PUBLICO
19 de Dezembro de 2008
TERESA DE SOUSA
Os factos históricos são conhecidos. Uma guerra civil em Angola de quase três décadas, outra um pouco mais breve
Nessa altura, a Guerra Fria travava-se por entrepostas pessoas em entrepostos países. São as suas memórias de África e é também uma história da África lusófona e da África Austral dos últimos 30 anos. "Para acertar contas com o meu e o nosso passado e tentar percebê-lo", disse o autor na apresentação. E para concluir que as ideologias "não escolhem nem delimitam o mal". A virtude do livro é fazê-lo com humanidade e com humor. Extractos da entrevista que deu ao Ípsilon.
P-A sua aventura africana começa no sótão da casa dos seus pais no Porto, quando descobriu "As Minas de Salomão" (1885, Henry Rider Haggard), e termina de uma forma um pouco desencantada.
JNP-"As Minas de Salomão" continuam a ser um belíssimo espelho: estamos sempre naquela coisa de ver quem são os bons e quem são os maus.
P-"As nobres intenções e as mais sórdidas."
JNP-E descobrimos que os bons não são tão bons como isso e que os maus não são assim tão maus.
P-Define-se como um franco-atirador, mas as suas motivações vão variando. A primeira é o nacionalismo e o império e é por isso que vai para Angola, para a guerra do ultramar.
JNP-É normal, é ideológico.
P-Tomou partido, como toda a gente naquela altura. Só que ao contrário.
JNP-Nos anos 60, tomávamos partido e de uma forma radical. E com as respectivas consequências. Íamos às consequências, como você também sabe. Se era partidário do império tinha que lá ir [salvá-lo]. Nem sequer havia forma de não ser assim.
Evidentemente que, depois, as coisas mudam. Há ali um período de nojo ou de luto, se quiser...
P-Com as consequências do 25 de Abril...
JNP-Sim. Eu saio [de Angola]. Fico ainda por ali [na África do Sul, incluindo num campo de internamento], como conto no livro, pela região.
P-Foi uma saída completamente aventurosa, como a que muitos da sua geração, e pelas razões contrárias, fizeram para França...
JNP-Era um pouco mais longe (risos). Estava a dois mil quilómetros da única fronteira por onde podia fugir de Angola, a fronteira com o Sudoeste Africano. Tinha de se ter cuidado, podiam-nos mandar para trás. Fiquei com muita amizade, como conto no livro, pelo "senhor Banana" [um português que o ajudou a passar a fronteira de Angola para a Namíbia], que ainda agora veio ao lançamento deste livro. Os portugueses, os da diáspora, são fantásticos. Enquanto aqui são gente encolhida, esses, como o "senhor Banana", que rapidamente tomou conta de uma linha de solidariedade em que ninguém nos pergunta aquilo que pensávamos ou fazíamos, são fantásticos...
P-Houve esse período de nojo em que tentou em Angola contrariar o destino inevitável do império...
JNP-O que também é uma coisa de grande juventude e romantismo.
P-O regime democrático aqui estabiliza. Já não há nada a fazer. E há agora outra motivação.
JNP-Ainda vivo mais dois anos em Espanha, volto para Portugal em finais de 78 e, depois, a partir de 80, entro num circuito político... Estamos no período da chamada revolução conservadora.
P-Do Presidente Reagan?
JNP-Exactamente. Por um conjunto de circunstâncias, entro num determinado circuito político onde, como sou português e passo a acompanhar bastante bem toda essa área [da África lusófona], torno-me num "expert". E talvez porque, entretanto, também me tornei uma pessoa mais objectiva e menos ideológica.
P-Mas a motivação é política. E nasce quando se passa de uma fase, em que os americanos estão na defensiva e nem querem ouvir falar de Angola, para outra, da administração Reagan, em que o combate ideológico e político da Guerra-Fria reanima.
JNP-É, e aquilo passa a ser um teatro da Guerra Fria. Penso que fiz o seguinte raciocínio: isto [Angola e Moçambique] nunca mais vai ser português, mas há aqui outra guerra que vale a pena... É uma época interessante, porque o internacionalismo não é só da esquerda, há também um internacionalismo na direita. Tive vários amigos que fizeram o que fiz em relação a Angola, em relação ao Afeganistão.
P-Com os mujahedin, a combater a ocupação soviética?
JNP-Isso está hoje contado com muita graça naquele filme "Charlie Wilson's War" [de Mike Nichols]. Mas conheci vários tipos ingleses que as férias deles era irem para o Paquistão para, a partir daí, entrarem no Afeganistão e levar abastecimento aos guerrilheiros.
Claro que, nesse combate, havia recursos e um homem na administração Reagan, mencionado no livro, o director da CIA William Casey [1982-87], que estava vocacionado para isso e criou uma vasta rede de canais e circuitos. Lembro-me de aparecem em poucos meses três livrarias polacas em Paris, logo a seguir ao movimento do Solidarnosc. Havia uma massa de recursos e uma rede para os distribuir. Entrei nesse circuito graças a ligações com a Heritage Foundation...
P-E o "Cercle", um nome digno de filme de espionagem...
JNP-Era mais um ponto de encontro. Não era uma instituição.
P-Mas reunia pessoas muito influentes no mundo Ocidental com o objectivo de vencer a Guerra Fria por todos os meios. Que chegou a ser frequentado por Franz Joseph Strauss (antigo líder da DSU da Baviera) e pelo próprio Kissinger.
JNP-Sim, eram pessoas muito ligadas a esse tipo de sensibilidade. Havia um predomínio grande de americanos, alguns sul-africanos. Era uma espécie de "círculo de cold warriors". Uns mais velhos e outros mais novos. E entrei nisso. Estava dentro dos assuntos, estabelecia ligações com o pessoal das UNITAS e das Renamos, e tornei-me um bocadinho "expert" nessas matérias.
P-Na sua longa aventura africana move-se num círculo que todos sabemos que existe, embora não saibamos muito sobre ele - de serviços secretos, interesses económicos, influências políticas -, que se move na sombra mas tem muito poder.
JNP-E de pessoas, também, com alguma boa vontade. Mas tem razão: quando é tratado pelos académicos e pelos jornalistas, é-o de forma completamente conspirativa. Claro que há alguma conspiração. Lembro-me que uma vez perguntei a um amigo francês, a propósito de um terceiro, como é que o tinha conhecido. "C'est toujours la même chose. C'est toujours un ami qui te présente à un ami qui vient de la part d'un autre ami." Nunca ninguém faz muitas perguntas.
P-No mundo dos serviços secretos não se fazem perguntas.
JNP-Mas esta gente é mais "ex" do que outra coisa. Nos americanos, havia três ou quatro. Um era o Ted Shackley, que foi director de operações da CIA e, durante muitos anos, o responsável por Saigão, um homem muito biografado hoje. Foi um daqueles saneados no tempo do [Presidente Jimmy] Carter e que aterrou ali. Mas também havia muitos académicos, ligados aos think-tanks americanos, havia políticos.
P-Porque é que se escolhe esse mundo?
JNP-Aconteceu. Conto aí como é que me aconteceu. Foi o embaixador Franco Nogueira que me levou para o Instituto de Estudos Políticos do Liechenstein, em 78. Foi aí que Brian Crozier [um jornalista anglo-australiano muito próximo dos meios mais duros da NATO] me conheceu e me convidou para o Cercle, e depois as coisas são um bocadinho como as cerejas. Circula-se.
Há também um lado, que o livro tem, de desmistificar isso tudo. As pessoas são o que são. E não se trata de centros de decisão, são coisa para influenciar.
P-A guerra e a paz em Angola são uma parte fundamental da sua aventura africana. Jonas Savimbi, o líder da UNITA, é uma das personagens centrais do seu livro. Sentia algum idealismo ao apoiar a UNITA ou era apenas o grande jogo da Guerra Fria?
JNP-Em parte, sim. Fiquei muito amigo de muita daquela gente. Mas a UNITA é como o PS ou o PSD. Tem tipos fantásticos, tem atrasados mentais, tem gente dedicada e idealista e tem crápulas.
P-Mas isso não exclui a questão de saber quem é que tem razão. Achava que a UNITA tinha razão na sua luta?
JNP-A razão é uma coisa complicada... Se é uma guerra em que esteja envolvido, digo que a minha decisão talvez não se baseie apenas na razão. É mais como Churchill: "right or wrong, my country." "Right or wrong, my tribe." Não nos podemos esquecer que o preço ali [na guerra civil angolana] era o aniquilamento. Acho que este livro dignifica muita gente.
Sou uma pessoa com convicções políticas mas, muito cedo, me habituei a perceber o outro lado da colina. O que é aqueles tipos de lá pensam de nós... São iguais a nós?
P-Isso no seu livro é verdade, mas pode ser também uma visão cínica das coisas: torna tudo um pouco relativo...
JNP-Não é cínica, é humana. É a única maneira de se humanizar as guerras.
P-Tudo isto para chegar ao seguinte: há um desencanto que assenta nessa ideia de que tudo é justificável.
JNP-Não. Acho é que, no meio disto tudo, o que se pode ir salvando são algumas pessoas e algumas situações. Quando falo dos seminaristas [que ficaram prisioneiros da UNITA, motivando protestos da Santa Sé], não queria saber da UNITA para nada naquela altura, queria era tirá-los de lá. Como era, afinal, uma coisa pequena, não envolvia grandes razões de Estado, era tudo tratado naquela base: "tire lá os miúdos daí, se faz favor..."
P-À portuguesa...
JNP-É o lado de facilitar.
P-Jonas Savimbi era uma daquelas personalidades a que os ingleses chamam de "biger than life".
JNP-Era "biger than life". Julgo que fica bem claro no livro.
P-Mas é isso que torna uma das partes do livro mais amargas. De repente, com o fim da Guerra Fria, ele torna-se num incómodo e toda a gente só lhe passa a ver defeitos.
JNP-É verdade. É uma coisa tremenda. Mas o livro, nesse aspecto, traduz a realidade. Podia ter dourado isso, mas não há que dourar. Vi isso acontecer à minha frente. É a condição de quem se torna o perturbador...
P-Havia crimes da parte da UNITA, havia crimes, porventura mais tremendos, da parte do MPLA, mas houve nessa altura duas atitudes diferentes.
JNP-Há uma equivalência moral, muito complicada nestas coisas, que é a equivalência do mal. Que é sempre justificável pelas razões da sobrevivência. Talvez porque era estrangeiro, tive o privilégio de, numa dada altura, falar com uns e com outros e com o conhecimento de todos. Procurei fazer um pouco o vaivém para tentar humanizar o outro lado.
Essa preocupação que a choca, não acho que seja cínica. É o reconhecimento do facto de que a natureza humana é assim. As melhores causas têm, às vezes, tipos horríveis a defendê-las e as más têm tipos bons.
P-Quando escreve este livro olhando para as coisas com alguma distância não o choca ver hoje José Eduardo dos Santos como figura redimida e Savimbi como figura esquecida. Não há aqui uma profunda injustiça?
JNP-É a ordem natural das coisas. A História não tem sentimentos, faz-se assim.
O [Ernest] Junger tem uma coisa admirável nos diários dele do fim da guerra. No último inverno da guerra, enquanto assiste à queda apocalíptica do III Reich, está a ler literatura de naufrágios, explicando que é uma literatura muito útil para se compreender a condição humana. Não há nada mais civilizado do que um paquete, mas se houver um naufrágio, os mesmos tipos... A condição humana...
P-Sobre a qual você não tem ilusões...
JNP-Como cristão também não posso ser um total pessimista, acho que todos nos podemos redimir. Mas, à partida, somos muito mais marcados pelas nossas coisas negativas. Se encontramos uma justificação ou uma necessidade para isso, somos tão bons ou tão maus como os angolanos ou os moçambicanos... A civilização é uma construção, mas é a coisa mais frágil que há.
P-Hoje, curiosamente, é um homem bem visto pelo regime de Luanda.
JNP-Tenho amigos mas também tenho inimigos.
P-Como é que se acaba esta aventura africana com uma empresa de segurança em África?
JNP-É só em Moçambique e emprega cinco mil pessoas, moçambicanos.
P-Como é que se termina assim este percurso?
JNP-Termina não, que eu faço muitas outras coisas na vida. Em Moçambique, num dado momento, o Carlos Veiga Anjos, que na altura [princípios de 2000] era da administração de Cahora Bassa, queria fazer o outsourcing da segurança. Tínhamos uma equipa de formadores [de segurança] em Luanda e disse-lhe que tinha um tipo óptimo, um ex-oficial dos Comandos, o Rui Castro Pereira, que ia ficar livre. Ele foi para Moçambique estudar o caso e, quando acabou, disse-me que talvez pudéssemos fazer nós próprios qualquer coisa. Eu e um grande amigo meu, o Vitor Ribeiro, que foi presidente da Associação de Comandos e que foi decisivo no 25 de Novembro, decidimos então fazer uma empresa.
P-Uma empresa de segurança em África não é o mesmo que em Portugal.
JNP-Não, mas acaba por ser tudo a mesma coisa. É uma coisa banal porque a segurança pública é má.
P-Tem de reconhecer que é um exército.
JNP-É.
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