Thursday, December 18, 2025

Sobre a imaginação política (4)

 Elisio Macamo

Sobre a imaginação política (4)
Fuga de cérebros e a erosão da interpelação crítica
A discussão sobre a fuga de cérebros em Moçambique costuma seguir dois caminhos pobres. Um é do moralismo sentimental que lamenta a partida dos “melhores filhos da nação” e o outro é o duma retórica de ultra confiança que afirma que o país não precisa de ninguém. Ambas evitam a pergunta essencial sobre o tipo de ambiente intelectual e institucional necessário para que alguém queira ficar. A fuga de cérebros não é apenas a saída de quadros altamente qualificados. É o sintoma duma cultura política que deixou de valorizar o espírito crítico, que não sabe reconhecer mérito, suspeita da inteligência e reage à interpelação como se fosse ofensa. A verdadeira pergunta nunca foi “porque é que saem?”, mas sim o que acontece aqui para que ficar ou regressar se torne uma experiência de desvalorização.
Entre nós, o pensamento crítico é interpretado politicamente, antes mesmo de ser examinado intelectualmente. A esfera pública tornou-se incapaz de separar argumentos de preferências partidárias e de análise de alinhamentos. A crítica é tratada como ameaça. O debate público deslocou-se para um espaço emocional, onde qualquer discordância é tratada como traição e qualquer perspectiva alternativa é rapidamente classificada como agenda. Este empobrecimento do espírito crítico não se deve apenas à fragilidade institucional. Decorre dum hábito cultural que desconfia da exigência e prefere o conforto da opinião. Quando se reage à crítica com ressentimento, cria-se, inevitavelmente, um ambiente tóxico para quem estuda ou questiona.
Esse ambiente não afecta apenas a academia ou a política. Chega a afectar a própria governação. A ausência de interpelação crítica empobrece a tomada de decisões, pois restringe o campo de visão do Estado às suas próprias convicções. Sem crítica pública séria, não há diagnóstico robusto e, sem isso, não há política pública eficaz. É por isso que a fuga de cérebros deve ser vista como consequência duma governação que se priva voluntariamente de controlo intelectual. Não me refiro a quem sai do país. Refiro-me a quem está no país, mas cala-se. Há gente completamente perplexa em funções importantes que deve doer a quem realmente sabe e está no país. Quando a crítica é tratada como afronta, o governante isola-se e, por via disso, acaba errando sozinho. A política torna-se uma conversa interna do poder consigo próprio, sem contraponto, sem debate metodológico e sem ideias concorrentes. Essa pobreza de interpelação é uma das causas estruturais da incapacidade de promover mudança substantiva.
Há também o problema da desvalorização pública do mérito. O país, dum modo geral, não premia qualidade. Premia lealdades e conveniências. Um quadro competente trabalha num ambiente que exige deferência e obediência. E quando a competência não é reconhecida, mas sim vigiada, a tendência natural é procurar ambientes onde a exigência seja valorizada, ou, para quem fica, ficar calado.
Tornei-me no académico que sou porque fui exposto à crítica rigorosa, metódica e intelectualmente honesta em contextos onde a crítica é entendida como parte da formação. Em Moçambique, raramente há espaços onde a crítica seja tratada como um instrumento de crescimento. A crítica desloca-se imediatamente para o plano pessoal ou político e torna-se suspeita. Não teria sido o académico que sou hoje se tivesse cultivado o meu conhecimento num espaço onde qualquer “Djuwawane” se sente no direito de questionar as minhas credenciais académicas por achar que tem uma opinião política diferente da minha. Se como queijo ou não, pouco importa para o debate de ideias. O que, noutros contextos, é uma ferramenta de maturação intelectual, entre nós, transforma-se em ameaça à identidade colectiva ou ao orgulho partidário. É natural, portanto, que muitos procurem espaços onde a crítica seja condição de progresso, e não risco de estigmatização. A fuga de cérebros (incluindo a dos que simplesmente ficam calados) pode ser o produto duma sociedade que não sabe o que fazer com a inteligência.
Esta realidade tem implicações directas para a governação. A incapacidade do Estado de acolher crítica séria faz com que ele se feche sobre si mesmo. Governa por reflexo e substitui assessoria informada por lealdades pessoais. O Estado torna-se refém da sua própria auto-suficiência e perde a capacidade de aprender com o país, uma capacidade que depende justamente daqueles quadros que se tornaram raros porque a esfera pública não tem lugar para eles. Nenhuma mudança governativa é possível sem corrigir a relação entre poder e crítica. A crítica não é adversária da autoridade, mas sim a sua fonte de inteligência. Sempre que pensarmos na mudança temos que nos interrogar até que ponto a nossa cultura política permite que alguém prospere intelectualmente dentro do país, ou dentro das suas estruturas políticas.
Precisamos de repensar esta relação para termos uma verdadeira imaginação política. Imaginar um futuro melhor passa por construir um ambiente em que o espírito crítico seja condição de progresso e não motivo de suspeita. As nações que aprenderam a valorizar a crítica tornaram-se mais capazes porque compreenderam que a inteligência é um recurso que se cultiva. E esse cultivo depende da coragem de aceitar que o pensamento independente é um aliado, não um inimigo. A seriedade dum projecto político mede-se também pelas condições que ele cria para que a interpelação crítica faça parte do funcionamento da política.

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