«A Rússia de hoje nasceu da revolução soviética mas não é
filha do comunismo. Quero dizer com isto o seguinte. Não nego que os factores
da revolução tivessem o intento de criar uma sociedade comunista. Tendo porém
as realidades mostrado que o comunismo é uma doutrina antinatural e
irrealizável na prática, os dirigentes aproveitaram a força e engrenagem da
revolução para dar o impulso que se verifica em muitos sectores da vida russa.
Com bom aproveitamento das circunstâncias favoráveis e também da inabilidade
alheia, a Rússia pôde constituir-se no que é hoje - grande potência militar,
política, industrial que desafia e a largos passos intenta aproximar-se das
maiores potências económicas do Ocidente.
Sem se poder negar a existência de muitas conquistas de
ordem social, a revolução mostrou-se porém nas suas realizações e métodos
esvaziada daquilo que seria a sua própria essência e fins. Na verdade as
populações têm pago em sofrimentos indizíveis, em dominações cruéis, em
exterminações catastróficas, em fomes ou restrições de vida o poderio russo. Se
o movimento nasceu para servir o homem, desenvolveu-se afinal para servir e
engrandecer o Estado. O comunismo-doutrina continua a ser erguido como bandeira,
expressão ou esperança de uma revolução social a fazer, sobretudo em países
estrangeiros distanciados da verificação local do fenómeno. Mas a
inaplicabilidade dos princípios e as experiências, nos países satélites, do
domínio dos partidos filiados parece ter diminuído muito senão esgotado a sua
capacidade de expansão.
Assim nem a vitória militar e a inteligente exploração dessa
vitória, nem o desenvolvimento das indústrias de base ou de guerra, nem a
actividade política do Estado russo e o seu alargamento territorial me parece
terem nada que ver com o comunismo; mas tem muito que ver com a gente que se
apoderou do poder, as suas ideias de governo e o regime político em que lhe foi
dado trabalhar. A superioridade da orgânica estadual, traduzida na unidade de
direcção, e no poder de decisão ou de realização não podem os mais Estados
transplantá-la fielmente por motivos diversos para as suas próprias
constituições que outras superioridades apresentam; mas não pode ser negada e
há-de ter-se sempre presente como lição.
Se já não estamos, pois, segundo penso, em face de um credo
que se expande, estamos em face de um Império em fase de crescimento, fase como
outras que tem atravessado na História. Ora um poder em via de expansão não se
limita a si próprio, e só é limitado pelo jogo de forças exteriores que se lhe
oponham.
Foi em obediência a esta concepção que grande número de
países largamente apoiados pelos Estados Unidos resolveram unir as suas forças
para se opor à expansão russa. Apesar das muitas deficiências das organizações,
tornou-se visível que o avanço se encontrava barrado no caminho do Atlântico.
Vemos agora que a torrente o evita e, aproveitando as dificuldades ou fraquezas
do Médio-Oriente, aí se instala e daí tentará prosseguir os seus avanços. A
desintegração afro-asiática, em que os pretendentes à África negra se associam
aos esforços russos, com mira na herança africana, trabalha no mesmo sentido.
Verificam-se muitos protestos de fidelidade ao Ocidente e não há que tê-los em
suspeição. O que se deve ter presente é que tudo o que a Rússia não puder
conquistar, representa um ganho se o fizer perder aos outros».
Oliveira Salazar («A Atmosfera Mundial e os Problemas
Nacionais», SNI, 1957).
VERSÃO COMPLETA DA ENTREVISTA CONCEDIDA PELO PRESIDENTE DO
CONSELHO À REVISTA NORTE-AMERICANA «LIFE» E A ÚNICA QUE ESTA REVISTA ESTAVA
AUTORIZADA A PUBLICAR.
Será a autonomia uma possibilidade prática ou viável para
Angola ou Moçambique, agora ou mais tarde?
A pergunta parece implicar a ideia de que Angola ou
Moçambique não desfrutam de autonomia. Se é essa a sugestão, não corresponde à
realidade, pois tanto Angola como Moçambique gozam de uma larga autonomia que,
em certos sectores, é mesmo total. Citarei, como exemplo, o sector orçamental -
que creio ser universalmente aceite como um dos indicativos básicos do estatuto
de autonomia; na verdade, os Governos de Angola e de Moçambique são os
exclusivos responsáveis pela gestão dos fundos públicos, quer sejam os que
resultam da arrecadação das receitas do próprio território quer os que lhes
advêm dos subsídios e dos empréstimos feitos pela Metrópole. Outros exemplos
poderia dar para provar não apenas a viabilidade da autonomia a que aludiu mas
a realidade de uma situação que existe de facto e de direito. Há certamente
competências legalmente atribuídas ou reservadas ao poder central, porque, não
se conhecendo um cânon único de autonomia, a prudência aconselha que, por um
lado, essa autonomia se vá conformando com a capacidade das províncias para
gerirem os seus negócios, e por outro se respeite a unidade da Nação portuguesa
que elas próprias não desejarão quebrar. À medida que os territórios se
desenvolvem e a instrução se difunde, as elites locais tornam-se mais numerosas
e capazes e as suas tarefas podem ser acrescidas sem risco, antes com vantagem,
para a comunidade nacional. É esta a orientação do nosso trabalho.
Sendo uma hipótese prática, poderá V. Ex.ª prever o período
dentro do qual quer Angola quer Moçambique poderão estar preparados para tomar
o seu lugar, por si mesmos, na comunidade das Nações?
Se «por si mesmos» V. Ex.ª significar «como Estados
soberanos», devo dizer que não sei responder. O facto de um território se
proclamar independente é fenómeno natural nas sociedades humanas e por isso
representa uma hipótese sempre admissível, mas em boa verdade não se lhe pode
nem deve marcar prazo. O que está sendo sujeito a programas horários é a
política inconcebível do nosso tempo, segundo a qual se pretende que os Estados
marquem prazos para quebrar a sua unidade e se desfazerem em pedaços. É
absurda. Mas ainda que absurda, esta política deveria ao menos preocupar-se,
para benefício dos povos, com o facto de estarem ou não realizadas as condições
de desenvolvimento demográfico, económico, cultural, técnico e político, sobre
que se possa construir um Estado independente e assentar uma soberania
responsável. Ora, estas condições não estão realizadas nos territórios em
questão, e se Angola ou Moçambique sentem e vivem a unidade nacional portuguesa
e não os fervores da independência, então a missão a cumprir nunca pode ser
tendente à preparação do desmembramento em maior ou menor prazo mas ao seu
desenvolvimento harmónico dentro da Nação.
Mas talvez V. Ex.ª não tenha querido ir tão longe na sua
pergunta e por isso a examinarei ainda sob outro ângulo - o ângulo de uma larga
autonomia de Angola e Moçambique. A tendência que se observa na evolução da
comunidade internacional é cada vez mais no sentido da criação de largos
espaços económicos, que podem visar maior ou menor medida de integração
política mas sempre caminham para um estreitamento de laços políticos de alguma
forma limitativos das respectivas soberanias. Por outro lado, julgo que não
poderá negar-se que Angola e Moçambique já ocupam actualmente o seu lugar na
comunidade das Nações, pois, se não fora assim, como se compreenderia que as
suas actividades económicas e culturais se projectassem para além das
fronteiras, que os seus portos e caminhos de ferro constituíssem posições-chave
no aproveitamento dos recursos do continente africano, que os seus produtos
fossem tidos em conta no jogo das organizações reguladoras do comércio
internacional, enfim, que as suas populações beneficiassem do intercâmbio
económico, cultural e científico que caracteriza o nosso século, e para ele
contribuíssem? No contexto das considerações precedentes e sem a pretensão de
desvendar futuros longínquos, não tenho dúvida em responder à pergunta com a
afirmação de que, se nos deixarem trabalhar em paz, o lugar que a Angola e
Moçambique cabe na comunidade internacional, e mais particularmente no
continente africano, não deixará de, progressivamente, ganhar relevo nos anos
mais próximos.
Se a autonomia não é uma hipótese prática nem desejável,
pode V. Ex.ª indicar porquê?
As considerações que expus, ao responder às perguntas
anteriores, respondem por si a esta pergunta, salvo se à autonomia for
equiparada a independência. Apenas repetirei que essa autonomia existe de facto
e de direito; somente acontece que é uma autonomia dirigida a servir
exclusivamente os interesses de Angola e Moçambique, e não interesses alheios,
e por isso talvez estes últimos se mostrem tão relutantes em compreender e
aceitar a realidade da situação naqueles dois territórios.
Existirão factores que tornem o problema dos territórios
portugueses em África diferente daqueles de outras regiões que pretendem ou
receberam autonomia ou independência?
Nós temos sido muito criticados pela nossa persistente
adesão ao ideal da sociedade multirracial a desenvolver-se nos trópicos, como
se tal ideal se opusesse à natureza humana, à ordem moral universal ou aos
interesses dos povos, quando é o contrário que se verifica. Sem discutir o problema,
direi que nós, portugueses, não sabemos estar no mundo de outra maneira, até
porque foi num tipo social de multirracialidade que, há oito séculos, nos
formámos como Nação, no termo de diversas invasões, oriundas do Oriente, do
Norte e do Sul, isto é, da própria África. Daí nos ficou talvez um pendor
natural - que citamos tanto mais à vontade quanto é certo tem sido reconhecido
por notáveis sociólogos estrangeiros - para os contactos com outros povos,
contactos de que sempre estiveram ausentes quaisquer conceitos de superioridade
ou discriminação racial.
Não nos cabe julgar os outros, pelos seus actos ou
omissões, mas não podemos furtar-nos a notar que o colonialismo - e é nesse
campo que, creio, se integra a sua pergunta - resultou da revolução industrial
verificada na Europa a partir do século XVIII, data em que já havíamos
estabelecido contactos humanos seculares com povos que, posteriormente, foram
subordinados aos imperativos de políticas de outros países europeus: esses, ao
contrário de Portugal visavam objectivos essencialmente económicos. Dessas
políticas de exploração económica resultaram inegáveis benefícios para o
continente africano e para as suas populações, que ali e noutros continentes
hojem se procuram denegrir. Não menosprezamos pois o trabalho realizado, mas
creio poder afirmar que aquilo que distingue a África portuguesa - não obstante
os esforços que de muitos lados de conluiam para a atacar tanto pela palavra
como pela acção - é a primazia que sempre demos e queremos continuar a dar à
valorização e dignificação do homem, sem distinção de cor ou de crença, à
sombra de princípios de civilização de que eramos portadores, entre populações
sob todos os aspectos distanciadas de nós. Isto nos levou à convicção de que o
progresso económico, social e político, se bem que possa ser mais lento, só por
tal caminho é seguro e perdurável: de outro modo, e o fenómeno está à vista de
todos, as autonomias e sobretudo as independências não amadurecidas mas fabricadas
em série são puramente artificiais e representam apenas um processo de
converterem o colonialismo antigo em novo e talvez pior colonialismo (in
«Problemas portugueses em África», SNI, 1962, pp. 3-7).
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