segunda-feira, 29 de outubro de 2012

O Português que aqui falamos

 O caso de construção de frases com verbos de conjugação reflexiva e recíproca

De que os VERBOS são palavras variáveis que exprimem o que se passa, ou seja, um acontecimento representado no tempo, isso já o dissemos no texto anterior. Mas também sabemos da “escolinha” que os VERBOS apresentam as variações de número, pessoa, modo, tempo e voz.
A nossa dificuldade, porém, reside, muitas vezes, na semântica dos enunciados que produzimos no nosso dia-a-dia. Mas também persistem no nosso seio problemas relacionados com a lógica linguística, com as construções frásicas e do discurso, com a regência verbal, com a selecção dos lexemas verbais, com o valor aspectual desses mesmos verbos e, até, perduram na nossa linguagem oral, fundamentalmente, e na nossa escrita dificuldades de conjugação verbal (assunto desta abordagem reflexiva), questões linguísticas que precisam da nossa reflexão, no entanto, académicos, escritores, políticos, estudantes de língua e outros interessados na matéria.
Nesta perspectiva, a nossa preocupação com o discurso oral prende-se com o seu próprio carácter que o difere do código escrito. Na verdade, o código oral, apesar de ser o primeiro a ser utilizado no mundo, este é menos elaborado do que o código escrito, que surgiu posteriormente (Vide a história da escrita de Júlia Kristeva, 1977).
Outrossim, o código escrito ou elaborado, conforme os estudos de Bernstein (1971, 1975, 1977, 1981, 1990), Apud Faria et al (1996:470) “é relativamente explícito fazendo-se pouco apelo ao conhecimento do ouvinte, enquanto o código restrito, relativamente pouco explicito, se basearia no conhecimento partilhado pelo ouvinte”.
Chamamos desde já especial atenção aos leitores das nossas reflexões linguísticas que devemos entender por código restrito aquele que é partilhado entre pessoas do meio popular e julgamos, se assim nos entendermos, que o código oral, porque não exige necessariamente muito rigor na sua realização, a este tipo pertence.
Com efeito, apraz-nos afirmar que todos nós nascemos com a faculdade de expressão e comunicamos quando nos adaptamos ao meio da nossa primeira socialização. A isso, os psicolinguistas designam “função de lateralização da linguagem”. Esta função opera-se dentro da nossa cachimónia, ou seja, no cérebro humano.
De facto, todos nós falamos um ou mais idiomas mesmo que alguns de nós não saibam ler nem escrever nessas línguas. Todavia, mesmo que não saibamos ler nem escrever algo usando os códigos linguísticos, temos regras intuitivas das nossas línguas. Estas regras jazem passivas nas nossas mentes e afluem à superfície dos discursos que proferimos em cada dia.
Quantos de nós falamos Cissena ou Cindau, ou outra língua nacional, com proficiência/competência, mas se nos for solicitado para escrevermos o que acabamos de falar há bem pouco tempo, claudicamos?!
O mesmo fenómeno linguístico se observa com as conjugações de verbos, por cima em língua oficial mas europeia, pois, a norma de referência do nosso “guês” é ainda europeia.
Quantas vezes nos “surpreendem” os discursos ou enunciados do tipo “Encontramos-se amanhã. Já é tarde”, ou do tipo “Eu e a Nandinha se amamos-se muito”/Eu e a minha esposa se damos-se bem”, ou ainda, “Se feri com faca”/ “Se rasguei com lâmina”?
Ora, se considerarmos os três enunciados acima exemplificados, claramente, podemos notar que os seus anunciantes, apesar de actualizar a língua portuguesa, não têm domínio suficiente das regras de conjugação verbal reflexiva e recíproca. Pois, é um problema de falta de competências linguística e comunicativa para moldar enunciados com este tipo de conjugação! (Sobre as competências tanto linguística como comunicativa, aconselhamos a ler HYMES).
Entretanto, os enunciados produzidos via oral por nossos concidadãos, citadinos ou não, que vos colocamos acima são agramaticais sob ponto de vista da norma padrão. A norma padrão do Português em Moçambique é a mesma do Português europeu (PE), como dissemos atrás.
No primeiro grupo de enunciados, trata-se de construções que recorrem aos verbos reflexivos/pronominais com o valor recíproco, em que se pode empregar expressões reforçativas como um ao outro, reciprocamente, mutuamente, entre outras a estes equivalentes.
Preste-se atenção a “Encontramos-se amanhã. Já é tarde”, ou a “Eu e a Nandinha se amamos-se muito”/ Eu e a minha esposa se damos-se bem”.
Observa-se que, no primeiro caso, o emissor pretende partilhar com o seu interlocutor situacional uma informação dominada por ambos (marca-se um novo encontro que será uma continuidade de assuntos não concluídos no dia anterior àquele e argumenta-se depois o motivo que deve ditar a interrupção da conversa) e, no segundo, estamos perante uma situação em que duas pessoas de géneros diferentes se amam e se dão bem.
Contudo, os emissores desses enunciados complicam-se no discurso, observadas as regras da língua em apreço. Se calhar, ser-lhes-ia fácil e económico articular enunciados como “Encontramo-nos amanhã…porque (e outros conectores linguísticos aceitáveis) ….” ou “Eu e a Nandinha amamo-nos (nos amamos) muito” / “Eu e a minha esposa damo-nos (nos damos) bem” em relação ao que se observa no nosso “guês”.
Para o segundo grupo, Cunha & Cintra (2000:383), abordando a questão da voz reflexiva, escrevem que “exprime-se a VOZ REFLEXIVA juntando-se às formas verbais da voz activa os pronomes oblíquos me, te, nos, vos e se (singular e plural)”. E demonstram isso com os seguintes exemplos (i) Eu feri-me (ou me feri) <= a mim mesmo>; (ii) Tu feriste-te (ou te feriste) <= a ti mesmo>; (iii) Ele feriu-se (ou se feriu) <= a si mesmo>; (iv) Nós ferimo-nos (ou nos ferimos) <= a nós mesmos>; (v) Vós feristes-vos (ou vos feristes) ( a vós mesmos)
e (vi) Eles feriram-se (ou se feriram) <= a si mesmos>.
Como se pode depreender da amostra com que nos brindam Cunha & Cintra, as construções como as que ouvimos dos falantes do PM evidenciam por si mesmas a ausência de uma competência linguística e discursiva, dificultando ao emissor a sua enunciação. Senão vejamos:
É mais fácil construir e pronunciar “Feri-me (ou me feri) com faca” que “Se feri com faca” e “Rasguei-me com lâmina” que “Se rasguei com lâmina”, conforme ditam as regras gramaticais.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley (2000). Nova Gramática do Português Contemporâneo: Lisboa. Edições João Sá da Costa, 2000.
FARIA, Isabel Hub (Org); PEDRO, Emília Ribeiro; DUARTE, Inês & GOUVEIA, Carlos A. M. (1996). Introdução à Linguística Geral e Portuguesa: Lisboa. Editorial Caminho, SA.
* Docente de Português e Linguística, Llcenciado em Ensino da Língua Portuguesa e mestre em Educação & Ensino do Português (Sociolinguística), pela Universidade Pedagógica em Maputo e técnico pedagógico na Direcção Provincial de Educação e Cultura de Sofala

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