A maldade foi instituída há treze anos atrás. Atuando na seqüência da famosa Reforma Previdenciária de 1998, o governo FHC encaminhou um projeto de lei ao Congresso Nacional, alterando um conjunto de regras do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Transformado na Lei n° 9.876/99, o maior prejuízo que a nova medida trazia ficou conhecido como “fator previdenciário”.
O momento era de grande entusiasmo do establishment com as recomendações do receituário do neoliberalismo. A previdência social já era objeto de bombardeio cotidiano por parte dos grandes meios de comunicação, embalados por informações falseadas, que os próprios responsáveis do governo deixavam escapar. Déficit estrutural, bomba de efeito retardado, modelo falido e demais figuras do gênero eram as caricaturas que a imprensa utilizava em sua missão de desconstruir o nosso regime previdenciário no imaginário popular.
O plano estratégico obedecia a um cronograma mensal, quando uma nova edição do boletim do Ministério divulgava as contas e a situação da Previdência em nosso País. O enredo implicava a divulgação do novo número bombástico a respeito do “estrondoso déficit previdenciário”, sempre da ordem de vários e assustadores bilhões de reais. Porém, ao misturar alhos com bugalhos, as autoridades do governo acabavam por contribuir para a desinformação a respeito da situação real das contas do RGPS.
Criação artificial da crise da Previdência: os 4 aspectos
O primeiro aspecto dizia respeito aos escândalos de corrupção envolvendo o sistema. Desde as grandes negociatas no atacado, até os pequenos delitos relativos a pagamento de pensões indevidas, óbitos não comunicados, licenças sem base médica justificada e similares. Ora, eram casos que diziam respeito à nossa natureza cultural, à forma particularmente tupiniquim de estabelecer a relação com o poder público. Tinha pouco a ver com a sustentabilidade do regime previdenciário, do ponto de vista de seu equilíbrio atuarial e financeiro. A resposta para esse tipo de dificuldade passaria por medidas de fortalecimento na fiscalização, maior rigor na punição e mais transparência nas informações.
O segundo aspecto referia-se à insistência mal intencionada de somar o conjunto do pagamento de benefícios previdenciários e compará-lo com as fontes de receita. E aí, realmente, aparecia um descompasso. Mas essa diferença estava baseada em uma decisão da Assembléia Nacional Constituinte em 1988, quando se deu um importante passo na direção da inclusão social e da universalização da cidadania. Foi o reconhecimento do direito dos benefícios previdenciários aos trabalhadores do campo, até então excluídos de qualquer acesso ao sistema do INSS. E ao fazê-lo, as contas do RGPS passaram a exibir uma rubrica de despesa, sem que tais beneficiários houvessem contribuído ao longo de sua via econômica ativa.
Apesar de justíssima como medida de política pública, a contabilidade adequada exigia que o Tesouro Nacional realizasse a contrapartida dessa contribuição de cada beneficiário rural, pois a responsabilidade não poderia ser imputada a algum desajuste do regime previdenciário. Aquela havia sido uma decisão da Nação.
O terceiro aspecto consistia na soma agregada das despesas de regimes previdenciários completamente díspares, como o RGPS e os regimes próprios de previdência dos funcionários da União, dos Estados, dos Municípios e dos militares. Por se tratarem de modelos completamente distintos, os valores também destoavam. O INSS sempre apresentou um valor médio de benefícios bem abaixo, quando comparados aos valores pagos aos aposentados e pensionistas da administração direta. Além disso, o Estado tampouco recolhia simbolicamente às contas dos fundos dos regimes próprios a sua cota parte como empregador. Assim, as contas estavam sistematicamente deficitárias.
O quarto aspecto envolvia o “esquecimento” sistemático de valores igualmente bilionários que deveriam estar presentes pelo lado da receita do RGPS, mas não eram contabilizados. E aqui me refiro aos inúmeros casos de isenção de contribuição previdenciária (entidades filantrópicas, clubes de futebol, instituições religiosas, microempresas, etc) e os números escandalosamente bilionários de sonegação conhecida ou dívidas enormes em arrastadas disputas judiciais. Trata-se também de situações em que a responsabilidade não pode ser imputada a um suposto desequilíbrio estrutural do sistema previdenciário.
A criação do fator para reduzir o valor dos benefícios
Assim, em nome do combate a esse falso déficit alardeado aos quatro ventos, começam a surgir as panacéias conhecidas por todos nós. E as sugestões de ajuste sempre sugeriam a busca do equilíbrio a partir da lógica de redução das despesas – ou seja, do corte de benefícios. Durante o período de inflação crônica e elevada, as dificuldades para a realização das maldades eram menores: bastava um reajuste atrasado por alguns dias, com um índice abaixo da correção adequada. E pronto: o valor real dos benefícios estava abaixo do que deveria ser de fato. Era o fenômeno que os livros de economia chamam de imposto inflacionário. O Estado e os grandes agentes econômicos conseguem “arrecadar” mais do que têm direito, apenas com esse tipo de estratégia político-financeira, dos setores que não conseguem se proteger da inflação.
Com a estabilidade alcançada a partir do Plano Real, em 1994, passou a surgir mais dificuldade em escancarar a tão desejada redução do valor dos benefícios. O fator previdenciário caiu como uma luva e veio “legalizar” essa estratégia de colocar no colo dos (atuais e futuros) aposentados e pensionistas a conta de ajuste do sistema. Pelo novo método de cálculo dos valores dos benefícios, os trabalhadores deveriam passar mais anos na ativa para que não houvesse perdas nos valores dos benefícios. Era isso o que se depreendia da aplicação da complicada fórmula constante no anexo da lei. Caso quisessem manter sua expectativa de direitos e se aposentar na idade prevista até então, o fator promoveria redução nos valores a receber dali para frente. Em dimensões expressivas, podendo chegar a perdas de 30% e mesmo 50% do poder de compra dos benefícios.
A extinção do fator de 2010 e o veto de Lula
E assim ficou. Apesar de todo o amplo movimento social contrário à medida, o fator foi incorporado de fato aos cálculos do RGPS. A generalização das perdas previdenciárias continuou, mesmo depois de 2003, quando o partido que mais havia lutado contra a medida chegou ao poder – o PT com Lula Presidente. O fator previdenciário continuou imexível. Já em seu segundo mandato, o governo foi surpreendido pelo próprio Congresso Nacional, que chegou a aprovar o fim do fator previdenciário, ao embuti-lo no texto da Medida Provisória 475/99, que tratava do reajuste dos benefícios. Transformada na Lei n° 12.254/10, a medida atravessou a Praça dos 3 Poderes para receber a rotineira sanção presidencial. Mas Lula, aconselhado pela área econômica, decidiu por vetar o dispositivo que extinguia o fator previdenciário.
Como a maioria das entidades da área sindical e dos aposentados nunca se acomodou face a tal situação, a medida volta novamente agora à agenda política e está na pauta de votação no Congresso Nacional. O Senado Federal já aprovou o PL n° 3.299/08, que extingue o fator previdenciário. E a proposição deveria entrar em votação na Câmara dos Deputados, assim que a ordem do dia for destravada pelas medidas provisórias. Ao que tudo indica há um grande acordo para que seja aprovado um Projeto Substitutivo do deputado federal Pepe Vargas (PT/RS), atualmente Ministro do Desenvolvimento Agrário. Essa proposta alternativa é a que institui a chamada regra dos “95/85”. Isso significa que será estabelecido um pré-requisito mínimo para poder se aposentar, envolvendo a idade da pessoa e o tempo de contribuição. No caso dos homens, um mínimo de 60 anos de idade e 35 anos de contribuição – total de 95. No caso das mulheres, 55 anos de idade e 30 anos de contribuição – total de 85.
O PL em pauta na Câmara dos Deputados
No entanto, há resistência mesmo assim em setores do governo, que temem pelo aumento das despesas previdenciárias. Tanto que sugerem mudar a base de cálculo do valor dos benefícios, que antes era a média dos últimos 36 meses de contribuição. Assim, de acordo com o texto do Projeto Substitutivo em negociação, o valor da pensão passaria a ser calculado com base em 70% do total das contribuições do indivíduo ao longo de sua vida. Restaria ainda uma dúvida jurídica e uma pendência judicial, a ser apreciada pelo STF, a respeito do tratamento a ser conferido às aposentadorias já concedidas sob a vigência do fator desde 1999, que tiveram seus valores injustamente reduzidos.
Ainda que tardia, a correção dessa injustiça social é bem vinda. Não há o que temer pelo equilíbrio das contas previdenciárias. Como já foi demonstrado ao extremo, até o momento atual o sistema está atuarialmente calibrado, no que se refere aos trabalhadores urbanos. O impacto relativo ao passivo dos aposentados rurais é quase nulo, pois todos recebem um beneficio equivalente a um salário mínimo. A grande maioria da sociedade brasileira mantém seus olhos sobre o plenário da Câmara dos Deputados, aguardando pela aprovação urgente do fim do fator. E espera que o gesto do veto presidencial não se repita, como ocorreu tristemente em 2010.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Sem comentários:
Enviar um comentário
MTQ