Thursday, December 18, 2025

Brincar com coisas sérias

 Elisio Macamo

2 h 
Brincar com coisas sérias
Um discurso, por muito bem conseguido que seja retoricamente, pode falhar por dizer coisas erradas. Outros discursos falham por não dizerem nada de relevante. O mais grave, porém, são os discursos que falham por tratarem como simples aquilo que é estruturalmente complexo, e como técnico aquilo que é, no fundo, político. O informe do Chefe do Estado inscreve-se nesta última categoria. Não é um discurso escandaloso, nem particularmente ofensivo. É, antes, um discurso que brinca com coisas sérias e, por isso, merece uma análise rigorosa. Nós temos a tendência de analisar mal este tipo de discurso. Os simpatizantes aplaudem a retórica da unidade e a enumeração de realizações, enquanto os críticos, por sua vez, concentram-se em lapsos factuais ou em omissões pontuais. O essencial, contudo, é avaliar o discurso enquanto acto político, isto é, enquanto exercício de responsabilidade pública num contexto de crise política profunda. Não pretendo estipular o que é um informe presidencial, para que serve, e por que razão, tanto mais que o Presidente gastou tempo precioso a fazer isso, mas interessa-me reflectir sobre o que significa abordar o país politicamente, e não apenas economicamente ou administrativamente.
Um informe presidencial, para mim, não é, nem devia ser, um relatório técnico ou uma peça de propaganda. Também não é mera formalidade constitucional. Trata-se dum acto político de alta densidade, no qual o Chefe de Estado deve três coisas fundamentais ao país: um diagnóstico honesto, a explicitação de escolhas e a assunção de responsabilidade. Não se trata de dizer tudo, mas de dizer o que importa, portanto, não de prometer, mas de explicar e não de tranquilizar, mas de dar sentido político à governação. O discurso desta manhã falhou aqui. Ele cumpriu o ritual, mas esvaziou a função. Confundiu prestação de contas com enumeração de virtudes, estabilidade com normalização e governação com gestão. O país foi apresentado como um sistema funcional perturbado por choques externos, portanto, pela violência, ciclones, manifestações, e não como uma comunidade política atravessada por conflitos de representação, déficits de confiança e problemas de autoridade legítima.
O discurso pareceu-me internamente coerente. Os conceitos se repetiam, as considerações alinhavam-se e a narrativa foi consistente. Mas isso é coerência retórica, não coerência política. Politicamente, o texto foi vazio porque evitou responder à única pergunta que realmente importa, nomeadamente, que problema político Moçambique tem hoje. Em nenhum momento se discutiu a crise de representação, a erosão da confiança nas instituições, a partidarização do Estado, ou a dificuldade do poder em aprender com os seus próprios erros. A instabilidade pós-eleitoral foi mencionada apenas como perturbação da economia, nunca como sintoma dum sistema político em tensão. A política apareceu como cenário, a economia, como motor e a governação, como técnica. Esta inversão pareceu-me fatal, pois, sem política, não há economia sustentável e, sem legitimidade, não há estabilidade duradoura.
Um dos traços mais reveladores do discurso foi a sua incapacidade, ou recusa, de nomear o conflito. Onde há violência armada em Cabo Delgado, fala-se genericamente em terrorismo e segurança. Onde há contestação social, fala-se em vandalismo e criminalidade. Onde há impasses institucionais, fala-se em limitações de recursos. O conflito é sempre deslocado para fora da política. Mas governar é, precisamente, assumir conflitos entre interesses, valores, prioridades e visões do país. Um Chefe de Estado politicamente responsável não ignora esses conflitos. Usa-os para explicar escolhas difíceis, custos inevitáveis e limites reais da acção governativa. Ao evitar esse terreno, o discurso optou pela neutralização política do país e isso não me parece prudência. É empobrecimento deliberado, ainda que inconsciente, do debate público.
O caso mais grave deste empobrecimento foi o tratamento, ou melhor, o não tratamento, dado à violência em Cabo Delgado. Trata-se da maior crise de segurança e soberania que o país enfrenta desde o fim da guerra civil. No entanto, o discurso evitou uma abordagem directa, substantiva e politicamente assumida do problema. Cabo Delgado não foi tratado como teste decisivo da autoridade do Estado, mas como mais um dossier entre outros. Este silêncio não é neutro. Ele revela a incapacidade de pensar Cabo Delgado como problema político nacional, portanto, como falha de integração territorial, de gestão de expectativas, de relação entre desenvolvimento extractivo e comunidades locais, de soberania partilhada com actores externos, enfim, como problema do próprio sistema político. Reduzir tudo isso a uma questão de segurança é brincar com algo demasiado sério para slogans institucionais.
Algo semelhante ocorreu com a chamada “independência económica”, apresentada como eixo central do mandato presidencial. O que o discurso descreve sob esse rótulo (industrialização, transição digital, gestão sustentável dos recursos naturais, diplomacia económica) não é independência, é normalidade. Trata-se do funcionamento básico de qualquer economia moderna minimamente organizada. O problema não é defender essas medidas, mas apresentá-las como se fossem um projecto político transformador. Não houve análise da dependência estrutural, nem reflexão sobre soberania fiscal, nem discussão sobre a relação entre Estado, capital estrangeiro e elites nacionais. Mais grave ainda, não houve qualquer referência séria aos casos da TotalEnergies e da Mozal, símbolos máximos do modelo económico moçambicano. Falar de independência económica sem falar destes dossiers é falar de economia sem falar de poder.
Durante a campanha eleitoral, slogans como “fazer diferente para ter resultados diferentes” e “vamos trabalhar” criaram expectativas de ruptura. Num informe presidencial, esperar-se-ia que esses slogans fossem traduzidos em critérios: diferente como? diferente em relação a quê? com que custos? contra que resistências? Nada disso aconteceu. Os slogans desapareceram. E isso é revelador. Eles serviram para mobilizar, mas tornam-se inconvenientes quando chega o momento da avaliação. Um discurso que evita os seus próprios slogans evita, na verdade, ser julgado pelos critérios que ele próprio propôs.
Eu abordo a política com base num esquema simples. Olho para os objectivos que se pretende alcançar, as medidas necessárias para esse efeito e as condições que precisam de ser criadas para que as medidas sejam eficazes. Visto sob essa perspectiva, a fragilidade do discurso torna-se evidente. Os objectivos são vagos e consensuais; as medidas são remetidas para outros documentos; as condições institucionais, políticas, culturais são praticamente inexistentes. Não se discute capacidade do Estado, incentivos perversos, cultura política, nem bloqueios estruturais. Governa-se como se a vontade bastasse. Ora, governar não é querer. É criar condições. E criar condições é um acto profundamente político, porque implica confrontar interesses, reformar instituições e aceitar perdas no curto prazo. Aqui vou um pouco mais longe: teria sido interessante saber o que o Presidente pensa fazer para lidar com o que neste momento é o principal obstáculo ao desenvolvimento e à estabilidade, a saber, a Frelimo e o seu modo de funcionamento. É verdade que aquele não era um momento partidário, mas o partido Frelimo é, neste momento, o proverbial elefante na sala.
No fundo, tudo isto aponta para o problema da pobreza da imaginação política. O discurso não imagina alternativas, não admite riscos, nem mesmo reconhece dilemas. Apesar de ter dito que reconheceria o que não fez, nada disso constou do informe. Só enumerou sucessos. A política foi tratada como administração eficiente do inevitável, não como espaço de escolha responsável. O povo foi invocado como fonte de legitimidade, mas nunca como parceiro adulto de decisões difíceis. Isto não foi apenas um problema do discurso. É um problema de cultura política. Nós somos reféns duma cultura que prefere estabilidade retórica a conflito produtivo, slogans a critérios, e gestão a responsabilidade substantiva. Mas países não se constroem com boas intenções; constroem-se com pensamento político sério.
Brincar com coisas sérias não é cometer erros. É recusar-se a pensar à altura dos problemas. Um informe presidencial deveria ajudar o país a compreender-se melhor, a nomear os seus dilemas e a aceitar que governar implica escolhas difíceis. Quando isso não acontece, o discurso pode ser aplaudido, mas o país permanece desarmado intelectualmente. É verdade que o nosso país precisa de crescimento económico e de eficiência administrativa. Só que esse não é o desafio. O grande desafio é a imaginação política, que se consubstancia numa responsabilidade substantiva e na coragem de dizer a verdade politicamente relevante. Ainda é o primeiro ano, por isso há tempo para corrigir isto. Se o actual Presidente não quiser ser uma versão retórica melhor do que tivemos nos últimos dez anos, vai ter de parar de confundir governação com gestão, porque isso é brincar, perigosamente, com coisas demasiado sérias. Vai ter que abordar o país politicamente, nomear o que não está bem politicamente e precisa de correcção, e abandonar os maus hábitos de fazer discursos triunfalistas.
Quem ler os discursos de presidentes moçambicanos nos últimos cinquenta anos não pode entender por que o país está como está. Ou, se calhar, pode por causa disso mesmo!
Mussá Mohamad Ibrahimo
Estava a espera... Entendo a demora, porque deve analisar com rigor e explicar de forma didática. Valeu a pena esperar.
Brazao Catopola
Professor, compreendo e bem a sua posição e até está certo dentro do nosso "prisma académico". Perfeita analise. Contudo, se pensarmos que no fundo o discurso da nação é, em último caso, uma justificação do exercício do poder do estado, então julgo ter sido de facto coerente com aquilo que foram as suas promessas eleitorais. O grande problema, caro Professor, é que a nossa elite política não concebe as questões que levanta como aspectos de construção do estado. Por consequência, governar é dar soluções para aquilo que o político concebe como problema e generaliza. Governar Nunca será analisar esses por si levantados. Eu dou mérito ao discurso nessa relação entre a promessa e o que se fez. Infelizmente, e isso sobre isso postei, também julguei o discurso como sendo em alguns momentos triunfalista e que ou nada fala sobre as manifestações, causas, etc. P
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Elisio Macamo
Brazao Catopola, compreendo, mas esse é justamente o problema. não fiquei com a impressão de que tivesse feito diferente de todos os outros. foi mais do mesmo. o problema de moçambique é político! o chefe de estado tem que falar sobre isso, mesmo que as pessoas queiram ouvir outras coisas. ele só vai representar a mudança real quando fizer isso. não podemos nivelar por baixo, já chega! a mozal está a fechar as portas, 6000 empregos vao desaparecer. porque não falou sobre isso, nem que fosse para dizer que não vai ceder às pressões?
Aly Caetano
E, no final de tudo, confiança renovada: quem confia em quem em Moçambique?
Manu Dos Santos Vilanculos
Professor, eu entendo que a posição aqui exposta parte de uma premissa discutível: a de que só há seriedade política quando o Chefe de Estado dramatiza conflitos, nomeia antagonismos internos e expõe publicamente fraturas estruturais.
Essa leitura confunde densidade política com a ideia de confronto e responsabilidade com exposição maximalista dos problemas. Num país que acaba de atravessar um ciclo eleitoral tenso, marcado por contestação social, fragilidade institucional e vulnerabilidades securitárias reais, a prudência discursiva não é empobrecimento político. É, antes, um acto deliberado de contenção responsável.
Um informe presidencial não é um seminário de teoria política nem um manifesto de ruptura. É um acto constitucional que deve equilibrar três exigências muitas vezes contraditórias: prestar contas, preservar a estabilidade institucional e orientar a governação. Exigir que esse momento seja o palco para a explicitação crua de todos os conflitos latentes pode satisfazer uma expectativa intelectual legítima, mas ignora a função sistémica do discurso presidencial num Estado ainda em processo de consolidação democrática.
O Presidente não falou como analista externo do sistema político. Falou como garante da continuidade do Estado. E isso faz diferença.
Alcídes André de Amaral
Isso mesmo, "brincar com coisas sérias". As vezes penso que é discurso do qual não somos porta-vozes...

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