Graça Machel, em Grande Entrevista, analisa o actual momento político
A ex-primeira dama de Moçambique diz que se estão a concentrar os problemas do país no Presidente, que não vê os ministros assumirem as suas responsabilidades; que fizeram o mesmo com Samora Machel.
A senhora está a montar, em Maputo, um instituto para crianças pequenas que levará o nome da sua neta de sete anos, o Instituto Zizile. Qual é o seu propósito?
O Instituto para o desenvolvimento da criança, Zizile, foi criado em Fevereiro deste ano e é o culminar de um longo processo de reflexão que venho fazendo sobre a qualidade da minha contribuição para a implementação integral dos direitos da criança no nosso país. Venho trabalhando, quer no país, quer no mundo, neste domínio há vários anos. Sinto que tenho o dever de trazer subsídios adicionais, que nos permitam, como sociedade, entendermos com profundidade as dimensões, a magnitude e a amplitude do que é o desenvolvimento de uma criança. Daí que escolhi o nome da minha neta, simbolicamente querendo dizer que aquilo que eu desejo para a minha própria neta, aquilo que eu vejo nela como seu crescimento, é aquilo que eu quero e desejo para toda e qualquer criança moçambicana, independentemente da sua origem social, localização, condições materiais com as quais a criança cresce. todos nós temos a obrigação de proporcionar as melhores condições para que o seu desenvolvimento seja integral e harmonioso.
Numa das suas intervenções, questionava quem dirige a 1ª Infância no país e que mais de 85% das crianças órfãos não são assistidas pelo Estado, em Moçambique...
Só nestes dias em que estivemos a trabalhar no seminário que promovemos, ficou muito claro que existem reflexões a nível dos ministérios, mas parece-nos que as coisas estão fragmentadas, estão a funcionar de forma vertical, não há uma perfeita interacção e simbiose. A criança não está dividida entre aquilo que os ministérios da Acção Social, Saúde e Educação estão a fazer. As acções devem estar tão integradas independentemente das instituições do Estado, que esteja a promovê-las. E neste momento, não há clareza de quem toma a liderança. as instituições todas vão para baixo, trabalham com seus quadros e técnicos, mas a nível central, há necessidade de haver um organismo que toma a liderança e todos os outros contribuem na sua área de especialidade, havendo um ponto central que assume a responsabilidade, para que daqui a 20, 30 anos, possamos dizer que este é o tipo de cidadão que projectamos com todos os requisitos, para que esteja integrado totalmente na sociedade, no século em que estamos.
Legado para meus filhos
Toda a sua vida foi de activismo político e social. Nos últimos tempos, entrou na vida empresarial, como Presidente do Grupo Whatana. É um novo activismo, o económico? Abandonou o activismo social? Será uma ruptura na sua trajectória?
Felizmente, na minha vida não existem rupturas, sinto que fui evoluindo, mesmo na maneira como faço abordagens sobre os direitos das crianças. O facto de eu estar envolvida no activismo económico tem duas facetas, mais do que liderar um grupo económico moçambicano, estou a liderar um movimento africano para o empoderamento das mulheres na área económica. Estou numa fase em que entendo que essas conquistas são fundamentais, mas não são completas. Há necessidade de as mulheres terem poder económico para que possam tomar decisões sobre como querem gerir a sua vida. Os direitos políticos e sociais não são suficientes sem acesso aos recursos económicos, que permitem fazer escolhas e opções na vida. Estou, de facto, numa fase em que compreendo isso melhor e dou a minha contribuição.
A Wathana ainda não realizou metade das coisas que temos em mente. Não nos posicionamos apenas como um grupo que vá fazer dinheiro, talvez venhamos a fazer, mas posicionamo-nos como um grupo que vai criar espaços para jovens que tenham ideias, iniciativas e que queiram fazer a sua marca na área económica. Então, a Wathana vai trazer este espaço para o desenvolvimento de uma classe empresarial de jovens, jovens que não precisarão, logo à partida, de recursos materiais, o que eles precisam são ideias e garra para fazer as coisas.
A própria Zizile, criei esse instituto com os meus filhos. Os membros fundadores são meus filhos biológicos, mas também filhos que, ao longo da minha carreira, se identificaram tanto comigo que me chamam de mãe no verdadeiro sentido. Isto constitui o meu legado, não vou ter recursos materiais para deixar para os meus filhos, mas quero deixar-lhes uma causa. Eles vão abraçar a causa do desenvolvimento da criança moçambicana como um dever deles próprios. Até porque eles foram crianças privilegiadas e o privilégio traz sempre responsabilidades. Então, quis que institucionalmente os meus próprios filhos reconhecessem que pelos privilégios que eles tiveram, precisam de partilhar, criar condições para que outras crianças tenham. Aí, já não serão privilégios, mas sim direitos em exercício.
Aterrada com a qualidade do ensino
Foi ministra da Educação durante 14 anos, num contexto específico de muitas dificuldades. Agora, vive-se outro momento, temos 38 universidades, que formam tudo mais alguma coisa, mas ninguém está satisfeito. A própria Graça Machel disse, recentemente, que há falta de alinhamento entre as necessidades prioritárias de desenvolvimento do país e as ofertas das nossas universidades.
“Algumas daquelas coisas podiam ter sido evitadas se a comunicação fosse maior, regular e consistente”
Graça Machel, em Grande Entrevista, analisa manifestações de 1 e 2 de Setembro
Graça Machel diz que as manifestações de 1 e 2 de Setembro são resultado de existir um número muito reduzido de pessoas que têm um nível de vida alto, comparado com a maioria dos moçambicanos
Não estaremos numa situação de formar por formar?
O sistema de Educação cresceu e tinha de crescer à medida das possibilidades do país, mas para ser honesta, preocupam-me muito os níveis de qualidade do ensino no país. Muito recentemente, tomámos conhecimento de escolas onde havia reprovações em massa. Depois de receber esta informação, fiquei aterrada. E digo mais, ainda estamos a fazer a formação de professores da décima classe mais um. Destas décimas classes, formamos um professor que vai formar alunos do ensino secundário. Estou profundamente preocupada! Reconheço os avanços alcançados pela sociedade e pelo Estado, mas partilho as preocupações que eu tenho com a qualidade do ensino. Estes jovens que saem das nossas escolas são aqueles que poderão realizar tarefas mais complexas na área científica. Mas, nós só pensamos em bens materiais. Devemos preocupar-nos com o saber, para que nós, como sociedade, estejamos devidamente integrados, neste século XXI. Insisto nisto porque quando digo século XXI, o mundo já atingiu níveis altíssimos no domínio científico e não podemos continuar atrasados. Temos que enfrentar os desafios de uma economia pouco desenvolvida, mas, precisamente por isso, com altos investimentos nas pessoas que nós formamos. Essas são as pessoas que vão tirar este país da pobreza.
E acha que não está a existir essa preocupação nas pessoas?
Eu não disse isso, disse que estava profundamente preocupada com a qualidade do ensino. Temos que reflectir profundamente neste aspecto. Porque os nossos jovens podem acreditar que têm o conhecimento correspondente ao exigido pelo mercado, quando na verdade não.
Acha que existe este realismo na abordagem das políticas de Educação?
Acho que existe, mas não tenho a certeza. O realismo em termos de constatar os factos, constatámos. Mas, não estou segura em relação às estratégias de correcção destes factos, de enfrentar estes problemas. E não estou a criticar ninguém, estou a dizer que estou profundamente preocupada.
Na sua óptica, o sistema de formação está alinhado com as nossas prioridades?
Na estruturação dos sistemas de Educação, temos vindo a fazer esforços no sentido de criarmos os cursos para áreas que identificamos como prioridade para o desenvolvimento, mas acho que aí ainda há muito trabalho por fazer. Por exemplo, agora temos uma indústria extractiva e, de repente, já somos uma referência mundial. Será que estamos a formar os técnicos necessários para sustentar essa indústria? Quem faz as prospecções dos nossos recursos? Quem dirige as operações de extracção desses recursos minerais? Qual é o grau de transformação destes recursos no nosso país? Para que não criem apenas emprego, mas, sobretudo, para gerar as bases de uma indústria manufactureira. Exportamos quase todos os nossos recursos em forma bruta. Temos que olhar para a formação dos moçambicanos. Não sei quantos geólogos, engenheiros de minas temos, aqueles que estudam o terreno, abrem as minas e realizam todas aquelas operações complexas. Estamos a formar estes quadros? As multinacionais trazem os investimentos, mas a nível do saber, nós é que devemos estar na dianteira.
Acha que nos está a faltar clareza?
Estamos a precisar de muito mais diálogo entre nós, consensos entre nós. Porque estas estratégias de desenvolvimento não são do governo apenas, todas as forças vivas da sociedade têm ideias positivas, construtivas para esse efeito. Penso que podíamos debater mais, discutir mais estas ideias e depois o governo implementar.
Presidente está isolado
Este ano, tivemos manifestações a 1 e 2 de Setembro de 2010, tal como as tínhamos tido a 5 de Fevereiro de 2008. Vários analistas disseram que elas eram resultado da distância entre os que governam e os governados. Partilha dessa posição?
Eu não partilho das ideias dos outros, tenho as minhas ideias sobre o que aconteceu.
E quais são as suas ideias sobre o que aconteceu?
Os factores são muitos, explodiram e vieram à superfície naquele período. Há factores que são da conjuntura económica do país e outros da conjuntura internacional, mas também há factores que se devem aos canais de comunicação entre nós, porque algumas daquelas coisas podiam ter sido evitadas se a comunicação fosse maior, regular e consistente. Acho que há um esforço muito grande que o nosso presidente faz para comunicar, quando ele faz as presidências abertas. Mas, sou de opinião que aquilo não é suficiente, é necessário que nós outros, não só membros do governo, os deputados... tenhamos um exército de deputados, não sei quando é que os deputados comunicam com a sociedade, só sei que eles têm aquele canal de visita aos seus círculos eleitorais. Não sou muito a favor daquela monitoria que o deputado faz ao governo, um deputado tem a responsabilidade de educar o público, o seu círculo eleitoral. Gostaria de ver os deputados a encorajarem os adultos nos seus círculos, a participarem nas aulas de alfabetização e a explicar a importância deste acto. Mostrar os índices de alfabetização naquele distrito e no fim de cinco anos dizer com orgulho, que baixámos o nível de analfabetismo neste ponto do país.
Fez uma abordagem distintiva entre o Presidente, o governo e os parlamentares...
Não faço distinção, estou a dizer que não vejo, é possível que eu esteja enganada. Eu vejo o presidente a fazer as presidências abertas, a discutir, a ouvir do povo. Mas, gostava de ver aquilo dos ministros e no mesmo grau de debate, de discussão e de resolução dos problemas dos agricultores, dos trabalhadores das indústrias, das pesca, etc... Quando o Presidente fala numa certa comunidade, toda a nação escuta. Os ministros devem falar nos vários sectores para o país ouvir e compreender melhor as suas estratégias. Nesta batalha contra a fome, não os vemos. Para os entender é preciso ir à internet, mas quantos milhões de cidadãos não vão à internet? Estamos numa sociedade onde é preciso falar alto e muitas vezes, por parte dos ministros e dos deputados.
Pode ser mais explícita?
Eu não gosto da ideia de isolarem o Presidente e fazerem dele o único responsável pelos problemas deste país. Eu tenho autoridade para falar disto porque já tive um marido presidente, fizeram isto com Samora, isolaram-no. Não se pode concentrar as responsabilidades e os desafios do nosso país numa só pessoa, isso não é positivo. E como disse, já vi isso acontecer directamente.
Acha que se está a repetir?
Acho que sim. Que venha alguém dizer que é mentira.
Distribuir melhor a renda
Toda a gente diz que a renda está mal distribuída e nas mãos de poucos, o que propicia a ocorrência de convulsões sociais. Como fazer com que os ganhos do crescimento económico do país cheguem a todos ?
Não sei quais são as estratégias, mas a verdade é uma: precisamos de descobri-las. E é um facto que existe um número muito reduzido de pessoas que têm um nível de vida alto, comparado com a maioria dos moçambicanos e que isto nos coloca numa posição de sermos distinguidos e separados do resto do povo. Não sei qual é o segredo para resolver isto. Mas, a distribuição da riqueza no país tem de ser feita. É preciso descobrir o segredo para a construção de uma classe média forte e termos clareza em relação aos escalões e aqueles que têm mais, pagarem mais impostos. Não sei se pagamos os impostos de uma maneira justa, que seja correspondente às nossas rendas.
Nas comemorações do 19 de Outubro deste ano, a Dra. Graça Machel disse que há dirigentes que ostentam muito. Que mensagem estava a transmitir?
Acho que uma coisa é termos os recursos que nós temos, a outra coisa é ostentarmos os recursos que não temos. Eu, por exemplo, tenho uma fraqueza: conduzo-me a mim própria, em carros que não são baratos. A verdade é uma: não comprei aqueles carros, foram me dados e não os podia recusar. O que quero dizer é que, aos olhos da população, quando conduzo aquele carro e vou para a minha aldeia, uma aldeia que ainda nem água tem, as pessoas questionam-se: quantos poços de água seriam obtidos com o custo do carro no qual me faço conduzir? Se eu gosto ou não, é outra coisa. A verdade é que a sociedade questiona estes aspectos e está no seu direito.
A outra coisa é que a sociedade tem o direito de questionar, é que nem sempre fica muito claro como foram adquiridos esses meios que ostentamos, se foi por vias lícitas.
Estou a querer dizer que quando me coloco na pele do cidadão, tenho que aceitar que é justo que esse questionamento seja levantado. Então, cabe a nós provar, quando a pessoa serve ao público, deve provar. Daí que falo de transparência. Estou a falar dos servidores públicos. Porque o privado que faz a sua fortuna através da sua indústria, é uma coisa, mas o servidor público tem um compromisso com o público, tem a obrigação de ser transparente.
Acha que está a faltar esta transparência?
Estou a dizer que nós como sociedade precisamos disso, de uma maior transparência. E vai ser tranquilizador para os próprios funcionários, porque se isso acontecer, vão poder circular à vontade pelas nossas aldeias, escolas, bairros.
O combate à corrupção foi uma das bandeiras da actual governação. Há, no entanto, uma sensação de impotência e descrença sobre o real efeito dessa luta, em Moçambique. Quase todos temos a sensação de que não se faz nada ou, se se faz, devia fazer-se mais ainda. O que pensa deste tema?
Acho que há dois problemas: o primeiro é que o governo estabeleceu as políticas de luta contra a corrupção. Veja bem, todos os anos, o número de polícias e funcionários públicos que foram expulsos, que foram despromovidos! Mas, acho que o governo não está a comunicar como deve ser os seus feitos, a mensagem não está a passar.
Saí da política activa
Ainda é vista como uma das reservas morais da Frelimo e há ainda quem a veja como uma boa solução para a liderança do país. Aos 65 anos, sente-se com força para avançar se o partido a indicar ou manterá a ideia de ficar à margem de voltar para a política activa, como tem dito, várias vezes?
Não! Nem a nível pessoal, nem a nível do partido existe qualquer contemplação dessa possibilidade. Eu saí da política activa, à excepção do Comité Central. Em relação às outras instituições, a sociedade sabe, saí de ministra em 1989, saí da Assembleia em 1993, quando foi dissolvida para preparar as eleições gerais. Conscientemente, decidi que a minha intervenção vai ser no âmbito social e ninguém me forçou, tomei a decisão conscientemente.
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