“...Durante a Guerra Fria a questão do armamento centrava-se em armas de destruição em massa, consideradas então como representando a maior ameaça à segurança humana.1 Enquanto o equilíbrio global era conseguido com base nestas super-armas, a nível regional e nacional um quadro diferente tomava forma no continente Africano.
As tendências hegemónicas das duas superpotências, os EUA (Estados Unidos da América) e a USSR (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) davam apoio a regimes militares e / ou autoritários considerados como aliados, não tendo em consideração a fragilidade ou a capacidade de sustentação de tais regimes. Na maior parte dos casos, este apoio traduzia-se
na provisão desregrada de armas de pequeno porte e armas ligeiras (SALW) a estes regimes, ou àqueles que tinham a coragem de os desafiar.
A Guerra Fria conseguiu deste modo estabelecer uma estabilidade relativa (apesar de artificial e opressiva ) em várias partes de África, uma região considerada pelas duas superpotências como o tabuleiro ideal para o jogo da Guerra Fria. Tal estabilidade artificial viria a desmoronar-se, juntamente com o Muro de Berlim, em 1989. A fachada do mundo da Guerra Fria e da sua estabilidade relativa deixou África cheia de SALW bem como de traficantes e rotas bem estabelecidas para o seu tráfico.
Sem o apoio externo das superpotências, governos considerados como corruptos, opressivos e com pouca legitimidade podiam agora ser abertamente contestados. A proliferação de SALW e de rotas de tráfico e de traficantes, transformaram a insurgência armada numa opção mais imediata, por oposição a outras alternativas políticas necessariamente mais morosas, ao mesmo tempo que a pobreza generalizada criou as fontes de recrutamento necessárias a insurgências.2 Moçambique não ficou imune a esta dinâmica regional em África, a qual foi complicada pelas nomeadamente o projecto das Armas por Enxadas ( TAE ) patrocinado pelo Conselho Cristão de Moçambique (CCM).
Em Agosto de 2001, Moçambique assinou o Protocolo da SADC sobre o Controlo de Armas de Fogo, Munições e outros Materiais Relacionados, com o objectivo de impedir e controlar, por meio de mecanismos regionais, o tráfico ilegal de armas e armas ligeiras na região. Em Setembro de 2002, o parlamento ratificou o Protocolo e o governo de Moçambique (GdM) começou a agir no sentido da sua implementação. Apesar da sua história turbulenta, Moçambique está agora na linha da frente dos esforços regionais para controlar e impedir a proliferação de SALW.
Todavia, a implementação de acordos internacionais apresenta, muitas vezes, problemas imprevistos aos governos nacionais: algumas instituições poderão ter que vir a ser criadas, outras necessitam de ser desenvolvidas: Mas as prioridades diferem de país para país e pode ser considerada mais importante a necessidade de atribuição de recursos a outros sectores.
O governo de Moçambique está a estabelecer um corpo multi-institucional – COPRECAL ( Comissão para a Prevenção e Controle de Armas Ligeiras ) – para supervisionar e coordenar a implementação do Protocolo da SADC. O papel e a competência da COPRECAL serão discutidos em detalhe mais adiante, nesta monografia.
Considerando a história dos esforços para controlar as SALW em Moçambique e o ímpeto dado recentemente pela ratificação do Protocolo da SADC, bem como pela adopção do Programa de Acção das Nações Unidas para Impedir, Combater e Irradicar o Tráfico Ilegal de Armas de Pequeno Porte e Armas Ligeiras em Todos os Seus Aspectos, tornou-se importante analisar e avaliar a situação presente em Moçambique em relação aos diferentes modos de aflorar o controle da proliferação de SALW e as limitações que a implementação do Protocolo da SADC pode ter que enfrentar. Foi exactamente isto que a equipa de pesquisa decidiu realizar.
Esta monografia é baseada no trabalho realizado no terreno e levado a cabo em Moçambique de Novembro de 2002 a Setembro de 2003. A pesquisa consiste principalmente de entrevistas com funcionários do Ministério do Interior, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Forças Armadas, serviços aduaneiros, organizações não-governamentais (ONGs), jornalistas, académicos e cidadãos Moçambicanos. O trabalho de pesquisa no terreno terminou com um encontro de dois dias, que incluiu representantes do Ministério do Interior, Defesa e Negócios Estrangeiros, das forças armadas, da Presidência, instituições académicas e organizações da sociedade civil. O
trabalho no terreno foi complementado por uma pesquisa documental extensiva. Finalmente, a equipa de pesquisa realizou um inquérito no Chimoio (região central de Moçambique) sobre o impacto das SALW a nível comunitário. As conclusões deste inquérito constituem um dos capítulos desta monografia.
Apesar de o foco de pesquisa ter sido sobre os modos de abordar o desarmamento e sobre os passos dados pelo governo de Moçambique para a implementação do Protocolo da SADC sobre armas de pequeno porte e armas ligeiras, cedo se tornou evidente que a prevenção e controle de SALW devia ser analisada no contexto mais vasto do sector da segurança. Por exemplo, um funcionário do Ministério do Interior comentou: “Qual é o objectivo em investir tantos recursos na destruição de armas quando não somos capazes de patrulhar eficientemente a nossa costa marítima ?“ Os mesmos sentimentos são expressos por Mosse & Nyararai num artigo intitulado “Moçambique: um barril de pólvora” publicado em Junho de 2003:
“ … As autoridades não sabem quem são os donos das armas, ou como essas pessoas têm acesso a elas. O Governo nem sequer sabe qual a quantidade de armas utilisadas pelas forças uniformizadas. Se o governo não consegue controlar o movimento e utilização de armas pequenas na sua área de responsabilidade é óbvio que não pode controlar a proliferação ilegal e a má utilização de armas de pequeno porte no país.”8
Tornou-se evidente que a implementação com sucesso do Protocolo da SADC requer o esforço conjunto de várias instituições governamentais, presentemente em estágios diferentes de desenvolvimento institucional e a receberem apoios diferentes por parte dos doadores.
Deste modo, os parâmetros desta monografia foram alargados a fim de permitirem uma análise das diferentes instituições que podem ser activas nos esforços para controlar as SALW, da forma como podem contribuir para o objectivo comum de impedir e controlar as SALW e dos diferentes problemas que enfrentam.
Durante o inquérito realizado no Chimoio, foi óbvio que apesar de a pesquisa sobre SALW em Moçambique ser possível e mesmo bem-vinda, asquestões relacionadas especificamente com as SALW causaram desconforto entre os entrevistados. As pessoas em instituições governamentais reagiram da mesma maneira - apesar de funcionários discutirem abertamente os problemas que tormentam as suas instituições em particular e, em geral, o ambiente político e social em Moçambique, questões relacionadas especificamente com dados sobre a quantidade de SALW legais, tais como a quantidade e composição das reservas existentes, foram recebidas com alguma resistência e suspeita. Não quer isto dizer que os funcionários governamentais foram obstructivos. Pelo contrário, a equipa de pesquisa sentiu grande apoio no seio destas instituições e só tem a mencionar palavras de gratidão para todos os que foram entrevistados. Eles foram abertos e francos nas suas declarações, tinham uma profunda compreensão sobre as
questões em discussão, e estiveram disponíveis, apesar de todas as iniciativas que ocorriam simultaneamente em Maputo, nessa altura.
Contudo, questões relacionadas com dados quantitativos são consideradas como intromissões em questões de segurança interna e soberania nacional.
Do mesmo modo que alguns doadores se mostram reticentes em apoiar o sector da segurança, considerado demasiado político, também os governos nacionais pressentem perigo quando divulgam informações relacionadas com a segurança. Apesar de tudo, considerando o impacto tremendo que o sector da segurança tem no desenvolvimento de sociedades no período pós-guerra, tanto os doadores como os governos nacionais deviam pensar seriamente numa mudança de perspectiva quando tratando desta questão.
Isto será discutido com mais detalhe no curso desta monografia. Dada a sensibilidade das questões discutidas, a equipa de pesquisa não identifcou as pessoas que, tão generosamente, ofereceram o seu tempo e informação...”
Notas
1. Margaret O’Grady, Pequenas Armas e África, <http://www.caat.org.uk/
2. A ligação entre má governação , pobreza, e militatrização foi explorada por Ângela McIntyre em várias publicações do ISS.
3. Para um explicação mais detalhada sobre o impacto de ambos os conflitos na proliferação de armas em Moçambique ver artigos e relatórios escritos, entre outros, por Anícia Lalá, Martinho Chachiua e Alex Vines.
4. Diferentes autores atribuem datas diferentes às incursões da Renamo. Alguns mencionam 1976 enquanto outros consideram 1978. Aqui usamos 1978 como data de referência uma vez que foi a partir de 1978 que as incursões da Renamo apresentaram as características
sistemáticas de uma guerra civil.
5. A sigla em Inglês para a missão é UNOMOZ ,no entanto é a sigla em portugês ONUMOZ que é mais utilizada.
6. N Stott, “Operação Rachel: Lições aprendidas e o potencial para uma iniciativa regional (SADC )” , ISS, a ser publicado. Contudo, a ligação entre as SALW Moçambicanas e o crime Sul Africano é estabelecida por quase todos os autores que escrevem sobre este assunto.
7.Intervenção durante o encontro de 17-20 de Setembro, 2003.
8.N Magudu & M Mosse, “Moçambique: A Powder Keg” IANSA Newsletter, Junho 2003
In “Ana Leão, paper número 94, ISS, 2004)
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