Há vários factores que poderão fazer com que o discurso divisionista da Renamo encontre cada vez mais militantes, num futuro próximo, para o viabilizar. Desses factores arrolam-se as desigualdades sociais e a acumulação de riqueza sem observar as consequências que daí advêm por uma elite da Frelimo, bem como o crescente nível de exclusão social, resultante da inexistência de instituições políticas e sociais inclusivas.
O líder da Renamo, Afonso Dhlakama, tem vindo reiteradamente a ressuscitar o discurso de Manuel Pereira de 1999 – pronunciou depois das eleições em que a Renamo perdeu à tangente – de que “iremos dividir o país a partir do rio Save”. Aliás, a Renamo, na voz de David Alone, reivindicara a vitória nos seguintes termos: “O nosso ponto de partida é que a Renamo ganhou as eleições de 1999 com 52% do voto legislativo e 60% do voto presidencial. A Frelimo falsificou o resultado e a Renamo não reconhece Chissano nem o seu governo. Se Chissano quer estabilidade, deve satisfazer as exigências da Renamo. De contrário, haverá mais confusão”. Nessa altura, segundo o boletim da Awepa (2001), a Renamo e a Frelimo sofreram fortes pressões, internas e internacionais, para dialogarem e chegarem a uma espécie de acordo que daria à Renamo e a Dhlakama um papel mais importante, apesar de isso não estar previsto na Constituição.
Observadores eleitorais como EISA e autores como Hanlon (2001) demonstraram que a Renamo perdeu as eleições de 1999 por erros eventualmente propositados a respeito dos editais preparados pelo pessoal em cada assembleia de voto. Um segundo problema foi o grande número de votos e editais que precisaram de ser reconsiderados a nível nacional.
No mês passado (Dezembro de 2012), Afonso Dhlakama pronunciou-se publicamente por duas ocasiões sobre a intenção que a Renamo tem de dividir o país para constituir um novo Estado composto pelas sete províncias do centro e norte do país, nomeadamente, Sofala, Manica, Zambézia, Tete, Nampula, Cabo Delgado e Niassa.
O discurso de Dhlakama não faz, hoje, o mínimo de sentido e é insistentemente repudiado pela grande parte dos analistas, dos políticos e da população, inclusive pela comunicação social. De facto, é impertinente recorrer ao discurso da divisão do país.
Não percebo a agenda que a Renamo levou a estas últimas negociações (de finais de 2012) com o Governo, sobretudo no ponto que se refere à constituição de um Governo de Transição ou de Unidade Nacional e a dissolução de todos os órgãos de soberania. Este tipo de Governo constitui um arranjo político em países onde há uma crise política profunda, o que não me parece ser o caso de Moçambique. É uma anomalia da democracia, razão pela qual não se deve olhar como uma situação normal nem se tornar protótipo do modelo democrático africano. Os governos de Unidade Nacional geralmente resultam de processos eleitorais pouco transparentes em contextos em que o processo democrático, na sua vertente da democracia representativa, não é suficiente para captar as clivagens profundas sociopolíticas internas do país, de modo a que interesses de diferentes grupos sociopolíticos estejam representados a nível dos principais centros de tomada de decisão no campo político.
Outro aspecto que concorre para a constituição de governos de Unidade Nacional é o que resulta do facto de os dirigentes não admitirem o direito de “pensar diferente” (Mazula, 2008). Alude que “a democracia começa por admitir a diferença no pensar as coisas, no pensar a realidade. Os conflitos políticos e sociais desestruturantes começam geralmente com a não admissão de visões diferentes sobre a mesma realidade social e exacerbam-se na intolerância e na consequente exclusão do outro”.
A verdade é que a Renamo teve a oportunidade de liderar uma crise política em 1999, onde havia condições suficientemente criadas para o efeito. Não o fez, apesar do convite da Frelimo e de Chissano para que a Renamo nomeasse governadores para as províncias onde tinha ganho. No processo eleitoral desse ano, mais do que em qualquer outro processo, a transparência esteve em causa.
Como comenta Hanlon (2001): a Renamo perde muitas oportunidades, porque joga com base na regra “ou tudo ou nada”, foi por isso que perdeu a oportunidade de governar em 1999.
Ameaçou dividir o país e formar um governo paralelo por não reconhecer a legitimidade do processo, do candidato e do partido vencedor, neste caso Joaquim Chissano e Frelimo. Pouco tempo depois – não se sabe se por um acordo secreto com a Frelimo – a Renamo não só aceitou parar com as ameaças de manifestações e divisão do país, como também passou a reconhecer novas figuras eleitas, legitimando-as como novos governantes do país.
Pareceu-me que a função da comissão recentemente criada pela Frelimo, liderada por José Pacheco, não era mesmo para negociar fossem quais fossem as preocupações colocadas pela Renamo, mas ridicularizar a própria Renamo. É que José Pacheco não pareceu estar e dificilmente estará em condições de negociar com a Renamo. O seu perfil denuncia-o.
Mas a questão de fundo aqui é: o que pode fazer com que um dia o discurso divisionista da Renamo encontre simpatizantes?
Há vários factores que poderão fazer com que o discurso divisionista da Renamo encontre cada vez mais militantes, num futuro próximo, para o viabilizar. Desses factores arrolam-se as desigualdades sociais e a acumulação de riqueza sem observar as consequências que daí advêm por uma elite da Frelimo, bem como o crescente nível de exclusão social, resultante da inexistência de instituições políticas e sociais inclusivas.
É consensual – com excepção do Governo – que os níveis de pobreza estão a crescer. Hanlon (2010) não só defende esta posição, como também realça que a pobreza está a aumentar e a aprofundar-se em Moçambique, alargando consequentemente o fosso entre a metade dos mais pobres da população e a metade dos que se encontram em melhores condições.
Esta ideia é igualmente reforçada pelo relatório do Mecanismo Africano de Revisão de Pares (2009), quando se refere que o número de pessoas abaixo da linha de pobreza está a crescer e que o fosso entre ricos e pobres se alarga, criando um potencial de exclusão social e de conflitos.
Embora não faça sentido, não se deve subestimar o discurso da Renamo sob a alegação de que este partido ficou reduzido, nas urnas, à sua insignificância, aliado a problemas institucionais provocados pela sua ditatorial e vitalícia liderança. Embora esteja a perder influência no desenho e definição das decisões ou das políticas públicas nacionais, a Renamo continua a ter uma grande base de apoio, quer ao nível das cidades como do campo. Esta base que deixou de apoiar o seu partido nas urnas poderá aderir a uma nova estratégia que venha a ser desenhada pela liderança do seu partido. Não apoiar nas urnas não pode significar que esse eleitorado abandonou a Renamo. Pode ser que não se reveja na actual personalidade do seu líder. Uma mudança do discurso de Afonso Dhlakama pode reanimar o eleitorado que abandonou a Renamo por não se sentir identificado com o actual discurso e comportamento da sua liderança.
Tal como me referi acima, os actuais níveis de pobreza, desigualdades sociais e de acumulação de riqueza por um grupinho da elite política do partido no poder e a exclusão social resultante da inexistência de instituições políticas inclusivas constituem ameaça à estabilidade político-social do país. São esses factores que, no futuro, poderão fazer com que o discurso da Renamo, que hoje não faz sentido, amanhã tenha sentido.
No livro “Desafios para Moçambique 2012”, Brito publica um artigo interessante – “Pobreza, PARPA e Governação” –, no qual fez cálculos sobre o número de pobres no período entre 2003-2009 e conclui que em 2009 havia, em todo o país, mais de 2 milhões de pobres a mais do que em 2002.
São estes estudos que constituem aquilo a que Acemoglu e Robinson (2012) chamam “Conjuntura Crítica”, indispensável para o desenvolvimento de uma nação, que irritam o Chefe do Estado, Armando Guebuza, atribuindo aos autores deste tipo de trabalhos nomes como “apóstolos da desgraça”, e mais recentemente “agitadores profissionais”.
Nesta última investida do ano contra os “agitadores profissionais”, Guebuza observou: “Há países que, por causa deste tipo de intriga, fofoca, estão a bater-se tribo contra tribo, religião contra religião, e eles estão lá a tirar os recursos. E depois vêm para aqui dizer que o fosso entre os ricos e pobres está a aumentar…” e que “Muita gente fala e ouvimos dizer de que a riqueza não chega a todos. É verdade. Mas o problema que se coloca é que a riqueza é construída…todo o potencial está lá, mas enquanto não fizermos nada, não trouxermos a casa, a energia, a estrada para nós, através do trabalho árduo, elas não chegarão”. E concluiu: “Falamos hoje de recursos naturais em todo o lado e uns dizem que só enriquecem a alguns. Outros fazem-no por falta de informação, mas há os que o fazem por maldade”.
Esta reacção do Presidente da República demonstra que o Governo, embora reconheça o fenómeno, não quer assumir que tal seja uma realidade. A alergia à “conjuntura crítica” pode resultar do que Galbraith (2007) considera “efeito sicofântico ou bajulatório” ao líder. Trata-se de um fenómeno que tem que ver com a origem do poder de líder, ou seja, quando o poder do líder tem origem na sua personalidade, este procura ser rodeado de bajuladores, pessoas que o vêem como fenómeno e espelho da organização, daí repreender ou isolar os que tentam dizer o que ele não quer ouvir.
Atesta a alergia à “conjuntura crítica” em consequência do “efeito sicofântico” ao Presidente da República os pronunciamentos públicos quer dos governantes, quer dos deputados da Frelimo em suas intervenções, desde os jovens até aos idosos. Todos se referem a Guebuza como “um líder visionário” que “sabe dirigir os destinos do seu povo”.
De acordo Acemoglu e Robinson (2012), uma elite corrupta não vê problemas em saquear o Estado se não houver um contrapeso institucional. O surgimento das instituições inclusivas só ocorre quando há uma “conjuntura crítica”, que proporcione uma redistribuição de poder político e económico.
Brazão Mazula (2008) reforça esta ideia, defendendo que a história do desenvolvimento mostra-nos que as sociedades se desenvolvem social e economicamente quando elas se abriram ao que chama “pensar diferente”.
Outro problema que constitui ameaça à estabilidade sociopolítica em Moçambique é o que Forquilha (2011) considera “fraco grau de institucionalização da democracia”, o que resulta em instituições políticas e sociais não inclusivas, que são, segundo Acemoglu e Robinson, um obstáculo ao enriquecimento das nações. Para Acemoglu e Robinson, as instituições políticas inclusivas são a base onde está construído todo o resto da estrutura institucional da sociedade. O que acontece em Moçambique é que as instituições estão altamente partidarizadas, nelas se encontram instaladas células do partido dominante. O fenómeno da partidarização do Estado, no contexto de democracia multipartidário, pode conduzir, no futuro, à instabilidade política, que poderá ter um efeito dominó numa sociedade cada vez mais fragilizada pela pobreza. Esse efeito pode fazer-se sentir por via de manifestações populares, à semelhança do que aconteceu em Fevereiro de 2008 e 1 e 2 de Setembro de 2010. É que a partidarização das instituições do Estado leva ao surgimento de instituições não inclusivas e consequentemente na exclusão social, uma vez que só consegue beneficiar dessas instituições – por exemplo, o acesso ao emprego no Estado, por sinal, o maior empregador – quem tiver afinidades políticas com o partido no poder. Isto reflecte-se também na distribuição de riqueza, na medida em que o critério para beneficiar ou aceder à zona de riqueza é a sua filiação partidária. Se não é do partido Frelimo, dificilmente poderá ter espaço para progressão, seja como empregado do Estado, seja como empresário. Caso contrário, tem de se juntar a alguém da elite para viabilizar o acesso à zona de riqueza.
O desmantelamento das células do partido deve ser prioridade nas negociações entre a Renamo e o Governo, mais do que a criação de um governo de transição ou de unidade nacional.
O discurso da Renamo pode encontrar ainda simpatizantes nas regiões ricas em recursos naturais, por sinal, onde emergem conflitos entre o Estado e a população. São regiões em que as populações são retiradas das suas zonas regiões férteis para zonas secas para dar lugar aos mega-projectos. A riqueza gerada não beneficia os locais, mas sim a mesma elite política ligada ao partido no poder, conforme defendem Castel-Branco e Mandlate (2012): “O capital extractivo apresenta uma oportunidade de acumulação rápida da riqueza para a elite política e económica nacional”. Os autores dizem que “o foco principal da industrialização não é o combate à pobreza, nem o aumento da densidade da malha económica e produtiva ou a transformação do padrão de acumulação de capital, mas a intensificação da acumulação extractiva, representada pela aliança do capital multinacional e elites políticas e económicas nacionais”.
Relativamente aos conflitos emergentes entre o Estado e a população, Mosca e Selemane (2011) referem que este conflito dependerá dos posicionamentos da burocracia face às opções na sua resolução. Sustentam que “Se existir a incapacidade de soluções acordadas, é provável a perda de credibilidade do estado, o surgimento de instabilidade social e a animosidade entre as multinacionais e as populações”.
De uma ou de outra forma, caso prevaleçam os problemas acima levantados, o actual discurso de Afonso Dhlakama e da Renamo, de rejeitado poderá ganhar mais simpatizantes e ser aceite como a solução aos problemas que os moçambicanos enfrentam, razão pela qual não se pode subestimá-lo, num contexto de uma sociedade maioritariamente pobre e política e socialmente excluída.
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