MOÇAMBIQUE
Ntelela (ex-Nova Viseu): campo de extermínio
Ntelela
é um nome topográfico que evoca, no subconsciente colectivo de quem
viveu em Moçambique os anos do apertado regime marxista, ressonâncias
sinistras semelhantes àquelas que suscitam nomes como Sibéria, Gulag,
Auschwitz … porque se trata de um campo de extermínio, do
A Freira Damásia Colombo nas ruinas de Ntelela
qual dificilmente se saía vivo.
Uma
sensação que se tornava sempre aguda para mim cada vez que, com o padre
Fernando Rocha, missionário da Consolada, passava na área de floresta
que encerrava o segredo de Ntelela. Era então espontâneo falar do padre
Estevão Mirassi, de Joana Simeão, fundadora de um partido de oposição,
de Ché Mussa, chefe islâmico de Lichinga, todos desaparecidos no nada
após a deportação para Ntelela.
Um
grande desejo era o de alcançar o referido campo de reeducação
política, mas à volta dele reinava o segredo mais absoluto. Até que um
dia, uma pessoa, sabendo que queriam apenas ir celebrar uma santa Missa,
revelou o segredo indicando a pista existente além de um bocado de
floresta.
Superado
o medo de transitar numa estrada minada, com o padre Rocha e três
cristãos, pusemo-nos a caminho para Ntelela. Após uma vintena de
quilómetros encontramos a estrada, mas uma ponte destruída nos obrigou a
prosseguir a pé. Apenas passado pouco mais de um quarto de hora surgem
os primeiros sinais de presença humana: pareceu-nos vislumbrar sinais de
valas comuns em terras que pareciam cultivadas.
Estávamos
certamente na área dos trabalhos forçados dos detidos que não eram
importantes. Avançamos e encontramo-nos num descampado: uma pista de
aterragem para pequenos aviões e, ao longe, edifícios degradados.
Ntelela: era um pequeno posto avançado militar português transformado em lager pela Frelimo. Um dos mais terríveis campos de reeducação criados para arrasar a resistência dos opositores políticos.
Um
aperto de coração se apoderou de nós, ninguém falava. Tinha-se a
impressão de calcar um terreno sagrado, impregnado de sangue. Cedo
tropeçamos no arame farpado cujos suportes de madeira, apodrecidos,
caíam um atrás de outro. A área parecia tecida como uma teia de aranha
daquele maldito arame.
Um
acompanhante nos revelou como decorreu um dia no campo quando esteve ao
serviço de um comandante militar que, um dia, pernoitou no campo
enquanto viajava para Lichinga. Foi ele a explicar-nos que, no fim do
campo, devia estar qualquer coisa porque tinha observado que os guardas
acompanhavam detidos que saíam debaixo, para talvez irem aos serviços
higiénicos. Dirigimo-nos para lá e vimos uma escadinha que conduzia a
uma fossa cimentada: um bunker - prisão?
O
homem olhou empedernido e questionava-se como daquele buraco podiam
sair e entrar toda aquela gente que tinha visto. Noutro edifício estavam
as celas de rigor onde os prisioneiros eram amassados como animais. As
construções estavam vazias, depredadas do mobiliário, se existia, das
portas e janelas e do teto de lâminas de zinco, algumas das quais
estavam ainda espalhadas no vasto espaço defronte.
Aqui
e acolá, nos pátios, bidões enferrujados que devem ter sido utilizados
como panelas, cacos, pedaços de ferro. Experimentei recolher alguma
preciosidade, ma senti-o como ferro incandescente na mão. Ficamos
calados.
Cada
um de nós pensava nas notícias de tortura e eliminações sumárias
filtradas naqueles anos e a quanto tinha revelado um semanário
moçambicano pouco tempo antes. Com engano foram carregados sobre um
camião um considerável grupo de prisioneiros dizendo-lhes que se ia para
a liberdade e em vez disso foram queimados vivos numa vala comum
escavada num dos tantos trajectos secretos que conduziam ao campo.
Será
verdade? A notícia não foi desmentida pelo governo, aliás o presidente
Chissano, mesmo nesses dias, convidava a não exumar “os esqueletos” para
não desencadear violência e vinganças.
À
saída do campo olhei o céu: era um dia esplêndido. Também o local,
sobre um planalto, podia ser um paraíso mas em vez disso tinha sido um
inferno.
Enquanto
avançava através do caminho, o olhar caiu sobre uma moita florida:
flores maravilhosas, nunca vistas. Parei. Recolhi-as. Senti pulsar a
vida. Tanta dor não será em vão: então, só então, consegui rezar.
11 Dezembro 1995.
Não pude participar na santa Missa em Ntelela., concelebrada pelo bispo
Dom Luís Gonzaga e por vários sacerdotes missionários, porque, alguns
dias antes, partira para a Itália. No entanto entrei em contacto com
soror Giuseppina Teresa Buzzella e através dela tive notícias sobre o
evento.
Naquele
dia estavam também presentes a mãe e os irmãos do padre Estevão
Mirassi, uma das vítimas, detido e levado embora sem processo: não se
soube mais nada dele, nem sequer a comunicação oficial da sua morte. Os
familiares, como centenas de outras famílias, esperaram em vão durante
anos. Entre os presentes estava também um ex-guarda carcerário, não
cristão, que testemunhou e confirmou as muitas crueldades da tortura e
as eliminações à traição. Não queria participar nas celebrações para não
arriscar. No poder de facto ainda estão os mesmos homens, e o
famigerado director do campo, que se vangloriava das suas atrocidades,
ainda está no activo. Mas na noite tinha sonhado com uma mulher vestida
de branco que lhe disse para não ter medo…
Um
momento eucarístico comovente foi o do Pai Nosso. “Perdoai-os como nós
perdoamos…”. Perdoar, mas não esquecer a lição da história para que
jamais o homem se manchará de tanta criminalidade.
Por
muitos anos, o regime obrigou crianças e adultos a desprezar pessoas
como Joana Simeão, Uria Simango, Cavandame, como se quase fossem
criminosos e não vítimas de uma ideologia de estado que não hesitou
eliminar, torturar e deportar inocentes nos campos de extermínio. Como
esquecer as duas levas de gente, em meados dos anos 70, nas quais
milhares de mulheres, incluindo mães de família e rapariguinhas, foram
deportadas, acusadas injustamente de prostituição? Ou então a Operação
Produção de 82 quando 70.000 pessoas do sul foram aviadas na Sibéria
verde do norte onde mais de metade morreu de miséria? Muitos dos
sobreviventes regressaram a casa, por obra especialmente da Caritas, mas
muitíssimos vivem ainda no Niassa, desenraizados e mal tolerados.
Ora no País regressou a paz. O povo está seriamente empenhado na reconstrução, mas as feridas são tão difíceis de cicatrizar.
Queira
o Céu que este povo não seja esquecido e encontre uma autêntica
solidariedade, não aquela fingida que faz regressar à origem os bens,
como várias vezes foi denunciado por missionários e por sérias
organizações humanitárias. Mas aquela autêntica que ajuda o povo a ser
protagonista do seu desenvolvimento, em plena harmonia e respeito pela
própria cultura e tradições.
soror Dalmazia Colombo
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