Por Barnabé Lucas Ncomo
Sétima parte
Sétima parte
NAS MÃOS DOS ALGOZES
Malawi na berlinda:
A prisão no Aeroporto de Chileka.
O Malawi é um pequeno
país refém geográfico. Encravado entre Moçambique, a Zâmbia e, no extremo
nordeste, a Tanzânia, é praticamente dependente dos portos moçambicanos para o seu
acesso ao mar.
O seu líder histórico, Dr. Kamuzu Banda, viu-se numa situação em que
simultaneamente tinha que agradar a Deus e ao diabo.
Por ocasião das festividades da
independência nacional do Malawi, Banda foi citado como tendo dito que a independência
do seu país
só teria sentido se Moçambique se libertasse, igualmente, do jugo colonial. Com
efeito, em 1965, quando começaram a afluir ao Malawi milhares de
refugiados de Moçambique, o governo de Banda proporcionou-lhes alojamento
em zonas como Likoma-Island, Mlanje e Cholo. Tacticamente Banda entendia-se com os
revolucionários moçambicanos. Os operacionais dos movimentos guerrilheiros, tanto da Frelimo,
como posteriormente
do Coremo, entravam no Malawi para acções de recrutamento político apesar
de não possuírem aí bases militares. Banda evitava hostilidades directas com Portugal,
pois se por um lado queria a independência de Moçambique, por outro, dependia
economicamente dos portos portugueses em Moçambique.
As relações entre o governo malawiano
e a Frelimo esfriariam na segunda metade da década de 60 quando Henry Chipembere
iniciou uma
rebelião armada contra o governo de Banda, ao que se supôs, tendo como base de
retaguarda a Tanzânia e algum apoio da Frelimo, através dos seus campos de treino no
território tanzaniano. Simango conhecia bem o Malawi e os seus dirigentes. Já em Julho
de 1969, deslocara-se
àquele país na companhia de Joaquim Chissano, tendo aí permanecido sete
dias em contactos com Kamuzu Banda e alguns membros do seu governo para, entre
várias coisas, tentar quebrar o gelo que já separava as autoridades malawianas da
Frelimo.
Homem ponderado e
calculista, Banda terá sido apanhado de surpresa pelo golpe do estado de 25 de Abril
em Portugal. Em 1974 os líderes do Coremo circulavam no Malawi com conhecimento
do governo
deste país que lhe concedia apoio de diversa ordem. Ciente da situação geográfica e
da dependência económica do Malawi, a Frelimo, através do seu Departamento de
Segurança, que na essência já era a Contra Inteligência Militar (CIM), iniciaria
em Outubro de 1974 contactos com o Malawi em que sobressaía a chantagem
política, visando a captura dos seus opositores políticos que aí circulavam com conhecimento das
autoridades.
"Ou Banda colaborava para o bem das
relações com o Moçambique governado pela
Frelimo, o que se avizinhava, ou corria o risco de ver tensas as
relações de vizinhança, com consequências de
ver as suas rotas para o mar bloqueadas, imediatamente após a ascensão da Frelimo ao Poder"465.
Foi desse modo que o
Malawi, na pessoa do Ministro na presidência, e então secretário geral do partido
no poder, Dr. Albert Muwalo Nqumaio, e a polícia política malawiana (a Special
Branch) conspiraria com a Frelimo contra as forças da oposição em
Moçambique.
De descendência moçambicana,
Albert Nqumaio era um de vários
descendentes da linhagem do histórico imperador de Gaza (Ngungunhane) espalhados pela zona austral da África. Nqumaio tinha uma certa simpatia para com a causa da
independência de Moçambique e, particularmente, assim que tomou conhecimento de
que o movimento de libertação de
Moçambique era dirigido por pessoas oriundas de Gaza, forjou amizade com alguns indivíduos da ala regionalista sul na
Frelimo. Segundo relata Samuel
Simango, membro da primeira hora nas
fileiras da Frelimo e posteriormente do Coremo e do PCN, o então ministro na presidência malawiana chegou a possuir
um cartão de membro da Frelimo na
clandestinidade sem que o seu presidente, Kamuzu Banda, tivesse disso conhecimento. Banda terá embarcado na conspiração
sob garantias dadas por Nqumaio de que nada de grave aconteceria tanto a Simango como a outros políticos
moçambicanos que o Malawi entregasse
à Frelimo.
-"Parece que
Nqumaio disse a Banda que a Frelimo apenas queria a presença
deles na Tanzânia para não se retardar o processo de ascensão de
Moçambique à independência. Depois dopais ascender à independência, tanto Simango como
outros políticos moçambicanos seriam postos
em liberdade para desenvolverem livremente
no país as suas actividades políticas. E Banda caiu na fita"466.
A colaboração do governo Malawiano nesse
processo "de agilizar a ascensão da
independência de Moçambique", "seria compensada por via de
boas relações de vizinhança com o novo regime político que se instalaria em Lourenço Marques
(Maputo). Banda, terá acreditado
nessa estupidez"461 •
Depois da África do
Sul, em Novembro de 1974 Simango seguiu com destino a Nairobi (no Kenya) na
tentativa de estabelecer contactos com o presidente Jomo Kenyata. Na época, Kenyata
era um líder
influente nos corredores da OUA. Uria Simango estava profundamente convencido de
que o velho estadista keniano teria a capacidade de influenciar o processo moçambicano
a nível da OUA, pois esta organização reconhecia também o Coremo como um
movimento legítimo, representativo das aspirações do povo moçambicano à independência.
Tudo indica que enquanto Simango se
dirigia ao Kenya, o suposto espião infiltrado no PCN já se encontrava naquele
país na companhia do Padre Mateus Gwengere. A chegada de Simango à capital keniana era do
conhecimento de ambos. Todavia, por razões imprecisas, o reverendo não se
encontraria com o Padre Gwengere. Simango chegou a Nairobi em
data imprecisa da primeira quinzena de Novembro. As circunstâncias da sua saída
daquela cidade em direcção ao Malawi estão ainda por esclarecer na sua totalidade. As
informações indicam que o aludido espião recebera instruções de Dar es-Salam para aliciá-lo a descer
para o Malawi afim de contactar a Frelimo sob os auspícios do Governo
malawiano na pessoa do ministro na presidência, Dr. Albert Muwalo Nqumaio. O espião,
terá sido a pessoa ao cuidado de quem Nqumaio enviou um telegrama à Simango,
solicitando a sua urgente
presença naquele país a fim de "discutir o processo moçambicano". Com efeito, Simango atenderia
de imediato a solicitação, viajando
de avião para Blantyre sendo a passagem custeada pelo Alto Comissário do Malawi
em Nairobi. À sua chegada ao Aeroporto de
Chileka, Simango foi recebido pelas autoridades malawianas. Contudo, cedo se apercebeu da estranha recepção que
lhe havia sido dispensada. Segundo
as suas palavras, viu à sua volta pessoas estranhas a controlar-lhe os movimentos e, minutos depois,
chegavam outras que ele supôs
tratar-se de agentes da Special Branch malawiana. Foi introduzido numa viatura e encaminhado para a fronteira
com Moçambique. Chegado a fronteira
de Milange, Simango dissipa então as dúvidas. Acabava de cair numa armadilha. Ia ser entregue à Frelimo, pois já lá estavam outros detidos, todos eles ligados ao PCN,
tais como Paulo José Gumane, Samuel
Brito Simango assim como nove membros daquele partido que haviam sido presos no Shire Highlands Hotel em Limbe, Malawi468. O Reverendo Una
Simango entrava assim na derradeira
caminhada para a morte.
A recepção dos
detidos do lado moçambicano da fronteira esteve a cargo de João Honwana e do comandante
da base da Frelimo em Mongue, Mabuko Feitotudo. Ambos trataram de separar Uria
Simango e
Paulo Gumane do restante grupo de pessoas detidos no Malawi. Simango e Gumane
foram de seguida conduzidos à cidade de Quelimane e daí para o campo de preparação
político-militar da Frelimo em Nachingweia,
Tanzânia469.
Com efeito, nas
diversas cerimónias de julgamento público desde Março a Maio de 1975, assinalar-se-ia
naquele centro não só a presença
de Uria Simango, como também da maioria dos detidos em Moçambique, Zâmbia e Tanzânia no período que vai do 25 de Abril a
Novembro de 1974. Nachingweia viria a ser então o testemunho vivo da maior conspiração política de todos os tempos
em África, envolvendo as autoridades
de quatro países da região austral.
Como troféus de guerra, Simango e outros
políticos moçambicanos seriam desfilados e
exibidos publicamente por Machel e Marcelino
dos Santos sob o olhar de aprovação de Julius Nyerere e Kenneth Kaunda, então respeitáveis estadistas
de África.
No rescaldo da
contenda: Cantando salmos
"Posso
ser uma pessoa despresível, mas quando a Verdade fala em mim, sou invencível"
-
Mahatma Gandhi -
O Rev. Simango tinha
uma coisa a fazer: Detido, vilipendiado, e sem nenhum meio de defesa perante
homens que faziam da vida um jogo de morte, restava apenas encomendar a sua alma a
Deus. Afinal, ele era um pastor e sabia em que mãos se encontrava. E um homem como ele, moldado
pela palavra de Deus nas mãos de homens despidos de senso humano, nada tinha a
fazer senão orar para que o Omnipotente perdoasse os que não sabiam o que
faziam. Nachingweia doeu, como doeria ainda mais todo o subsequente processo da
descolonização portuguesa e, posteriormente, o Moçambique independente.
Sob uma vigilância
apertada, proporcionada por dois pelotões, Simango chega a Nachingweia a 21 de Novembro
de 1974. Foi encarcerado, na companhia de outros, no que havia sido até ao momento a casa de Samora
Machel, enquanto comandante do centro.
"A notícia da sua prisão caiu
como que uma bomba para alguns de nós. Pela primeira vez vi o senhor
Mungaka a chorar. O homem soluçava às escondidas como um bezerro desmamado. Aquilo foi triste.
Eu e muitos outros quase que ficámos uma semana sem conseguir
tragar um alimento. Nada podíamos fazer. A guarnição estava a cargo do grupo em quem
Samora depositava maior confiança. A situação foi mais constrangedora
quando nos apercebemos de que a Dona Celina também se encontrava
entre os detidos. A senhora estava na companhia de uma senhora de
Cabo Delgado,
chamada Verónica, guarnecida num outro local por um pelotão de DF*10.
Não se permitia que ninguém se aproximasse do perímetro do local onde os presos
estavam encarcerados. Nem amigos, nem familiares. Havia ordens expressas
de que em caso de tentativa de fuga se disparasse para matar. Andávamos às
voltas dum lado para outro, sem sabermos o que fazer. À noite,
alguns de nós choravam num canto, porque sabíamos qual era o fim
daquilo. Como os chefes sabiam que nós gostávamos de Simango, tudo
fizeram
para nos controlar os movimentos. Alguns daqueles guardas hoje sentem-se
profundamente chocados pelo que faziam. Não querem acreditar como
ingenuamente foram usados para fazer mal aos outros. É assim a vida, o arrependimento
vem sempre tarde"411.
No seu regresso a Nachingweia depois duma
digressão por Ásia na companhia de
alguns responsáveis da Frelimo, Samora Machel e seus camaradas são citados como tendo jubilado de seus feitos. A maioria dos dissidentes da Frelimo encontrava-se
agora nas suas mãos, o que
por si denotava a índole do regime que se preparava para se impor ao país em
nome da dita democracia popular.
Mas o Reverendo
jurou manter a dignidade. Não desfaleceria perante qualquer espécie de intimidação ou tortura, pois "a marcha para a morte será longa"
- como diria ele próprio aos seus
colegas de cativeiro aquando da sua transferência para M'telela. Nas noites
escuras do cárcere,
Simango cantarolava os salmos da Igreja que, para além de encorajá-lo, comoviam alguns dos seus
companheiros e os próprios
carcereiros. Doeu-lhe a alma rever pela primeira vez, depois de meses de separação forçada, os seus
companheiros de luta de olhos lacrimejantes. A sua esposa estava entre
eles e, ao avistarem-se, os seus olhares transmitiam dor e tristeza. Nada sabiam do
destino dos seus três meninos, Maúca, Mbepo (Deviz) e Mbiyo (Lutero). Os dias no campo de
Nachingweia seriam passados sob torturas físicas e trabalhos forçados na
machamba que circundava o centro. Os métodos de interrogatório que se seguiram,
baseados nos manuais dos "mestres" da Europa do Leste de então,
ilustravam a rapidez com que os paladinos da liberdade em
Moçambique assimilaram a matéria da ditadura do proletariado. Era preciso esgotar a
resistência física e espiritual dos acusados. Era preciso fatigá-los, pois uma
vez caídos nessa fase, tornar-se-iam apáticos e concordariam com tudo o que
deles se exigisse. Era preciso convencê-los de que as suas declarações seriam a única forma de poderem
ainda prestar um valioso serviço à nação depois de todos
"prejuízos" por si causados e, garantir-lhes de que a vida dos
seus
ente queridos, dependia do grau de colaboração que prestassem, a bem da naçãol...
Todavia, o Reverendo
Simango, a despeito da confrangedora situação em que se encontrava, relatou com
dignidade toda a sua trajectória desde a sua saída do território tanzaniano (em
Abril de 1970) até a data do seu rapto. Não desfaleceu. Falou dos contactos que manteve depois do 25 de
Abril em Moçambique no âmbito do seu esforço para encontrar uma solução justa para
o processo da descolonização do país. Falou do que pensava sobre o que era uma
independência. No fim, rematou: "Tal como vocês, meus irmãos, estou
profundamente preocupado com a independência do nosso país. Se acham
que não, então, matem-me. Não sou eu quem vos julgará. É a
história"m.
Os dias foram passando, como
passavam as tortuosas noites com as ameaças de morte subjacentes nos discursos do
chefe do campo e dos sequazes mandatados pela casta regionalista do sul. E eis
que chega
Março. Simango é confrontado com um documento em que se lia que ele
confessava ser o causador de todas as desavenças vividas na história da Frelimo;
que ele é que havia planificado a morte do Dr. Eduardo Mondlane; que ele era muito
ambicioso e que sempre sonhara em ser o líder máximo
da Frelimo; que ele sempre estivera ao serviço de forças imperialistas do ocidente
contra a independência e unidade do povo moçambicano e que, perante tudo
aquilo, reconhecia que errara e pedia ao povo moçambicano que o perdoasse e
educasse.
Os mentores da tal confissão,
exigiam-lhe que assinasse o documento como condição duma clemência para ele
e para a sua família Simango recusa e diz peremptoriamente:
"Antes a morte
do que assinar isso. Matem-me para me pouparem o sofrimento. Isso nunca
assumirei no meu juízo normal"41.
E o sol foi-se pondo
e dispondo, sucedendo-se os dias. A uma determinada altura da vida dos presos em
Nachingweia, as torturas físicas mudaram de executores. Passaram a ser confiadas
a um grupo de ex-pides e alguns OPVs que na circunstância se encontravam
também
detidos naquele centro. Segundo um dos detidos, os ideólogos da ala
regionalista do sul e seus aliados haviam-se apercebido de que os
guardas (guerrilheiros) a quem fora incumbida a missão de torturar os presos faziam-no da
forma mais leve possível, pois a maioria deles conhecia Simango e
alguns dos detidos como seus ex-chefes, homens respeitáveis. Condoía-lhes a nova
situação em que se encontravam de ter que maltratar esses homens, pessoas por
quem sempre nutriram confiança. Em cada missão de tortura, Simango, longe de
chorar ou gritar
como queriam vê-lo fazer, cantarolava os salmos, acabando por comover os
pacatos guerrilheiros. E sempre que os mandantes virassem as costas, ficava o
Reverendo e outros presos numa amena conversa com os seus algozes de circunstância.
"Os tipos começavam a lavar-se
em desculpas em frente de Simango e de outros. Diziam que estavam a
cumprir ordens senão eles ficavam também mal Foi daí então que os
chefes do centro decidiram mudar de trabalhadores, pois descobriram que os
guardas, no lugar de fazerem um trabalho limpo, brincavam e punham-se a conversar com
os "reaccionários". Ainda viam em Simango um homem que merecia
um tratamento condigno. Era preciso mostrar-lhes que Simango e os outros já não eram
nada. Assim, dirigindo-se a outros presos (os tais PIDE's e OPVE's), Samora Machel disse: 'vocês foram
talhados pêlos colonos a maltratar o povo. Agora quero prova das vossas
capacidades aqui. Para melhor colaborarem com a revolução, devem dar provas
daquilo que aprenderam com os vossos patrões. Temos aqui
reaccionários, moleques dos colonos que vocês devem trabalhar para
confessarem. Apliquem o que aprenderam, ouviram?' "474
A missão coube a Valentim475 e a um grupo de OPVs. Simango e os restantes presos seriam psicológica e fisicamente torturados diariamente por esse bando. Para se ter uma vaga ideia da dimensão da tortura psicológica e física que os presos enfrentaram em Nachingweia, basta recorrer a alguns depoimentos das vítimas:
"Quando cheguei a Nachingweia na condição de prisioneiro, meteram-me numa
minúscula cela onde já estavam outros. Tínhamos dificuldades de nos
estendermos, e à noite aquilo ficava às escuras. Machel não estava no Centro quando
lá cheguei. E parece que não estava mesmo na Tanzânia. Mas não demorou a
regressar. Um dos seus capangas e conselheiro, muito conhecido cá na praça, que acabava de regressar na companhia
dele, quando me viu no grupo dos presos
quase que pulou de alegria. Começou a sorrir naquele seu sorriso de carniceiro. O tipo conhecia-me bem, fui chefe dele noutras paragens em serviço da Frelimo.
Dirigiu-se a mim e disse: oh!
Honwana, estás aí também?!, vou arranjar-te um sítio melhor, aqui não dá para ti. Retirou-me daquela
cela. Eu convencido de que me ia pôr num sítio melhor, mandou fechar-me
num lugar que antes era uma capoeira.
Aquilo tinha uma lâmpada forte, daqueles
que se usam nas chocadeiras. A noite era uma luta terrível com os insectos que, encadeados pela luz, voavam
em direcção à lâmpada que estava por
cima de mim. Foi aí que vi que aquele tipo não prestava mesmo""6.
Aquando da sua transferência de Nachingweia para o Niassa, o Reverendo Simango relataria aos outros presos um episódio macabro:
"Dias antes da
sua apresentação pública em Março de 1975, os carrascos, a mando dos chefes da
segurança da Frelimo, fizeram na sua presença uma cova de comprimento de uma
sepultura para um adulto, com cerca de metro e meio de profundidade. Foi aí conduzido
atado dos pés às mãos e, de seguida, deitado na berma dessa cova. De seguida
apareceu o "V" na companhia do "M"para certificarem-se da
prontidão do processo. Mandaram trazer a esposa do reverendo numa derradeira
tentativa de persuadi-lo a vergar. Foi duro para os dois. Voltando-se para Celina
Simango, "V" disse-lhe que tomara conhecimento de que
também se encontrava no campo de Nachingweia, e que por isso achou por
bem mandar
chamá-la para despedir-se do marido. "V" Acrescentou que apesar de tanto
trabalho feito pelos camaradas da segurança, no sentido de ajudar o
marido, Simango não queria colaborar, "V"disse ainda a Celina que o
Comité Executivo da Frelimo havia decidido que Simango devia morrer e era
importante que Celina o persuadisse a colaborar para evitar que tal viesse
a acontecer. Contrariamente
ao que "V" e o seu companheiro esperavam, Celina disse apenas isto: ‘Se é para morrer, vá e descanse em
paz Uria. Um dia alguém se lembrará que também lutaste para a libertação
de Moçambique!.'
Dito isto,
imediatamente, Celina foi arrastada e retirada do local. A senhora
viveria os dias seguintes convencida de que o marido havia sido
morto naquele mesmo dia. Só se apercebeu de que o esposo ainda vivia no dia da
apresentação pública, quando ela, o marido e todos nós fomos retirados
das celas para a parada"477 .
Mas naquele dia da
simulada sepultura, algo de grave voltou a passar-se na ausência
de Celina. Simango preferia a morte do que assinar um documento que
não fora da sua autoria. A irredutibilidade do Reverendo foi tal
que se optou por lhe garantir que se iriam transcrever todas as suas
declarações conforme o seu pedido. Para surpresa sua, no dia da
apresentação pública, Simango repararia que o documento que tinha em mãos
como sendo a transcrição das suas declarações estava gravemente
alterado. As suas afirmações estavam deturpadas de cima para baixo. A
despeito de constar no documento alguns relatos verídicos, o
documento continha grande parte de tudo aquilo que recusara assumir no seu juízo normal. Segundo
ainda um dos presos, a técnica utilizada foi apenas convence-lo a assinar o
documento dactilografado, como sendo produto da transcrição das suas
declarações. E isso foi feito sob fortes ameaças. "Mas uma confissão tirada a força daquela maneira não tem nenhuma validade para sustentar
uma acusação"41*. De facto,
segundo escreveria mais tarde Benedito Muianga, tudo indica que Simango não
confessou nada. "A confissão de Uria
Simango fora, na realidade, redigida por Sérgio Vieira" -escreve Muianga479.
"O amor à mulher e aos filhos jogou um papel de peso para o desequilíbrio psicológico de Simango. Ele próprio disse
que o haviam obrigado a ler
um documento que se pretendia ser a transcrição das suas declarações. Antes de começar a lê-lo
chamaram-lhe a atenção para o facto
de que esse documento
estava em duplicado. Tinha sido
fotocopiado. Estaria alguém a acompanhar frase por frase tudo o que pronunciasse. Caso não o lesse em
conformidade, antes dele, quem
pagaria a factura seria Celina e as crianças. Aí, tudo se alterou. Simango sabia do que Machel e o seu
grupo eram capazes. O Reverendo,
naturalmente, perante a situação de indefeso em que se encontrava, admitia que o pudessem molestar,
mas como qualquer pai e chefe
de família, arrepiava-lhe a ideia de ver a sua esposa e os seus filhos em agonia nas mãos de qualquer
sanguinário. Samora e seus camaradas eram capazes de tudo desde
que a meta fosse a consolidação do poder político. Portanto,
para ele, Cetina e as crianças tinham que estar fora daquilo. Então leu aquele
documento."4*0
Com efeito, quem o
viu confirma o estado de espírito em que o Reverendo se encontrava no momento da
leitura desse documento. Simango estava desfeito. Sob o olhar de centenas de
combatentes, de jornalistas internacionais e dos dignitários de Tanzânia e Zâmbia, o Reverendo gaguejava,
aparentando que a terra lhe saía dos pés. Samora Machel, o juiz-mor do grande
julgamento, no seu estilo peculiar, ia intimidando a vítima que matreiramente havia
atraído a uma cilada:
Você é reaccionário
não é?
…
Também é racista e
tribalista, nós sabemos disso!
…
Foi
você quem criou
aqueles problemas todos na Frelimo,
nós sempre soubemos disso!481.
Num terrorismo psicológico característico do nazismo, e frente a uma multidão
embrutecida pela ignorância e pêlos actos de meia dúzia de pessoas que
se arvoravam em legítimas defensoras das aspirações do povo moçambicano, os infelizes
presos estavam sós e entregues ao diabo. A dor sangrava os corações. Perante
Machel, um dos prisioneiros desata a chorar. Encharcado de lágrimas, prostra-se aos pés do grande
líder, implorando clemência. Tratava-se de José Eugénio Zitha. Em
Nachingweia, a Frelimo recorria ao ridículo para convencer a distraída
assistência da justeza da sua luta: Zitha era acusado de ser espião ao serviço da PIDE no seio
dos estudantes de medicina na então Universidade de Lourenço Marques, onde com
apenas dois anos do ensino do primeiro grau
havia sido autorizado a matricular-se pelo
regime de Marcelo Caetano a fim de cursar medicina!482
Fazia-se assim o espectáculo mais
humilhante possível contra alguns
moçambicanos que pecaram apenas por pugnarem por uma liberdade e por uma independência que as suas
consciências lhes ditavam.
Ironicamente, meses
depois do travesti de justiça encenado em Nachingweia, já nas
festividades da proclamação da independência do país, entre tantos que no seu estilo
característico Machel batia nas costas, o novo presidente de Moçambique
aproximar-se-ia, no decurso do banquete, do velho combatente João Muchanga. Entre
confabulações espaçadas de goles de vinho, em surdina, no ouvido do velho combatente, Machel manifesta
a sua sincera dor pelo destino de Simango:
''Olha para esta
felicidade camarada Muchanga. É pena pá. Estou a pensar no
Simango. Aquele homem trabalhou tanto para este dia!... enfim,
é a vida. Mas não há problemas, o homem está nas nossas mãos. É nosso"483.
"Fiquei sem perceber o que Samora
quis dizer. Mas pareceu-me que estava a querer dizer que Simango
ia brevemente ser posto em liberdade e voltaria para o nosso
convívio. Quando soube que o haviam morto, aí é que acreditei mesmo
naquilo que alguns camaradas diziam. Machel e alguns camaradas cometiam crimes.
Na altura da guerra, algumas mortes de pessoas que não concordavam com certas
coisas pareciam acidentais. Poucos podiam falar delas como crimes,
porque a maioria tinha medo e era difícil provar. Mas, e agora,
depois da independência, porque é que mandaram fazer isso? Uma
pessoa que todos sabiam estar nas mãos das autoridades
desaparece e nem ao povo e nem à família se diz alguma coisa. O que é
que querem que as pessoas pensem? Simango não era uma pessoa
qualquer para não se saber oficialmente o que se fez com ele. Eu não
estudei muito, mas penso que é assim.".4*4
Pouco se sabe dos acontecimentos em Nachingweia nos meses que se seguiram a
apresentação pública dos prisioneiros políticos. Mas após a proclamação
da independência de Moçambique a 25 de Junho de 1975, o governo tanzaniano via
terminada a sua missão de dar guarida aos combatentes libertadores de
Moçambique. Desde então, cabia às novas autoridades moçambicanas remover os
seus bens e prisioneiros do território tanzaniano para a terra liberta. Em
Novembro, Simango e outros prisioneiros foram levados numa coluna de camiões militares, cobertos de lonas,
para Tunduro. De seguida foram conduzidos para Mbaba-bay no extremo sudoeste da
Tanzânia onde lhes aguardava uma fragata do ex-exército português que os
levaria a Metangula, no Niassa. No dia seguinte à chegada a Metangula foram
encaminhados para Lichinga e, desta cidade, para M'sawize. Posteriormente, seriam encaminhados para o
chamado campo de reeducação de M'telela onde foram executados. Consumava-se, assim, o dito popular tsonga,
"massassane afeia kwatini"485, e
confirmava-se então a perca de uma batalha,
pois, a guerra, essa, manteve-se em toda a sua plenitude acesa, e os que ficaram continuaram a cantar o "We
shall overcome" até ensurdecer os tiranos. No início da década de
noventa, como que confirmando a lendária tese de "adaptação a novas
circunstâncias" de Sun Tsu486 os dirigentes da Frelimo
passaram de ditadores a paladinos do plurarismo político e da concórdia. Eles é
que mudavam, e não as suas vítimas.
Entretanto,
acredita-se que em 1977, Kamuzu Banda tomou conhecimento das sevícias a que estavam
sujeitos os homens que o seu governo havia ajudado a prender. As garantias dadas por
Nqumaio de que após a ascensão de Moçambique a independência Simango e seus companheiros seriam postos em liberdade
não foram cumpridas. Kamuzu Banda
apercebeu-se, então, da natureza real da conspiração por si consentida. Teve ainda conhecimento dos
contactos secretos que Nqumaio
mantinha, tanto com Dar es-Salam como com o regime da Frelimo, então já sediado em Maputo. Segundo
relatos de uma das fontes
consultadas, o facto ter-lhe-á enfurecido a ponto de procurar ajustar contas com o seu ministro, acusando-o de
um atentado golpista. Assim, Nqumaio
viria a ser condenado à morte e executado ainda em 1977 pelo governo de Banda. O seu filho mais velho
ter-se-á refugiado em Moçambique onde
permaneceu por longos anos. A um outro senhor, Focus Gwede, então director da Special Branch malawiana a
quem Banda igualmente acusou de conluio no plano do golpe e na detenção dos políticos moçambicanos, coube a
sorte de uma condenação a prisão
perpétua, pena que não cumpriria na íntegra graças aos ventos da democracia multipartidaria que sopraram
sobre o Malawi no início da década de 90. Saiu da prisão com a subida ao poder
de Bakili Muluzi487
Código Namuli: Do
rapto em Nairobi a farsa jurídica
Há algumas
curiosidades que não encontram resposta nos confusos acontecimentos ocorridos entre
1974 e 1977 na África Austral. A menos que os envolvidos na maioria das tramas da
região na época se pronunciem
sobre alguns contornos da história recente de Moçambique,
tudo indica que muito ficará por esclarecer e, quiçá, registar para a posterioridade.
Segundo se diz, a
uma dada altura da sua permanência no Kenya, o padre Mateus Gwengere chegou a
desconfiar de alguém relativamente ao rapto do Reverendo Uria Simango. Disso,
Gwengere chegou a reportar por carta a Jorge Jardim, então refugiado algures na África ocidental. Na carta,
Gwengere é citado como
tendo afirmado que um "elemento de confiança, ou como tal considerado, se
infiltrara no seu grupo, actuando para os serviços secretos da
Frelimo."4™.
Dados posteriores
colhidos no decurso das pesquisas para a elaboração deste livro, indicam que Gwengere
não estava enganado. Contudo, curiosamente, meses mais tarde, a despeito de
ter chegado a conclusão de que a Frelimo havia infliltrado espiões no seu grupo, Gwengere cairia numa
cilada, ao que tudo indica, em que participou CMM489, o mesmo espião do
enredo da captura de Simango.
Em Setembro de 1975, as autoridades
tanzanianas e o governo da Frelimo em Moçambique assinaram um acordo económico e
ideológico490
que viria a reforçar o já obscuro campo das relações entre os dirigentes dos dois
Estados vizinhos. Embora tardiamente explícito por via de uma assinatura
formal, o acordo já implicitamente existia muito antes da independência
política de Moçambique. A constante interferência das autoridades tanzanianas na
contenda entre os moçambicanos fazia parte desse plano tácito. Foi na sequência dessa
colaboração que as autoridades tanzanianas prenderam, em Tanga, Miguel Murupa e igualmente
perseguiram e prenderam no norte do território tanzaniano Raul Casal Ribeiro e
sua esposa Lúcia Tangane. Todos, na companha de quatro filhos menores do casal
Ribeiro, foram entregues a Frelimo em Nachingweia.
É igualmente
conhecido o rapto do cidadão português Adelino Serras Pires e de dois familiares
deste pelas autoridades tanzanianas. Com efeito, sem conhecimento das autoridades
do seu país (Portugal) e sem nenhuma ordem jurídica expressa para o efeito,
Pires foi extraditado do território tanzaniano para Moçambique em Agosto de 1984. Permaneceu sob
desumanas condições por um longo período incomunicável na cadeia da Machava e,
posteriormente, na cadeia da Xefina491.
Um estudo recente492 igualmente fala da existência de um
Conselho Revolucionário, organismo concebido pela Tanzânia, com jurisdição e responsabilidades
mais amplas ao nível da África Austral e em cuja hierarquia pontificavam Julius
Nyerere e Samora Machel.
Tal como o rapto de
Uria Simango, a história do desaparecimento do padre Mateus Pinho Gwengere é outro
caso que ilustra o quão o regime samoriano em Moçambique não descansava enquanto não visse os seus históricos oponentes
fora do baralho. Para isso dispendia
milhares de contos na compra de consciências de homens despidos de moral.
CMM era um jovem seminarista
natural de Murraça na província de Sofala. Igualmente, como muitos outros jovens da
sua idade na sua época, juntou-se à Frente de Libertação de Moçambique no
início da segunda metade da
década sessenta. Fez parte do grupo dos contestatários
aos procedimentos de Mondlane. Isso ter-lhe-á valido a deportação para Rutanda em Julho de 1968. De
Rutanda escapou na companhia de outros dois para o Kenya onde se fixaria até ao
"golpe de Estado" de 25 de
Abril em Portugal. Regressaria a Moçambique na companhia do Padre Gwengere que,
igualmente, havia escapado para o
território kenyano nos fins de 1972 na companhia de Willis Shultz493,
depois da tentativa de assassinato
de que fora alvo na paróquia da diocese de Tabora onde estava afecto. Juntamente com outros contestatários aos procedimentos da Frelimo em 1974, CMM
desenvolveria a sua actividade
política filiado no Partido de Coligação Nacional liderado pelo Rev. Uria Simango. De forma pouco clara, CMM
passou de contestatário aos
procedimentos da Frelimo a espião desse movimento no interior do PCN. Em Setembro ou Outubro de
1974, face à turbulência então instalada em Moçambique, empreenderia uma nova
fuga de regresso a Nairobi, ao
que tudo indica, na companhia do Padre Gwengere.
Enquanto uns eram
publicamente apresentados em Nachingweia e planificado o seu encaminhamento à terra
liberta, os tentáculos da Frelimo mantinham-se em plena actividade no estrangeiro.
E, para além fronteiras, um dos alvos a abater era o Padre Mateus Pinho Gwengere.
Estando o padre em
Nairobi depois da sua saída precipitada de Moçambique em 1974, seria meses depois
aliciado a participar numa suposta reunião com alguns tanzanianos que se
apresentaram como sendo opostos ao regime tanzaniano de Julius Nyerere. Para o efeito, segundo dados da
nossa pesquisa, ninguém mais do que CMM garantiria o pleno êxito da operação, pois
desde 1968 que Gwengere convivia com ele e, a lealdade étnica havia dissipado
na mente do padre qualquer réstia de desconfiança em relação ao jovem seminarista.
Segundo fontes
em Nairobi, raras eram as vezes em que se via o padre Gwengere sem que não estivesse
na companhia de CMM ou de Wills Shultz. CMM era como que um secretário particular de
Gwengere e Shultz um conselheiro, assevera uma das fontes.
Na primeira quinzena de Outubro de
1976, um grupo de supostos opositores ao regime de Nyerere na Tanzânia far-se-ia
a Nairobi para
raptar o padre Mateus Gwengere e encaminhá-lo à Moçambique. Segundo fontes no
território Kenyano, o plano, concertado entre as polícias políticas de Moçambique e da
Tanzânia, contou com a colaboração do suposto espião, CMM. Com efeito, depois de
preliminares consertações, na tarde de 11 de Outubro de 1976, Gwengere e CMM partiam de Adam
‘s Arcada494 na companhia de dois tanzanianos numa viatura para o que
se supunha ir tratar de assuntos da luta comum de dois povos irmãos
contra dois tiranos na África Austral - Julius Nyerere e Samora Machel.
Segundo aqueles tanzanianos, "Machel era filho de Nyerere e sem
Nyerere ele não podia permanecer por muito tempo no poder em
Moçambique". Era, portanto, "preciso cortar a raiz para fazer secar a
árvore"495. Um outro refugiado moçambicano, que na circunstância se encontrava com o grupo,
desconfiado das atitudes de CMM e do grupo dos tanzanianos, teria sem sucesso
alertado o padre para se acautelar, pois a atitude ostensiva com que o grupo tratava de assuntos de natureza
política era demasiadamente suspeita para se poder confiar nos seus propósitos. Contudo, a despeito deste
alerta, Gwengere estava profundamente
seguro de que nada de contrário aconteceria,
pois CMM era o seu homem de confiança. A existir qualquer perigo certamente que este tê-lo-ia alertado
a tempo de não se aproximar daqueles
tanzanianos. O precavido homem ficaria assim de fora e o padre partiria com os três, ostensivamente para uma reunião com exilados tanzanianos em Mombassa. Só que a
viatura em que seguiam, pertencente
a um funcionário da representação tanzaniana na Comunidade dos Países da África Ocidental em Nairobi, rumou em direcção
a Namanga na fronteira entre o Kenya e a Tanzânia. Tanto CMM como o padre nunca mais seriam vistos nos
círculos dos refugiados moçambicanos
no Kenya.
Tudo indica que o
Padre Mateus Gwengere não entrou vivo em Moçambique. Terá sido abatido numa tentativa
de fuga quando já era conduzido em direcção à fronteira da Tanzânia com
Moçambique. Os seus restos mortais seriam transportados na clandestinidade para a margem moçambicana do
rio Rovuma, onde foram sepultados de qualquer maneira496.
A questão de Simango e
outros presos políticos em Moçambique, esteve sempre envolto num manto espesso de
grande secretismo, uma característica
de governos totalitários. Pouco se sabe com exactidão que vida levavam os
presos políticos no centro de M'telela. Contudo, particularmente para o
Reverendo Simango e sua esposa, é salutar o gesto que se lhes dispensou de, ao
menos, corresponderem com os filhos, então aos cuidados dos tios na cidade da
Beira. Tanto em Nachingweia como no Niassa,
o casal Simango deu notícias do seu estado
de saúde por via de cartas.
Simango lembrava-se de cor do endereço (caixa postal 396) da Igreja de Cristo
Ramo de Manica e Sofala. Sabia que
por via dessa caixa postal era possível trocar correspondência com os filhos e com o seu irmão Elijah.
Como os seus carcereiros lhe haviam
garantido que os filhos estavam bem e aos cuidados dos tios na cidade da Beira, Simango pediu
imediatamente que lhe permitissem
corresponder-se com os garotos. Encaminhada a preocupação, num gesto impar de humanismo, a chefia da
Frelimo consentiu. Nos fins de
Novembro de 1974, Simango deu a primeira notícia através duma carta cuja recepção foi acusada pelo
filho Lutero. Prontamente, Lutero
respondeu ao pai nos princípios de Dezembro, facto que sobremaneira o tranquilizou. Já em Moçambique,
Simango não sabia em que local de
Niassa se encontrava, pelo que no cabeçalho de cada carta, apenas escrevia: Província de Niassa. O
conteúdo das cartas reflectia o grau
de controlo e censura a que estava sujeita toda a correspondência de e para o campo. Tanto o Reverendo
como a esposa limitavam-se apenas a
dizer que estavam bem de saúde, solicitando de seguida que Lutero lhes falasse dos seus estudos e dos irmãos. As respostas às cartas vindas de Niassa, eram postadas
pelo filho na cidade da Beira para um
endereço que, mais tarde, se viu tratar-se da caixa postal do Governo Provincial de Niassa. JM., então
funcionário ligado a CIM no governo
de Niassa, afirmaria mais tarde que toda a correspondência era violada em Lichinga. Como Lutero
escrevesse em Inglês, cabia a um indivíduo de nome DD lê-las e efectuar a
respectiva tradução. JM confirma que
Simango e Celina receberam algumas dessas cartas497. A última carta
de Simango para o filho é datada de 15 de Fevereiro de 1976. Celina, por sua vez, escreveria a sua última carta
aos filhos no dia 12 de Fevereiro de 1981, mas, em nenhuma delas a senhora fala do marido a partir de Abril de 1976.
Diz apenas que está bem e recomenda
aos filhos que estudem muito.
De Março de 1981 em diante o
silêncio foi total, o que levou tanto os filhos como a maioria dos
familiares a desconfiar de que algo de sinistro se estava a passar. Em 1982,
Jorge Costa, ex-director nacional de segurança, dissociar-se-ia do regime indo procurar
refúgio e protecção
na África do Sul. Foi a partir daí que a execução sumária dos prisioneiros
políticos moçambicanos viria a ser conhecida. Foi ainda desvendado e relatado
o plano do governo da Frelimo em forjar um documento visando
dar credibilidade jurídica à pena capital aplicada a Simango e aos seus companheiros à revelia dos tribunais. Com efeito, a revista sul africana Scope publicou a 11 de Fevereiro de 1983 a
transcrição do documento que daria início ao macabro
plano, tendo a atestá-lo a assinatura do então
Ministro da Segurança, Jacinto Veloso. Eis, na página a
seguir, a transcrição do referido documento:
MINISTÉRIO DA SEGURANÇA Ordem de Acção n. 5/80
De: DI
Para: DB e o Chefe da BO
No espírito dos costumes, usos e tradições da luta
armada de libertação nacional, o Comité Político
Permanente da Frelimo julgou e condenou a
morte por fuzilamento os seguintes desertores e traidores do povo e da causa nacional, que foram já
executados:
Uria Simango
Lázaro Nkavandame
Júlio Razão Nihia Mateus Gwengere
Joana Simeão
Paulo Gumane
De forma a prevenir possíveis reacções negativas,
internas ou internacionais que
possam surgir em consequência da execução desses contra-revolucionários, o Comité Político Permanente
decidiu publicar este acto como uma
decisão revolucionária do partido Frelimo, e não como um acto jurídico.
É portanto necessário compilar um dossier declarando a
completa história criminal desses indivíduos, bem como suas confissões aos elementos da DD/SI que os interrogaram, declarações de testemunhas,
autos do processo e sentença.
Para
além desse dossier, deve se fazer um comunicado que será lido pelo camarada Comandante em Chefe onde
ele anunciará a execução dos acima
mencionados contra-revolucionários.
Foi decidido nomear um Comité para compilar
o dossier e preparar o comunicado. O
camarada comandante em chefe decidiu que o acima mencionado Comité
será encabeçado pelo camarada SÉRGIO VIEIRA, e terá como membros adicionais os
camaradas OSCAR MONTEIRO, JOSÉ JÚLIO DE
ANDRADE, MATIAS XAVIER e JORGE COSTA.
A luta continua
Maputo,
29 H 180
O Ministro da Segurança
JACINTO VELOSO
Mas as discrepâncias nas informações à volta dos presos políticos, perturbam qualquer investigador atento dada a escassez de uma informação oficial e o perigo de entrevistar directamente os implicados
no crime. De acordo com outras fontes:
"(...) em
Setembro de 1982, Jorge Costa, ex-Director Nacional de Segurança (Snasp) revelou que em
Junho de 1980, Sérgio Vieira, na altura
governador do Banco de Moçambique, contactou-o assim como a Matias Xavier, outro membro do Snasp, informando-os de que o governo decidira forjar um
processo-crime legalizando o fuzilamento dos presos políticos. O
processo-crime seria redigido por
Vieira, Costa e Matias, tendo na altura Vieira entregue a estes dois um dossier com a designação NAMUL1, contendo
pormenores sobre todos os
executados. Castro Lopo, chefe do Departamento Jurídico do Snasp foi contactado por Matias Xavier a
fim de emprestar um tom jurídico ao
referido processo-crime".
O mesmo Jorge Costa revelaria também que:
"No dia 11 de Outubro de 1978, durante
uma recepção assinalando o terceiro aniversário da fundação do Snasp, o
Comissário Político deste serviço, major Abel Assikala, revelou que
se havia deslocado a Cabo Delgado em 1977 tendo na altura executado
diversos presos políticos, incluindo o Reverendo Simango, Paulo
Gumane, Mateus Gwengere, Joana Simeão, Narciso Mbule, Basílio
Banda, Lázaro Nkavandame e Júlio Razão de Nilia. Ainda segundo
Costa, as ordens de execução dos presos partiram do
Vice-Ministro da Segurança, Salésio Nalyambipano representante
da ala dos ”veteranos” dentro do aparelho de segurança do
regime"49*
Mas a estação
emissora Voz da África Livre, num comentário repetidamente
transmitido em Junho de 1982, afirmaria que em 1980 o Dr. Hermenegildo
Cepeda Gamito, homem de mão do regime, com assento num rol de empresas, e também no
parlamento (quer na versão mono como na pluripartidária) fora quem havia redigido o
texto final da farsa jurídica que o regime se preparava para encenar. A sentença teria sido assinada
por três destacados quadros ligados a defesa e segurança do regime. O
mesmo comentário refere ainda que a execução dos presos dera-se junto ao rio
Namuli em Niassa.
São claras as discrepâncias
nas revelações acima descritas. Enquanto o Major Assikala é citado como tendo dito
que a execução teve lugar em
Cabo Delgado, a Voz da África Livre menciona a província do Niassa como tendo sido o local
da execução. Pessoas conhecedoras desta província desconhecem a existência dum rio
Namuli na referida província.
No entanto, durante a luta de independência nacional os guerrilheiros da Frelimo
dispunham duma base, designada por Namuli, situada no distrito de Palma na
província de Cabo Delgado. Desconhece-se se o dossier "Namuli" está
relacionado com a referida base. Possivelmente, apenas alguns dos presos políticos
terão sido executados na base
Namuli. Em Moçambique existem os montes Namuli, mas estes situam-se na província da
Zambézia.
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