a salvação não pode repousar apenas nos ombros de uma dúzia de intelectuais.
Benedetto Croce, o conhecido filósofo italiano que, como Ortega y Gassett, a Europa perdeu há pouco tempo, dizia há cinco anos a um escritor brasileiro que o foi entrevistar em Nápoles: «No melhor dos casos, o estudante excepcional sai dos bancos académicos munido apenas de instrumentos de pesquisa; apura o orgão para uma função posterior. E, se esta não tiver oportunidade, acaba por se atrofiar. Além disso, o verdadeiro saber, a Universidade é incapaz de o dar» (3).
Como quiseram resolver Ortega e Croce esta «importância cultural» da universidade moderna? Através de institutos extra-universitários de cultura. Ortega, juntamente com um pequeno núcleo excepcional de pensadores entre os quais é justo destacar Xavier Zubiri e Julian Marias, fundou em Madrid o «Instituto de Humanidades». Croce, que foi um dos criadores, em Itália, de um instituto correspondente, mas de orientação muito diversa, o «Instituto italiano dos estudos históricos», chegou a dizer: «Daí, a imperiosidade dos Institutos, que nestes últimos anos vêm surgindo nos centros mais densamente culturais do mundo. O curioso é que tais institutos como o de Jean Wahl em Paris ou o de Ortega em Madrid - surgiram sem uma prévia consulta: as condições universitárias hodiernas, absolutamente incapazes de atender aos reais anseios das autênticas vocações, acabaram por impor a nova fórmula de estudos, às vezes programaticamente paralela à Universidade, às vezes supletiva e, quase sempre, contraposta ao espírito universitário actual, que hoje naufraga no seu especialismo estéril e meramente propedêutico. Diante disto, não há a menor dúvida de que a crise universitária só será resolvida... fora da Universidade» (4).
Afigura-se-me que esta solução, correspondendo ao pensamento dos que defendem a inutilidade da salvação da universidade como tal, deixando-a confinada à sua tecnicidade, e transferindo os problemas da formação cultural e da universalização do saber para fora das suas portas, ignora ainda o nódulo da questão universitária. Abandonar a segunda instância da educação do homem aos sabores e caprichos comerciais da imprensa, da rádio, do cinema ou da televisão, à multiplicidade dispersa do movimento editorial, à irresponsabilidade filosófica de uma arte que se dirige pelas modas e que perdeu a ciência dos símbolos, ou ao pequeno grupo de mestres de élite que possam reunir-se em volta de um Instituto extra-universitário, que as exigências da vida moderna necessariamente obriga a ser escassamente frequentado - é no final de contas o mesmo. Um Instituto desses pode sem dúvida formar uma élite de altos espíritos, uma dezena de vocações para a cultura superior que de outro modo talvez não tivesse campo para se desenvolver. Vou mais longe: creio na utilidade e até na necessidade desses focos de alta cultura. Mas não lhes podemos pedir que formem gerações inteiras. E, nesta viagem em que todos estamos empenhados, a salvação não pode repousar apenas nos ombros de uma dúzia de intelectuais.
Por outro lado, tanto Croce, profundamente ligado ao idealismo trágico alemão, como Ortega, que promoveu a fusão de certos valores da cultura espanhola com as traves mestras das vias do pensamento germânico, como Jean Wahl, aliás um dos mais inteligentes representantes do existencialismo francês, como tantos outros teorizadores da cultura centro-europeia, acreditam que os mais altos cumes do esforço intelectual são a investigação da matéria e o exercício da razão pura, ou seja, as ciências e a metafísica. Mas as ciências, se podem analisar a composição dos corpos, nada nos dizem sobre as causas e os fins da própria existência do homem e do mundo; e a metafísica, mesmo quando esgotasse toda a capacidade da razão humana, não nos levaria mais longe no plano ético do que aquela situação existencial de angústia, de náusea, de lúcida perplexidade, de lógico desespero, de dialéctica do ser e do nada de que falámos ao princípio destas considerações.
Não é senão natural, por conseguinte, que os mais profundos teorizadores da nossa universidade, pensando-a a partir dos conceitos próprios da filosofia portuguesa, se afastem da metodologia proposta pelos pensadores franceses, alemães, espanhóis ou italianos. Não me é possível aceitar que a educação superior fique sujeita à dispersão, à multiplicidade, ao jogo caótico de jornais de todas as índoles, livros de todos os géneros, expressões publicitárias de todas as intenções, tendo no cume um instituto para uso exclusivo de élites intelectuais - o que teria de equivaler não só a uma aristocratização cultural, como a uma entronização do saber puro.
Porque é finalista, porque crê que o conhecer, o sentir e o agir devem andar sempre indissoluvelmente ligados, para que a nau possa efectivamente navegar, em vez de permanecer parada, afundando-se, enquanto o capitão e os oficiais examinam as estrelas ao telescópio - o pensamento português defende que a educação verdadeira não é apenas transmissão de saber, mesmo superior, como o querem Ortega e Croce, é igualmente formação de sensibilidade, pela arte, e da vontade, pela adequação do acto à ideia. A responsabilidade cultural da Universidade não pode, por conseguinte, ser adiada ou transposta para outros campos. Não é desejável que seja criado um abismo demasiado profundo entre os filósofos e cientistas, de um lado, formando-se fora da Universidade, entregues exclusivamente a problemas racionais e materiais de conhecimento - e os técnicos, do outro lado, cada um dedicado à sua parcela profissional, restrita e desligada do conjunto. Pelo contrário - parece-me que a boa doutrina consistiria em unir, comunicando-lhes por igual uma visão unívoca do universo, que lhes dê consciência da posição relativa e da função superior da respectiva técnica, profissão ou especialização, filósofos e cientistas - engenheiros, arquitectos, advogados, professores, médicos ou economistas.
Não é senão natural, por conseguinte, que os mais profundos teorizadores da nossa universidade, pensando-a a partir dos conceitos próprios da filosofia portuguesa, se afastem da metodologia proposta pelos pensadores franceses, alemães, espanhóis ou italianos. Não me é possível aceitar que a educação superior fique sujeita à dispersão, à multiplicidade, ao jogo caótico de jornais de todas as índoles, livros de todos os géneros, expressões publicitárias de todas as intenções, tendo no cume um instituto para uso exclusivo de élites intelectuais - o que teria de equivaler não só a uma aristocratização cultural, como a uma entronização do saber puro.
Porque é finalista, porque crê que o conhecer, o sentir e o agir devem andar sempre indissoluvelmente ligados, para que a nau possa efectivamente navegar, em vez de permanecer parada, afundando-se, enquanto o capitão e os oficiais examinam as estrelas ao telescópio - o pensamento português defende que a educação verdadeira não é apenas transmissão de saber, mesmo superior, como o querem Ortega e Croce, é igualmente formação de sensibilidade, pela arte, e da vontade, pela adequação do acto à ideia. A responsabilidade cultural da Universidade não pode, por conseguinte, ser adiada ou transposta para outros campos. Não é desejável que seja criado um abismo demasiado profundo entre os filósofos e cientistas, de um lado, formando-se fora da Universidade, entregues exclusivamente a problemas racionais e materiais de conhecimento - e os técnicos, do outro lado, cada um dedicado à sua parcela profissional, restrita e desligada do conjunto. Pelo contrário - parece-me que a boa doutrina consistiria em unir, comunicando-lhes por igual uma visão unívoca do universo, que lhes dê consciência da posição relativa e da função superior da respectiva técnica, profissão ou especialização, filósofos e cientistas - engenheiros, arquitectos, advogados, professores, médicos ou economistas.
Leonardo Coimbra, um dos fundadores da filosofia portuguesa, que na desaparecida Faculdade de Letras do Porto formou toda uma geração de pensadores que ocupam hoje um relevante lugar na vida cultural do nosso país, foi dos primeiros a defender um conceito dinâmico de cultura, quando afirmou que o «fim da educação é a cultura nacional-humana» (5), e que «educar é cultivar as liberdades criadoras da cultura nacional-humana» (6). Por outras palavras, educar não será unicamente desenvolver a inteligência do educando ou transmitir-lhe conhecimentos - será também fazer de cada educando, a peça essencial de uma pátria em movimento de ascensão. Não é mais educado, neste sentido, o grande sábio que se recolhe egoistamente na sua torre de marfim, do que o trabalhador rural rude e analfabeto.
Álvaro Ribeiro, discípulo de Leonardo Coimbra, ampliou os conceitos do mestre, propondo um sistema universitário em que a cada Faculdade seja dado um grau de responsabilidade cultural superior ao que existe actualmente, seja pela criação de disciplinas teoréticas, especialmente adequadas às matérias constantes do programa, seja pelo progresso da relação mestre-discípulo, relação quase desaparecida do ensino universitário, seja pela diversificação e enriquecimento dos tipos de ensino. No cume do sistema universitário, ficaria colocada a Faculdade de Filosofia, à qual competiria a «centralização das experiências pedagógicas e das investigações filosóficas que, pelas suas características perturbadoras, afectam a normalidade das outras escolas»; nela se reflectiria, «dinâmica e vivente», afirma o autor de «Apologia e Filosofia», «a unidade da cultura nacional» (7).
O ensino da filosofia está hoje, como se sabe, entregue à Faculdade de Letras, instituição que reúne vários Cursos díspares, desde o de Filologia Clássica ao de Ciências Históricas e Filosóficas. Uma Faculdade de Filosofia teria necessariamente que sair de uma reforma da Faculdade de Letras, separando a Filologia da História e esta da Filosofia. Mas semelhante divisão, que não deixaria de ser benéfica, acrescente-se, conservaria possivelmente a estrutura do ensino da filosofia tal como ali é praticado actualmente. Neste aspecto, o núcleo teorético da Faculdade de Letras está longe, muito longe mesmo de poder assumir o papel de promotor e activador da «unidade da cultura nacional».
Um ensino de feição positivista, historicista, indiferente aos valores específicos da cultura portuguesa, limitando-se a transmitir sínteses históricas de correntes estrangeiras, nivela-se ao das escolas de especialização profissional, usando os mesmos processos para o desenvolvimento espiritual do aluno que usam as faculdades de medicina ou engenharia para a aptidão técnica dos seus licenciados. Para obter a licenciatura, o aluno do actual curso de Ciências Históricas e Filosóficas não tem que saber pensar, sentir ou agir - apenas aprender de memória as noções históricas de compêndio, que encerram em meia dúzia de frases, os pensamentos de Descartes, Kant ou Espinosa. Na realidade, este curso pode ser considerado, no condicionalismo já descrito no capítulo anterior, simplesmente como outra escola técnica (in «A angústia do nosso tempo e a crise da universidade», Cidade Nova, 1956, pp. 121-132).
Álvaro Ribeiro, discípulo de Leonardo Coimbra, ampliou os conceitos do mestre, propondo um sistema universitário em que a cada Faculdade seja dado um grau de responsabilidade cultural superior ao que existe actualmente, seja pela criação de disciplinas teoréticas, especialmente adequadas às matérias constantes do programa, seja pelo progresso da relação mestre-discípulo, relação quase desaparecida do ensino universitário, seja pela diversificação e enriquecimento dos tipos de ensino. No cume do sistema universitário, ficaria colocada a Faculdade de Filosofia, à qual competiria a «centralização das experiências pedagógicas e das investigações filosóficas que, pelas suas características perturbadoras, afectam a normalidade das outras escolas»; nela se reflectiria, «dinâmica e vivente», afirma o autor de «Apologia e Filosofia», «a unidade da cultura nacional» (7).
O ensino da filosofia está hoje, como se sabe, entregue à Faculdade de Letras, instituição que reúne vários Cursos díspares, desde o de Filologia Clássica ao de Ciências Históricas e Filosóficas. Uma Faculdade de Filosofia teria necessariamente que sair de uma reforma da Faculdade de Letras, separando a Filologia da História e esta da Filosofia. Mas semelhante divisão, que não deixaria de ser benéfica, acrescente-se, conservaria possivelmente a estrutura do ensino da filosofia tal como ali é praticado actualmente. Neste aspecto, o núcleo teorético da Faculdade de Letras está longe, muito longe mesmo de poder assumir o papel de promotor e activador da «unidade da cultura nacional».
Um ensino de feição positivista, historicista, indiferente aos valores específicos da cultura portuguesa, limitando-se a transmitir sínteses históricas de correntes estrangeiras, nivela-se ao das escolas de especialização profissional, usando os mesmos processos para o desenvolvimento espiritual do aluno que usam as faculdades de medicina ou engenharia para a aptidão técnica dos seus licenciados. Para obter a licenciatura, o aluno do actual curso de Ciências Históricas e Filosóficas não tem que saber pensar, sentir ou agir - apenas aprender de memória as noções históricas de compêndio, que encerram em meia dúzia de frases, os pensamentos de Descartes, Kant ou Espinosa. Na realidade, este curso pode ser considerado, no condicionalismo já descrito no capítulo anterior, simplesmente como outra escola técnica (in «A angústia do nosso tempo e a crise da universidade», Cidade Nova, 1956, pp. 121-132).
Notas:
(1) Afonso Botelho, O Drama do Universitário, Lisboa, 1955.
(2) Ortega y Gassett, Mission de la universidad, Madrid.
(3) In Acto, n.º 1, Lisboa, 1951. Entrevista de Luís Washington.
(4) In Acto, n.º 2, Lisboa, 1952. Entrevista de Luís Washington.
(5) Leonardo Coimbra, O Problema da Educação Nacional, Porto, 1926.
(6) Ob. cit.
(7) Álvaro Ribeiro, O Problema da Filosofia Portuguesa, Lisboa, 1943.
Continua
(1) Afonso Botelho, O Drama do Universitário, Lisboa, 1955.
(2) Ortega y Gassett, Mission de la universidad, Madrid.
(3) In Acto, n.º 1, Lisboa, 1951. Entrevista de Luís Washington.
(4) In Acto, n.º 2, Lisboa, 1952. Entrevista de Luís Washington.
(5) Leonardo Coimbra, O Problema da Educação Nacional, Porto, 1926.
(6) Ob. cit.
(7) Álvaro Ribeiro, O Problema da Filosofia Portuguesa, Lisboa, 1943.
Continua
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