sexta-feira, 29 de março de 2013

Afonso de Albuquerque (ii)

Afonso de Albuquerque (ii)
Escrito por Oliveira Martins


«Quem for senhor de Malaca tem a mãao na garganta de Veneza».

Tomé Pires


«A meu parecer, vos tendes a Himdia aguora em maior-rrisquo pello casso d'Afonso d'Albuquerque que pollo dos rumes...».

António de Sintra ao rei D. Manuel, Dezembro de 1508.


«Quando, em Novembro de 1513, António Raposo passava por Cananor, abordou Albuquerque com certo embaraço e confiou-lhe que Gaspar Pereira lhe pedira para juntar o seu nome a uma lista de queixas já assinada por mais seis pessoas. Entre esses nomes, alguns dos fiéis de Albuquerque, como D. João de Lima e Manuel de Lacerda. António Raposo só pudera obter uma cópia que mostrou ao governador. Imediatamente convocados, os pretensos signatários declararam nunca terem ouvido falar de nada e consideravam Gaspar Pereira um perigo público. Depois, começaram a falar à vontade, e um tal António Madeira disse que tinha visto uma carta escrita por Diogo Pereira, ditada por António Real e enviada ao rei um ano antes. Trazido à presença do governador, Diogo Pereira perdeu a cabeça e solicitou perdão. Foi-lhe concedido, mas na condição de dizer a verdade. Em resposta, entregou ao governador a cópia da carta, de que se fez leitura pública na presença de António Real. Este só jurava sobre os Evangelhos que era tudo falso e atribuía as culpas ao diabo que o tentara.

A análise destas acusações, caluniosas na grande maioria, esclarece o comportamento de Albuquerque e, também, o estado de espírito dos contemporâneos. Ele próprio classificava os detractores em três categorias: invejosos, despeitados e ofendidos. Se os primeiros constituem uma legião na sombra dos vencedores, os outros manifestavam reacções fáceis de entender. Viviam todos numa época em que o entusiasmo criado por novas empresas era travado pelo forte peso das antigas. O prestígio dos altos feitos da cavalaria não se apagara ainda no coração dos fidalgos. Colocavam a honra ao serviço de combates singulares e tornavam a iniciativa de acções militares desconexas que lhes tinham valido severas chamadas à ordem. Albuquerque denunciava o individualismo de tal comportamento e a emulação que os levava a «folgar com as quebras e desastres que acontecem aos outros.

As técnicas da guerra moderna, introduzidas na Índia pela gente de ordenança, tinham sido rejeitadas por um grupo de nobres. A chegada de um exército profissional representava pôr em causa a função social da nobreza e originou tantos melindres que foram inúmeras as sabotagens e lanças partidas. Diante de Adem, o governador mandara separar em barcos distintos os soldados de ofício e os homens de armas ligados aos fidalgos».

Geneviève Bouchon («Afonso de Albuquerque: Leão dos Mares da Ásia»).


«Eu sam pessoa pera que se meterem doze reynos na mão pera os governar com muita prudência, descriçam e saber... tenho hidade pera saber ho bem e ho mall».

Afonso de Albuquerque


Só e livre, absoluto senhor do império nascente, Albuquerque entregou-se com franqueza e decisão ao seu projecto. A primeira condição dele era a fundação de uma cidade, uma capital portuguesa - coisa que até então não existira. Cochim, cujo rajá desde o princípio se abraçara aos novos invasores, era uma cidade índia, onde possuíamos apenas uma fortaleza, abrigo da feitoria e guarda de um porto amigo. Albuquerque elegeu Goa para capital. Colocada a meia altura da costa ocidental da península, bom porto, a cidade reunia as condições desejáveis. Fazia ele então parte do reino de Vijajapur (Bijapor), fracção que no fim do XV século se separara do de Dekkan, declarando-se o seu Cã independente, sob o título de adil-xá (Adil-Khan, Hidalcão); e o adil-xá do Vijajapur, ao tempo de Albuquerque, tinha por seu nome Iusuf. Por este governava em Goa Sipahdar, a quem os nossos chamaram Sabaio. Em Fevereiro de 510, Albuquerque tomou Goa por surpresa; e pela primeria vez houve no Oriente um Estado português. Até então, depois de uma batalha, a tomada de um lugar significava apenas a substituição da suserania indígena pela nossa; e o estabelecimento de feitorias e a construção de fortalezas, tinham somente em vista assegurar o comércio e a cobrança das páreas ou tributos de vassalagem, segundo o plano do primeiro vice-rei. Albuquerque iniciava um sistema diferente: criava uma cidade propriamente portuguesa; e com o novo governador, o nosso domínio desembarcava dos navios para a terra firme. A um sistema de colónias, como fora em volta do Mediterrâneo o dos fenícios ou o dos gregos, substituía-se um império, como Aníbal o sonhara na Itália, e Alexandre o fundou na Ásia. Albuquerque, porém, não pensava em fazer de Goa uma cidade portuguesa, no sentido de ser exclusivamente habitada por europeus: seria quimérico. Faltava-lhe gente, e para obviar a isto fomentou os cruzamentos de portugueses com mulheres indígenas, criando, tanto em Goa como depois em Malaca (7), uma população de mestiços, que mais tarde se tornou um dos elementos de dissolução do nosso império. Sob o domínio português, os naturais viveriam livremente na sua religião, com as propriedades garantidas, mas sujeitos ao império protector e soberano de Portugal (8). Era um plano correspondente ao que mais tarde os ingleses puseram em prática, sem todavia cruzarem com os indígenas; da mesma forma que os holandeses preferiram os planos marítimo-comerciais de D. Francisco de Almeida.

Goa ocupou ao governador todo o ano de 510; porque o Sabaio, tomado por surpresa em Fevereiro, voltou no Verão; e os soldados de Albuquerque não quiseram resistir-lhe. Apesar do desespero e das maldições, da fúria e das ameaças do governador, abandonaram a cidade e embarcaram. Os planos de Albuquerque pareciam loucuras aos bandidos e piratas da Índia, que além de lhes não compreenderem o alcance, se viam privados de saques, apenas fartos de guerra. Goa perdeu-se em Agosto; mas logo tornou para o domínio português, ganha por assalto em Novembro. Os soldados obedeciam, porque o comando do governador era terríbil, desapiedada a sua crueldade genial, fervorosa a sua fé católica. Alexandre cria-se um deus, Albuquerque viu mais de uma vez os milagres do céu nas horas do combate. Em Goa viu Santiago: um cavaleiro de armas brancas, no manto uma cruz vermelha, pelejando contra os mouros (9) - conforme a tradição histórica portuguesa. Nas cidades da costa da Arábia, viajando para Ormuz, as suas crueldades tinham sido bárbaras: em Goa não o foram menos. Além queria impor pelo medo; aqui destruía como político. Todos os mouros de ambos os sexos, de todas as idades, mais de seis mil, foram mortos (10); e queimados vivos os que se tinham refugiado na mesquita, sendo a terra assim «despejada», porque para sossego dela só devia conter gentios. Era o lugar escolhido para capital do império dos novos gregos pelo moderno Alexandre.

Santiago, o Apóstolo guerreiro
Consolidada a posse da capital, no coração da Índia, Albuquerque voltou-se rápido para as duas empresas que rematariam o seu império: Malaca e Ormuz. Embarcou, logo no princípio de 511, e tocando em Ceilão, a terra encantada das pedras preciosas, delícias do mundo, pátria da canela e das pérolas, achamo-lo, já em Maio, em frente de Malaca, no Extremo Oriente.

Malaca, na ponta da península da Indochina, sobre o estreito a que dá o nome, era para esta região, como Ormuz, a norte-leste, para a outra. Assim como além se permutavam os géneros da Índia com os da Arábia e da Pérsia, e em Adém com os dos Egipto; assim em Malaca se faziam todas as trocas dos produtos ocidentais da China e das Molucas, e de todo o Extremo Oriente. De Malaca iam as naus a Ternate e a Tidor, a Banda e a Ambon, em procura do precioso cravo; e o estreito andava coalhado de juncos de Java, conduzindo à cidade o arroz, as carnes, a caça e os crises tauxiados de fino aço, em troca dos damascos e brocados, que levavam de retorno para as ilhas do arquipélago. Anfíbios, os malaios viviam no mar em permanência, com a casa e a família a bordo; e os seus juncos, com enxárcias de verga, iam buscar a Malaca os panos de Paleakat e de Mahabalipurum (Meliapor), na costa de Coromandel, e as drogarias de Kambai.

Do saque de Malaca, o governador reservou para si apenas seis leões de bronze, destinados ao seu túmulo. Sem se demorar, avassalou todo o arquipélago malaio, levantando fortalezas e deixando guarnições; e, segura a porta oriental da Índia, voltou-se a Goa, de caminho para Ormuz e Adém, a consolidar o império pelo Ocidente. Em Fevereiro de 513, sai com uma armada para Adém, que não consegue tomar; viaja em torno do Mar Vermelho, incendiando e bombardeando as costas; mas não sente forças para levar a cabo o seu plano de conquistar a Arábia, indo a Meca despedaçar a santa Caaba. A campanha de 513 não tem portanto resultado positivo, desde que Adém consegue resistir às investidas do governador. Adiou pois para outra vez esses planos, que eram a cúpula do seu edifício e a chave do império que vinha construindo. Conquistada Adém, as duas empresas que meditava eram relativamente fáceis na sua simplicidade temerária. Levaria quatrocentos homens de cavalo em taforeias ou caravelas e iria desembarcar em Liumbo, partindo num galope até Meca, lugar santo mal guardado por gente prostrada em adorações. Roubaria o tesouro sagrado e o próprio corpo do profeta: com ambos se resgataria o Santo Sepulcro de Jerusalém, cativo. Consumar-se-ia a obra malograda das Cruzadas, tradição piedosa que na Renascença passara das nações do norte para a Itália e para a Espanha, arrastando mais tarde Portugal a Alcácer Quibir. Ao mesmo tempo, e por outro lado, a grande empresa do Mar Vermelho descarregaria um golpe mortal no Egipto, que era a jóia do império dos turcos e o arsenal de onde vinham as armadas à Índia. O seu plano consistia em «cortar uma serra mui pequena que corre ao longo do rio Nilo, na terra do Preste-João, para lançar as correntes dele por outro cabo que não fossem regar as terras do Cairo» (11). Desviando o Nilo secaria o Egipto (12). Já pedira a D. Manuel que lhe mandasse oficiais da Madeira, onde os havia mestres no corte das serras para formar as levadas de rega dos canaviais. Tudo isto continha a empresa de Adém, cujo malogro cortou os voos às ambições grandiosas do herói.


Embora no céu, lá para os lados das terras do Preste abexim, tivesse fulgurado aos olhos do místico e terrível herói uma cruz vermelha, Cristo abandonara-o na empresa. Quando o famoso milagre surgiu, Albuquerque e todos, ingenuamente, crentes na missão divina em que andavam, caíram de rastos adorando a cruz (13). E o capitão, para corresponder ao céu, mandou tanger os coros de trombetas, responder com artilharia aos cumprimentos de Jesus. Lavrou-se um estromento assinado pelas guarnições, que veio para D. Manuel, com carga de pimenta, afervorar a piedade mística da corte cartaginesa (14).

Como, porém, apesar do milagre, nada se fez, Albuquerque em 514 volta-se para Ormuz, cujo domínio não estava seguro. Outro Alexandre em Persépolis, o herói condenou-se em Ormuz: a grandeza das suas façanhas tinha-lhe feito nascer um orgulho, que já não distinguia o bem do mal. Orientalizado com o imperador, cujos exemplos seguia, não lhe bastavam já a crueldade, nem a força: apelava para a perfídia; e intrometendo-se nas miseráveis políticas dos persas, chamou à sua tenda para uma festa o ministro que então governava o príncipe idiota de Ormuz, e assassinou-o covarde e friamente, substituindo-se-lhe. Estava próximo da cova: e a sorte não queria que à história deste herói faltasse o epílogo frequente na história dos heróis: uma abjecção. Tão-pouco a verdade consente que se esconda um fraco de vaidade e fraqueza comum. Alexandre mimoseava os literatos de Atenas para que o exaltassem: Albuquerque mandava anéis de pedras preciosas ao cronista Rui de Pina «para escrever com melhor vontade os memoráveis feitos da Índia».

Da volta de Ormuz a Goa morreu na viagem: a morte salvava-o, como fizera a D. Francisco de Almeida, dos ferros que tinham servido a Duarte Pacheco. A corte de Lisboa já o mandara substituir no governo por Lopo Soares de Albergaria, que, chegando, começou por condenar o seu predecessor, exaltando todos os que lhe eram inimigos. Antes de acabar, Albuquerque pegou na pena e dirigiu uma carta ao rei - «quando esta escrevo a V. A. estou com um soluço que é sinal de morte!». E pedia-lhe que lhe honrasse a memória e protegesse o filho; o que o rei fez, honra lhe seja. Agonizando, via-se incompreendido pela tacanha corte de Lisboa, e aceitava de bom grado a morte: «Mal com os homens por amor de el-rei, mal com el-rei por amor dos homens, bom é acabar». E acabou, à vista de Goa. Era homem de meã estatura, rosto comprido e corado. Era avisado latino e de grandes ditos: falava e escrevia muito bem: mui fácil na conversação, muito grave no mandar, muito manhoso no negociar com os mouros, muito temido e amado de todos.

Nascera filho segundo de uma família de sangue nobre, e educara-se na corte militar de Afonso V, viveiro da geração dos capitães da Índia amestrados nas guerras de África. Fora em 1480 na esquadra mandada a Nápoles em auxílio do rei Fernando contra os turcos, e nove anos depois partira para África a defender a fortaleza da Graciosa, em Larache, contra os mouros. Era estribeiro-mor de D. João II e já um grande fidalgo quando, em 1503, D. Manuel o mandou à Índia pela primeira vez. Foi, voltou com bons créditos, mas sen nada ter feito de singular; provavelmente observou e aprendeu muito, levando já um plano formado quando o rei o mandou como capitão na esquadra de Tristão da Cunha. Dessa ida começa a história que narrámos e que termina agora com a sua morte.

Os soldados, a bordo, amortalharam-no no hábito de Santiago com borzeguins e esporas, espada à cinta, na cabeça uma carapuça de veludo e aos ombros uma beca também de veludo. O enterro subiu em lanchas, e era tamanho em todos o choro e pranto, que parecia fundir-se o rio de Goa. Ao desembarcar, foi levado aos ombros dos soldados, sob o pálio, pelas ruas da cidade que conquistara; e os gentios, vendo-o com os olhos meio abertos, a longa barba caída (15) até à cinta, flutuando, não o criam morto: Deus o chamara para alguma façanha no céu! Voltaria breve. E por muito tempo houve romarias ao sepulcro do herói, vindo os naturais pedir-lhe justiça contra os desmandos e perfídias dos portugueses, oferecendo-lhe boninas e azeite para a sua lâmpada. Do Extremo Oriente, desde o Pegu até à China, ficaram-lhe chamando o Leão do Mar (16).

Ormuz, Goa, Malaca, os três pontos cardeais do império fundado por Albuquerque no breve período de cinco anos (1507-11), valiam o domínio em todo o mar das Índias e a vassalagem de todas as costas, desde Sofala, em África, até o Golfo Pérsico; desde o Indo até ao cabo Kumari (Comorim); daí às bocas do Ganges, e descendo pelo Arakan e pelo Pegu, até Malaka com as ilhas dispersas de Madagáscar e Socotorá, Angediva, os arquipélagos de Lakkha (Laquedivas) e de Malaja (Maldivas), Simhala (Ceilão) (17), e Sumatra e Java, Bornéu e as Molucas até os pontos extremos de Banda e Ambon. Com efeito, depois de Malaca e da viagem remerosa mas estéril de 513 a Adém, todo o Oriente pasmava e tremia de Albuquerque, o terríbil. A Goa vinham de toda a parte embaixadas e tributos; todos os príncipes queriam a amizade do português, e a seus pés arrastavam a coroa os rajás de Ahmednagar, e de Kambai, de Vijajapur e de Narsinga (18), o xá da Pérsia e os sultões de Sião, do Pegu, do Aracan; e até o próprio Hidalcão, o adil-xá do Canará, consentindo a fortaleza de Kalikodu, comprada com tanto sangue, seguia o exemplo do Gujerât, do Konkana, do Karnataka e de Benguela. Desde o Indo até o Ganges, pelo Cabo Kumari, desde Kambai até Golkonda, o litoral da península estava inteiramente submetido ao jugo português.

Entretanto este império não podia dizer-se ainda construído: era um esboço apenas. Como depois de uma vitória brilhante os tímidos se curvam todos perante o vencedor, assim acontecia no Oriente. Lançado na política de conquista, o império português ganhava a primeira batalha; mas não podia decerto ensarilhar as armas, enquanto a costa da Arábia e as margens do Mar Vermelho se conservassem em poder dos inimigos. Os naturais da Índia, avassalados por uma corrupção antiga, aceitavam o domínio de qualquer vencedor; mas era necessário, para o manter, que a vitória fosse decisiva. Ora o inimigo, o mouro, fora batido, mas não fora expulso. Como numa doença, tinham-se debelado muitos sintomas, mas não se destruíra o princípio mórbido. Adém continuava a ser o o empório do domínio comercial marítimo dos árabes e egípcios no Oriente; o Mar Vermelho, o Suez, no extremo fundo desse estreito corredor, as bocas sempre abertas, para vazar sobre a Índia navios, artilharia e soldados. O domínio, que os portugueses se propunham substituir, continuava; e do carácter dual ou misto que a ocupação da Índia apresentava, resultaria um estado de guerra permanente com os mouros e com os naturais, que ora os preferiam a eles, ora a nós. Ninguém, nação alguma seria capaz de resistir a um século inteiro de semelhante vida. O destino do império português do Oriente dependia do exclusivo do domínio, desde que era impossível pactuar ou dividir a presa entre os dois caçadores rivais.

O génio de Afonso de Albuquerque adivinhava isto com toda a lucidez; Adém, Meca, o Mar Vermelho eram a sua preocupação: «Três coisas, diz o filho e commentador, há na Índia que são escápulas de todo o comércio das mercadorias daquelas partes, e chaves principais dela. A primeira é Malaca, que está em três graus na entrada e saída do estreito de Singapura; a segunda Adém, que está em vinte e um graus de altura e na entrada e saída do Mar Roxo; a terceira é Ormuz, a qual está em quinze graus e na entrada e saída do estreito do mar da Pérsia. Este Ormuz, a meu ver, é a principal de todas. E se el-rei de Portugal tivera senhoreado Adém pudera chamar-se senhor de todo o Mundo». Dar um golpe mortal no Islamismo era, além de retribuir em Meca a afronta humilhante de Jerusalém, mostrar aos muçulmanos do Oriente que Jesus podia mais do que Mafoma. Mas se o génio excepcional de Albuquerque não bastou para levar a empresa ao fim, como poderiam bastar para isso os pigmeus que lhe sucederam? Valentes muitos ou quase todos, incansáveis no mar e na terra, os governadores da Índia foram extenuando em um século de guerra permanente as limitadas forças da nação, sem pensamento político, sem plano definido, à toa e à mercê de um capricho, ou de uma ideia a que o crime imbecil da corte limitava constantemente os voos. A primeira política, a marítima, fora abandonada com a queda de Francisco de Almeida; a segunda política, a imperial, condenada com a deposição e morte de Albuquerque. Faltava assim a condição essencial de um domínio estável e seguro: uma tradição (in ob. cit., pp. 196-202).


Notas:

(7) V. As Raças Humanas, O. C., I., V., pp. 49 a 50.

(8) «Não consentia o governador A. de A. que os portugueses tratassem (negociassem), dizendo que onde tratassem haviam de querer ser poderosos e valorosos e não ser humildes como mercadores, do que se recreariam males de os matarem e perderem suas fazendas... e também que, se os mouros vissem que lhes tomávamos seus tratos nos teriam mor ódio, e mais, que os homens, andando tratando, andavam fora do serviço de Deus e de El-rei. Com esta pragmática os portugueses eram muito temidos por cavaleiros e não mercadores, e tão temidos e obedecidos que ainda que um só português fosse em uma almadia, se o topassem naus de mouros todas amainavam e lhe iam obedecer, mostrando-lhe seus cartazes que tinham para navegar, que todos eram assinados por A. de A.». (Gaspar CORREIA, Lendas, I, p. 518).

(9) V. Sistema dos Mitos Religiosos, O. C., p. 307.

(10) Diz BARROS, Ásia, Década II, Liv. V, cap. IX: «...assi nesta fugida no rio, como debaixo do ferro dos nossos, dos mouros que morreram mais de seis mil pessoas de idade».

(11) V. História da Civilização Ibérica, O. C., p. 251.

(12) V. As Raças Humanas, O. C., pp. 177 e segs.

(13) V. Sistema dos Mitos Religiosos, O. C., p. 309.

(14) Na extensa carta que, relativamente à sua acção na Índia, envia ao Rei, com data de 4 de Dezembro de 1513, Afonso de Albuquerque penitencia-se de, mediante aquele aviso, não ter prosseguido em o caminho que tomara; «e como homens de pouca fé não ousámos de cometer o caminho, que creio as nossas naus de uma volta na outra o puderam haver: e pecou isto também por ser já homem velho, vadeado da condição e inclinações dos homens» (Alguns Documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, 1892, p. 381).

(15) Até à 3.ª ed., caída. Seguidamente, porém, atada, o que é de aceitar, porque o vice-rei, através do que sabemos pelos retratos existentes, usava de um lacinho no termo das barbas para que estas, certamente, se não desmantelassem na compostura. Mantemos, no entanto, o que o A. deixou escrito até à dita edição, em razão de se dizer logo depois que elas, mesmo assim morto, flutuavam.

(16) Ainda hoje os indianos chamam Afonso de Albuquerque a um certo peixe, do tamanho da corvina, e cujo nome zoológico não pudemos apurar. Diz a lenda que o Leão do Mar não morreu: afundou-se, e revive nesses animais marinhos. A maxila inferior do peixe, descarnada, tem o aspecto aproximado das figuras portuguesas do século XVI; o barrete, as barbas pontiagudas e longas, etc. Os indianos pintam esses ossos, dando-lhes fisionomia humana e guardam os Afonsos de Albuquerque como fetiches.

(17) V. Instituições Primitivas, p. 3.

(18) V. Instituições Primitivas, O. C., pp. 131 e segs.

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