ESTE texto é uma ligeira reformulação dum texto que publiquei no Facebook.
Escrevi-o como um desabafo dirigido à forma como alguns de nós entendem o
exercício da cidadania.
Maputo, Segunda-Feira, 19 de Novembro de 2012
Notícias
Não é a primeira vez que faço algo parecido. Há anos que tenho em mim que o
nosso entendimento de cidadania constitui o maior perigo à estabilidade – e,
porque não? – um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento. Quando publiquei o
texto ainda não tinha conhecimento do que estava a acontecer em Maputo no mesmo
dia, 15 de Novembro. Não sabia que as pessoas se tinham feito à rua para
protestar de forma vândala contra o que eles com toda a legitimidade de quem vê
a sua confiança numa sociedade solidária e justa diariamente minada consideravam
ser políticas injustas. Publiquei o texto em reacção a uma forma de comentar as
coisas da nossa vida que ao invés de nos obrigarem a ver a nossa própria
responsabilidade no estado das coisas, nos retiravam completamente da cena e nos
colocavam como meros espectadores entusiastas do que vai mal. E como era de
esperar, houve muita gente que festejou do conforto dos seus computadores, e com
toda a insensatez que um entendimento problemático do jogo democrático confere,
os actos de vandalismo como “revolta popular”.
Comecei por fazer uma vénia aos portugueses, nossos ex-colonizadores, pessoas
de quem, afinal, ainda podemos aprender algumas coisas. Escrevi: estou a pensar
nos portugueses que elegeram um governo para os ajudar a sair da crise só para
pouco tempo depois chamarem aos membros desse governo de gatunos, corruptos e
ladrões. Penso neles porque pelo menos são mais consequentes do que nós em
Moçambique. Não se limitam a chamar nomes ao governo. Organizam-se em torno de
partidos políticos, sindicatos e associações cívicas e vão à rua protestar,
informam-se sobre o que está mal, discutem os méritos das propostas de salvação
do país e dão vida ao sistema democrático que desde 1974 tudo têm feito para
tornar num sucesso. Portugal está em crise, mas ao que tudo indica tem cidadãos
à altura do desafio. Portugal vai sair da crise, por mais estranho que isto
pareça agora. Escrevi isso porque apesar de saber que a crise em Portugal é
profunda, é inspiradora a forma como ela tem conduzido à revitalização da
política naquele país. O eleitorado português cometeu provavelmente um erro ao
eleger o governo que tem. Em democracia esse erro corrige-se com maiores doses
de cidadania, não com uma rejeição da política. E é justamente isso que os
portugueses estão a fazer.
Escrevi também: Estou a pensar no hábito cada vez mais deprimente de chamar
nomes ao Governo de Moçambique sem, muitas vezes, conhecimento de causa, sem
investigação, apenas na base do que “toda a gente sabe”. Em dias anteriores
tinha lido pseudo-discussões no Facebook onde a notícia de que a Finlândia e os
EUA iam interromper a sua ajuda ao nosso país por auditorias terem revelado
graves falhas e atropelos na implementação dos projectos. As notícias não davam
mais nenhuma informação sobre a qualidade dos estudos na base dessas conclusões.
Foi suficiente ouvir dizer que alguém tinha passado mau atestado às nossas
instituições para gente instruída se pôr a chamar nomes ao governo sem a mínima
preocupação de se informar primeiro e dar, como todo o indivíduo deve o fazer, o
benefício da dúvida a quem está a ser mal pintado até melhores informações.
Continuei dizendo: Cada vez mais me convenço duma coisa: o que toda gente
sabe é o que ninguém sabe. No nosso país, claro. Se algum diplomata
qualquer, não importa a sua qualificação, os seus motivos, as prioridades
políticas do seu país, a situação do seu país, etc. diz que vai parar de ajudar
o nosso país, muitos de nós lançamo-nos imediatamente na crítica ao governo e
não procuramos consolidar as nossas crenças com conhecimento mais sólido sobre o
que realmente aconteceu, como o que aconteceu foi apurado, se na base de métodos
claros, transparentes e fiáveis. Toda a gente sabe que temos um governo de
ladrões. Se o Fundo dos Desafios do Milénio decide interromper a ajuda a
Moçambique porque houve atrasos na utilização dos fundos, ninguém pergunta
primeiro se essa incapacidade se deve apenas aos “ladrões e gatunos” que nos
governam. Ninguém quer saber se os planos tinham sido realísticos. Perguntas
elementares que não precisam de justificar o desleixo e a incompetência, mas
podem nos ajudar a ter medida na crítica, condição essencial duma participação
construtiva no debate público de ideias.
Aí tive que continuar escrevendo: Estou a pensar na terra onde vivo,
Alemanha, onde até hoje um projecto de construção duma Filarmónica em Hamburgo
inicialmente orçado em 77 Milhões de Euros – e que devia ter sido concluída em
2010 – ainda não terminou. Entretanto, os custos já rondam os 500 Milhões e a
conclusão está prevista para 2014 ou 2015. E o governo alemão não é de gatunos,
até porque nos ajuda. Na vizinha Áustria só este ano abriu uma terminal do
aeroporto de Viena que devia ter sido aberta há quase quatro anos. Do orçamento
inicial de 400 Milhões de Euros passou-se, entretanto, para 800 Milhões! O edil
de Hamburgo não foi reeleito. Alguns responsáveis da companhia dos aeroportos
austríacos pediram demissão. Com estes exemplos não queria sugerir que a
existência dos mesmos problemas fora de Moçambique justificasse uma atitude
menos séria por parte dos nossos governantes. O único que fiz fazer com esses
exemplos foi mostrar que quando a nossa crítica ao que não está bem faz do nosso
país um caso muito especial e único desqualificamo-nos completamente duma
participação útil no debate de ideias.
O Fundo americano dos Desafios do Milénio é para mim uma das mais geniais
ideias de George W. Bush, senão mesmo a única e de longe melhor do que qualquer
das coisas que têm vindo dos países europeus em matéria de auxílio ao
desenvolvimento. Perder este instrumento é grave para o país, independentemente
das razões. O Ministro da Planificação apareceu em público a explicar que tinha
havido problemas com algumas das empresas que tinham sido escolhidas para fazer
as obras. A explicação faz sentido, é daquelas coisas que sempre vão acontecer.
Só que um Ministro não está no poleiro apenas para explicar porque as coisas
correram mal. Ele está lá também para assumir responsabilidade pelo que correu
mal, perguntando-se, sobretudo, porque não tomou providências quando viu – se
viu – que esse desfecho negativo era provável. Isto não é o mesmo que o chamar
de “gatuno” como algumas pessoas fazem. É apelar à sua consciência como
moçambicano comprometido com o bem estar do seu povo. E mesmo se ele funcionasse
em nome dos seus colegas “gatunos” a honra que existe entre “gatunos” exigiria,
no mínimo, que ele assumisse responsabilidade por ter comprometido as suas
hipóteses de continuarem a “roubar”. Em minha opinião, o mínimo que o Ministro
devia fazer para não comprometer a imagem do governo que serve e, acima de tudo,
para revelar respeito pelo povo que o elegeu é assumir a responsabilidade e
demitir-se. Ser Ministro não é profissão. É serviço público ao nível do exemplo.
Mas repito: a questão é esta. Não tem nada a ver com o ele ser “gatuno” ou não,
porque “gatunos” somos todos nós neste país. E em seguida devemos apurar os
contornos que esse desleixo – se desleixo houve – assumiu para o
prevenirmos.
Fechei o meu texto do Facebook com a seguinte referência a um dos maiores
ídolos da minha geração: Estou sobretudo a pensar em Michael Jackson, mais
precisamente na sua composição “Man in the mirror” (a pessoa que está no
espelho). Estou a pensar no refrão: “eu começo pela pessoa no espelho, nada mais
claro do que isso; se quiseres mudar o mundo para o melhor, olha para ti próprio
e faça essa mudança”. Estou a pensar na profundidade cívica desse refrão e quão
bom seria para este país se fosse interiorizada pelas centenas de pessoas que
encontram satisfação na conclusão rápida baseada no que “toda a gente sabe” (e
que, portanto, ninguém sabe); pessoas que vivem rezando para que os que eles
pensam não terem nada a perder lá em Xiquelene ou na Junta (mas
que têm, pois esses, ao contrário dos críticos profissionais do Facebook,
trabalham bem duro no seu dia-a-dia apesar de não terem fotos de férias ou
trabalho em lugares pitorescos para exibir, pratos sofisticados dos restaurantes
onde também podiam comer se as suas condições fossem melhores, investem a sua
energia na garantia da sua sobrevivência do que na espectacularização do
sofrimento dos outros); pessoas que vivem rezando para que os que fazem o seu
retiro nas matas da Gorongosa se levantem e ponham o país em chamas.
Na sequência dos distúrbios, por exemplo, surgiu um comunicado altamente
desconcertante duma ONG “Parlamento Juvenil” que manifestava “... o seu carinho
e a sua mais profunda solidariedade a este protesto cívico enquanto exemplo
inequívoco da indignação popular perante medidas inconsequentes e desprovidas de
qualquer valor social”. Desconcertante a vários títulos. Primeiro, porque
trivializa o uso da violência como meio político e tenta conferir
respeitabilidade cívica a algo que compromete – a curto e médio termo – a
viabilidade do sistema político. Para mim constitui acto de grande
irresponsabilidade cívica apoiar causas independentemente dos meios que elas
usam para lograr os seus objectivos. É responsabilidade de qualquer cidadão
apostar no respeito pela propriedade e no compromisso com meios não-violentos
para a resolução de conflitos. Quem não se pronuncia claramente sobre isto
desqualifica-se como interlocutor válido na arena pública. E o Parlamento
Juvenil, infelizmente, desqualificou-se com esse comunicado demagogo. Segundo,
porque festeja manifestações que não foi ela a organizar passando-se a si
própria um atestado de mau desempenho enquanto organização cívica. Fez alguma
coisa antes, por exemplo, para, enquanto “... movimento social de defesa dos
direitos, interesses e prioridades da juventude...” canalizar politicamente este
conflito latente? Tudo indica que nada fez. Terceiro, porque oportunista por
usar problemas sociais reais como meio de atrair para si financiamentos externos
que cada vez mais têm contribuído para a externalização dos nossos problemas e
fragilização do nosso sistema político. O Parlamento Juvenil é uma organização
sintomática de tudo quanto de errado existe no nosso sistema político e
económico. Dito doutro modo, é mais um sector improductivo que atrai jovens bem
formados e inteligentes a se especializarem na comercialização dos problemas
sociais do país no exterior na crença algo problemática de que dessa maneira
contribuem para o “desenvolvimento” do país. E se alguém se sente tentado a
pensar que eu esteja contra a “sociedade civil” adianto desde já que não.
Existe, por exemplo, a Rede UTHende, uma ONG moçambicana que investe os seus
esforços no reforço da capacidade do cidadão de zelar ele próprio pelos seus
interesses. Curiosamente, ela está neste momento empenhada na organização dos
utentes de transportes na cidade de Maputo nessa perspectiva de
consciencialização que tão bem faz à cidadania. Ela é cada vez mais um
interlocutor válido das empresas de transportes, do Município e, naturalmente,
dos consumidores. Existe também a UNAC, a União Nacional de Camponeses, que,
embora noutra área também se notabiliza pela intervenção cívica que devolve a
responsabilidade aos indivíduos.
O meu desabafo atingiu o seu ponto mais alto quando escrevi: Conheço gente
que atira lixo para o chão e no minuto seguinte reclama que as autoridades
municipais não fazem nada... conheço gente que não conhece o verdadeiro
significado da palavra “prazos” nos seus próprios compromissos, mas não se farta
de lançar impropérios contra a sorna dos outros, dos nossos “gatunos”; conheço
gente que não vê nenhum problema em justificar o mau trabalho que faz com
recurso à falta de condições, à deficiente formação e não sei o que mais, mas
não sente nenhuma vergonha em esperar que o governo dum país com gente como elas
não funcione como a Suíça (que também só na nossa fantasia funciona de forma
perfeita...); conheço gente que não conhece o seu deputado, mas sabe reclamar no
Facebook e conhece a via mais rápida de procurar alianças internacionais para
fazer pressão sobre o país, entretanto nunca se dirigiu ao seu deputado (nem
mesmo por email) para lhe exigir contas, para o obrigar a interceder a favor do
que ele considera justo e correcto e desse modo fazer funcionar o sistema
político; conheço gente na imprensa, academia, “sociedade civil”, nas
repartições do Estado, etc. que não começa pela pessoa no espelho, prefere
lançar as culpas para um outro sem forma, nem substância porque a
responsabilidade individual é muito pesada. E porque para lá se chegar seria
necessário investigar, dotar-se de conhecimento sólido e, acima de tudo, pensar
seriamente.
Concluíndo, escrevi também: Que pena Michael Jackson ter morrido. Mas isso
era apenas um truque retórico...
- Elísio Macamo (Colaboração)
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