sábado, 25 de agosto de 2012

Memórias de Sérgio Vieira - 2

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Sobre a «Voz da Quizumba»

Sérgio Vieira deve ser dos poucos autores que após um esforço titânico de trazer à estampa um volumoso livro, acha necessário lançar “avisos à navegação” logo nas primeiras páginas, alertando os incautos de que poderão deparar com “deficiências involuntárias” para depois pedir que seja considerado como “fonte primária”, mas “capaz de errar”, frisando que, se “deturpou”, não o fez “deliberadamente”. Bem escorado, o autor não esclarece, porém, se a memória apenas o atraiçoou à medida que iam recuando nos anos, ou se lhe pregou partidas também em outras épocas. 
Mas ao leitor atento, fácil é descortinar que a maleita de que padece o autor é imprevisível, manifestando-se quer quando recorda a fase da adolescência em Tete, dizendo, por exemplo, (p. 57) que a central local “pertencia a um privado, o senhor Serras Pires, que depois a vendeu ao município" (na realidade este velho colono apenas tinha um contrato com a Câmara Municipal, entidade que lhe havia alugado a central); ou quer ainda quando as reminiscências reportam-se à fase de estudante universitário, em que afirma que, ao ir “de férias a Tete de Julho a Setembro de 1961”, Baltazar da Costa Chagonga encontrara-se com ele “por acaso, no bar do Christos & Luskos”. (p. 144) Como assim, se logo após ter saído da cadeia em Maio de 1960, Chagonga passara a viver exilado no Malawi?
Depois de ter metido os pés pelas mãos no concernente à disputa Mondlane-Cuba, o autor de “Participei, por isso testemunho” refere que “o nosso relacionamento com Cuba teve, a meu conhecimento, apenas um momento de inquietação” devido a uma proposta apresentada a Moçambique por um alto dirigente cubano visando a criação de um governo do Zimbabwe no exílio a partir do território moçambicano. (p. 632).
Posteriormente, segundo o autor, veio a saber-se que a proposta não tinha o aval de Fidel Castro.
Na realidade, não foi este o único “momento de inquietação” nas relações entre os dois países. Uns anos depois, Samora Machel ordenaria a expulsão do chefe da missão militar cubana em Moçambique por ter tentado obter informações confidenciais sobre a política do regime da Frelimo em relação ao ANC, servindo-se para tal do contacto que estabelecera com a secretária particular do chefe de Estado moçambicano. De imediato, a secretária alertou a segurança moçambicana para a tentativa de espionagem. Apanhada com a boca na botija, a Embaixada de Cuba em Maputo desfez-se em desculpas, alegando que o chefe da missão militar cubana agia por conta própria, havendo até suspeitas que trabalhava para uma potência estrangeira. Prometeu a embaixada que o irreverente diplomata seria repatriado sob prisão para Havana e destituído dos cargos que desempenhava nas FAR.
Quando, mais tarde, uma delegação do Ministério de Segurança-SNASP efectuou uma visita de trabalho a Cuba viria a constatar que a explicação que havia sido dada pela embaixada era redondamente falsa. Enquanto tomavam uma refeição em Varadero, os membros da delegação moçambicana ficaram perplexos ao reparar que numa mesa uma pouco afastada estava o antigo chefe da missão militar cubana em Moçambique, não mostrando indícios de ter passado por nenhum mau bocado, tendo sido apurado que permanecia no desempenho de funções.

A páginas 420 do seu livro de memórias, o autor afirma que “com o apoio do Governo de Salisbúria, Cristina iniciara violentos ataques de propaganda radiofónica contra o nosso Estado já nos finais de 1975, através da chamada Voz da África Livre, que o povo aqui apodava Voz da Quizumba”. Na página 422, o autor fornece uma data diferente, afirmando que “a Rodésia e o grupo ultracolonial, com Orlando Cristina à cabeça, haviam criado em meados de 1975, umas semanas após a nossa independência, a Rádio Quizumba.”
Na realidade, a emissora não foi criada nem em meados de 1975 nem nos finais deste ano. Nem tão pouco foi Orlando Cristina quem a criou. E contrariamente ao que alega o autor, não foi o povo que “apodou” a estação radiofónica de “Voz da Quizumba”, mas sim o Departamento de Trabalho Ideológico (DTI) da Frelimo. A Voz da África Livre foi para o ar pela primeira vez a 5 de Julho de 1976. Cristina só viria a assumir controlo editorial da rádio em Agosto desse ano.
Retomando a falsidade e a mentira crassas do departamento ideológico da Frelimo, em tempos propaladas através da AIM, o autor afirma que no “indicativo musical dessa rádio surgia uma canção colonial racista, Kanimambo (Obrigado) Como o Negro Diz!” (p. 422)
O indicativo musical da Voz da África Livre era “Moçambique” e não “Kanimambo”, embora esta canção fosse ocasionalmente radiodifundida pela emissora. Ao invés do que escreveu Sérgio Vieira, da versão “Kanimambo” transmitida pela Voz da África Livre não constava “Como o Negro Diz”.
O timbre de “colonial racista” não se ajusta a nenhuma dessas canções nem, por inerência, ao autor das respectivas letras, o poeta moçambicano Reinaldo Ferreira, considerado por figuras como José Régio e Vitorino Nemésio como um dos expoentes da poesia lusófona. Da obra de Reinaldo Ferreira constam poemas como “Menina dos Olhos Tristes”, que inspiraria o famoso cantor antifascista, Zeca Afonso, a compor uma balada contra a guerra colonial, mas que a censura/exame prévio do regime de Marcelo Caetano proibiu.
A publicação póstuma da antologia poética de Reinaldo Ferreira coincidiu com a presença de Sérgio Vieira em Lisboa, pormenor que, pelos vistos, passou despercebido ao autor, provavelmente devido à sua sobrecarregadíssima agenda de universitário, a par das extracurriculares peregrinações noctívagas pela Avenida Duque de Ávila, Praça da Alegria e Rua da Glória. (pp. 134-135) (Redacção)
CANALMOZ – 23.03.2010

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