domingo, 17 de fevereiro de 2013

Brincar de fazer política

Por Elísio Macamo


Caiu na minha caixa de correio um convite endereçado às organizações da sociedade civil em Moçambique para participarem num encontro com o Banco Mundial no Hotel VIP. Vai-lhes ser explicada a nova estratégia para desenvolver ainda mais Moçambique e o mundo. Tem o nome de Parceria Global para a Responsabilização Social. O Banco Mundial lidera uma aliança global que envolve organizações da sociedade civil, governos e instituições académicas com o objectivo de financiar iniciativas cívicas que promovam a participação política dos cidadãos, reforcem a política e tornem os governos mais atentos às preocupações dos seus cidadãos. Parece boa coisa, mas não é.
Isto é, oferecem-nos dinheiro para fingirmos que estamos a fazer política. Vão dar entre meio milhão e um milhão de dólares a organizações moçambicanas por períodos de tempo compreendidos entre 3 a 5 anos. Essas organizações têm que ter como objectivo monitorar os efeitos sociais da indústria extractiva (claro) em Nampula, Cabo Delgado e Tete, a disponibilização de serviços de educação e saúde bem como o reforço da capacidade técnica da sua própria organização. O encontro será no próximo dia 19 de Fevereiro e haverá de certeza comeretes e beberetes.
Estamos fritos, mais uma vez. De novo fica patente a nossa vulnerabilidade em relação às ideias fantásticas – no sentido de fantasia – que resultam do aparente ócio a que estão entregues os burocratas internacionais que determinam uma boa parte dos nossos destinos. O Banco Mundial espera gastar até 125 Milhões de dólares, nos próximos 7 anos, neste processo. Não há, claro, nenhuma obrigatoriedade. O programa só se aplica aos países cujos governos aderem (“opting in” é o termo). Em África, por enquanto, a Tunísia, o Malawi e Moçambique “optaram-se”. O nosso país fez o “opt in” de certeza porque dinheiro é sempre dinheiro ou, o que me parece mais provável, porque fica mal não o fazer. De qualquer maneira, o Banco Mundial adverte aos renitentes que vai continuar a lidar com eles por meio do diálogo sobre políticas e também por trabalho analítico que promova cada vez maior espaço para a acção da sociedade civil na responsabilização social. É uma advertência que lembra a famosa frase de Don Corleone – do livro “O Padrinho” de Mario Puzzo: “vou lhe fazer uma oferta que ele não vai recusar”.
Em princípio não há nada de errado em promover a responsabilização social, mesmo quando ela parte duma instituição financeira como o Banco Mundial que não se submete a esse exercício democrático e nunca pensou em se responsabilizar perante as pessoas que são vítimas ou beneficiárias da sua intervenção. Aliás, a ausência – ou melhor: a fraqueza – da responsabilização social em Moçambique é que tem constituído um dos maiores calcanhares de Aquiles do nosso sistema político. A democracia é fundamentalmente isso. Quem tem o mandato para governar deve contas a quem lhe deu esse mandato. Essas contas não podem esperar apenas pelo escrutínio eleitoral. Têm que ser no dia a dia. Portanto, o diagnóstico feito pela tal Parceria Global – como irritam estes eufemismos! – não está errado. Está, em minha opinião, errado, mais uma vez, o remédio proposto. O principal problema consiste na transformação dum problema político num problema técnico, aliás, uma tendência característica da intervenção para o desenvolvimento e que, quanto a mim, é responsável pelos desaires que as políticas de desenvolvimento têm vindo a sofrer. Já o economista americano William Easterley – que já foi funcionário do Banco Mundial – tinha criticado esta tendência com a distinção útil que ele fez entre aqueles que “planeiam” (planners) e aqueles que “procuram” (searchers). Os primeiros são os das medidas técnicas que caiem de cima para baixo; os segundos são do quotidiano que procuram por soluções locais para problemas definidos localmente. Os primeiros promovem, pela sua utopia, o totalitarismo das boas intenções que nos sufocam com as suas declarações de amor obscenas.
É difícil, perante iniciativas deste género, não concordar com alguns críticos desvairados do auxílio ao desenvolvimento – tipo Dambisa Moyo, James Shikwati e Andrew Mwenda – quando eles nos alertam para o teor tóxico da ajuda que recebemos. Muito difícil. É que o segundo problema com esta iniciativa é de promover o enfraquecimento activo dos mecanismos políticos locais a favor do fomento e alimentação duma burocracia samaritana local que se reproduz na externalização dos nossos problemas e que, para piorar as coisas, vai dever contas ao Banco Mundial e não às pessoas a quem vai “ajudar”. A Renamo, o MDM e outras formações políticas que fazem a oposição (para além dos meios de comunicação de massas) precisam mais de apoio do que essa burocracia local. Eles precisam de se dotar duma capacidade de análise de políticas, de auscultação dos seus eleitores, de mobilização de interesses que mais do que grupos parasitas da sociedade tem maior probabilidade de tornar o sistema político mais responsável. Em quase todos os grandes temas recentes da nossa actualidade política – greve dos médicos, inundações, etc. – foi gritante a ausência da voz da oposição, mas ensurdecedora a voz daqueles que tiram dividendos financeiros pela advocacia.
Entre promover esta capacidade no MDM, na Renamo ou mesmo num jornal tão ideológico e histérico como o Canal de Moçambique, ou então jogar dinheiro fora alimentando organizações como o “Parlamento Juvenil” acho preferível apostar nos partidos políticos (e em jornais), pois estes se afirmam como tal e, em princípio, congregam a verdadeira diferença que precisa de ser respeitada no país. A consolidação democrática na Europa não se deu por via do sustento de organizações parasitas e improdutivas. Foi por via do reforço de partidos políticos, sindicatos, meios de comunicação de massas e instituições de pesquisa e estudo de políticas. É mais uma vez esta ideia nefasta segundo a qual o povo precisa da mão de alguém para aprender a caminhar. E ficar a aprender a caminhar toda a vida...
O terceiro problema com esta iniciativa é que descura elementos muito mais importantes para a responsabilização social como, por exemplo, a protecção social, desde há muito enteada das políticas promovidas pela indústria do desenvolvimento. É verdade que ultimamente tem havido maior atenção a este elemento e que mesmo no país académicos como o António Francisco do IESE têm vindo a chamar maior atenção para a sua importância. Na Europa a política social teve um papel extremamente fundamental na politicização da sociedade. Os milhões de dólares que vão entregar a organizações parasitas poderiam ser melhor investidos promovendo e financiando sistemas de protecção social que transformassem um número cada vez maior de moçambicanos em verdadeiros cidadãos. Eram melhor empregues acabando com a brincadeira de mau gosto que é o PARPA a favor da segurança social (que não vai acontecer, claro, porque o FMI e o Banco Mundial, principais mentores disso, teriam de reconhecer que se enganaram, algo que eles dificílmente fazem e ao qual escapam por não estarem sujeitos à responsabilização social...). O cidadão precisa de instrumentos de pressão sobre o governo; precisa também dum interesse directo no sucesso da acção governamental. A protecção social confere ao cidadão as duas coisas, muito mais do que andar a preencher cartões em que diz estar satisfeito ou não com o atendimento recebido na unidade sanitária (que é o que basicamente está a acontecer nos lugares onde esta “responsabilização social” ocorre).
Tenho consciência de que pela forma generalizante como escrevo este comentário dou a impressão de meter todas as organizações da sociedade civil na mesma panela. É claro que há aquelas que fazem bom trabalho e aquelas que nos lixam. Mas a questão de fundo nem é essa. A questão é se faz sentido decretar a cidadania e gastar rios de dinheiro a aliciar pessoas a fazerem aquilo que devia ser natural. Perdi uma hora e meia do meu tempo a ver “online” uma discussão promovida pelo Banco Mundial em Dezembro do ano passado (e que contou com a presença do próprio Presidente do Banco e dos membros do comité de coordenação da nova iniciativa). Nunca vi discussão tão pobre em substância e argumentos como a que procura justificar mais esta agressão aos países em desenvolvimento. Tantos lugares-comum, trivialidades (do tipo “as mulheres em países em desenvolvimento podem ter acesso a telefones celulares, mas os maridos arrancam-lhes” proferida pela moderada do ilustre painel...) e a arrogância de quem tem dinheiro para jogar fora e, por isso, parte do princípio de que está do lado da razão.
No dia 19 de Fevereiro o Hotel VIP em Maputo vai estar cheio. Se eu estivesse em Maputo também tratava de criar uma organização e tentava a minha sorte. Depois, recebido o dinheiro, tratava de apostar na persistência do déficit democrático até a vaca ficar sem nenhuma gota de leite, o que é pouco provável, diga-se de passagem, pois os funcionários da indústria do desenvolvimento são exímios no dispêndio de dinheiro para cuja obtenção só precisaram de saber esgrimir jargão. E no meio disso tudo ia, pelo estilo de vida e vícios adquiridos à custa da agressão do Banco Mundial, concentrando a atenção do Governo na resolução dos problemas de gente como eu, mas sempre em nome dos miseráveis da Pérola do Índico. Chamava nomes ainda mais feios à Electricidade de Moçambique, por exemplo, por me privar de mais uma novela brasileira ou de jogo da liga dos campeões europeus completamente alheio à sorte daqueles que precisam de energia eléctrica para coisas mais essenciais à sua existência. A inclusão desses aí na rede eléctrica, mais do que a indiferença e incompetência da EDM, pode ser uma das razões mais importantes para os problemas técnicos enfrentados pela empresa.
Enfim, mais um desabafo. E longo como é necessário. Para mim o Banco Mundial é uma das instituições mais supérfluas que andam por aí. É muita pena que a direita americana não tenha conseguido nos livrar deste problema nos anos noventa. Bem que tentou.




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