Thursday, December 18, 2025

Sobre a imaginação política (1)

 Elisio Macamo

Sobre a imaginação política (1)
Uma linguagem para nos repensarmos
A instabilidade política que o país conheceu desde as eleições gerais de 2024 tornou evidente algo que estava a crescer há muito tempo e que consiste no esgotamento do nosso modelo político. O diálogo político inclusivo, que se tornou inevitável após a violência pós-eleitoral, é frequentemente interpretado como resposta a um impasse conjuntural. Mas, na verdade, esse diálogo tornou-se necessário porque o sistema já não consegue cumprir a sua função mais elementar de representar a pluralidade dos cidadãos, mediar conflitos, traduzir interesses e dar forma política a tensões sociais legítimas. A violência eleitoral foi apenas a superfície visível duma crise de representação que afecta os partidos, o parlamento, o governo, a administração pública e a própria legitimidade do Estado.
Quando um sistema político deixa de mediar, as ruas ocupam o seu lugar. Onde os partidos não representam, a sociedade fica sem voz e quando a administração pública deixa de servir o interesse público, o Estado deixa de ser Estado. Tão simples quanto isso. O que o país vive hoje é, portanto, menos uma crise de gestão e mais uma crise de imaginação política. Falta-nos a capacidade colectiva de conceber alternativas credíveis para além das rotinas institucionais herdadas. Falta-nos método para repensar a República, humildade para reconhecer os seus limites e coragem para encarar que a refundação do Estado é uma necessidade prática.
Este momento exige uma reflexão que vá para além da mudança de protagonistas e da rotação entre elites. Requer o esforço de reconstruir o vocabulário político que nos permita pensar com rigor aquilo que temos evitado durante anos, portanto, a fragilidade das nossas instituições, a pobreza do nosso modelo de governação, a incapacidade do Estado de agir estrategicamente, a erosão da cidadania e a ausência de mecanismos reais de responsabilização. Exige, sobretudo, um novo entendimento sobre o que significa governar um país em que as crises deixam de ser episódicas e passam a ser estruturais.
É neste contexto dum sistema político à procura de uma língua para se repensar que decidi fazer uma reflexão em série sobre a imaginação política. Não é para diagnosticar culpados, mas identificar padrões e abrir espaço para um pensamento que seja simultaneamente crítico e construtivo. É (mais) uma tentativa de sacudir o conjunto da esfera pública que, por décadas, se habituou a confundir slogans com estratégia e indignação com análise. O primeiro texto examina o fim da ajuda sueca e argumenta que as nossas reacções revelam mais sobre nós do que sobre a Suécia. A surpresa nacional torna-se metáfora da nossa dificuldade em interpretar o mundo politicamente. O segundo analisa a retórica da “independência económica” e mostra como a ausência duma teoria de mudança impede a tradução de promessas em governação. O terceiro reflecte sobre a fuga de cérebros e defende que a erosão do espírito crítico explica por que razão o país não consegue reter nem valorizar talento. O quarto discute Cabo Delgado e expõe a necessidade duma estratégia de segurança que articule política, economia e legitimidade institucional. O quinto retoma a questão dos grandes projectos para mostrar como a cidadania se perde quando o Estado abdica de representar comunidades e de regular interesses poderosos.
Tomados em conjunto, estes textos são um convite a pensar o país a partir da sua própria fragilidade institucional e da sua necessidade de reconstrução. Não se trata de propor utopias, mas de restituir ao debate público a imaginação que ele perdeu, a saber, a capacidade de conceber um Estado capaz de representar, mediar e proteger e de fazer isso com a lucidez que o momento histórico exige.
Quero aprofundar o que disse no comentário desta semana na MBC TV.

Sobre a imaginação política (2)

 Elisio Macamo

Sobre a imaginação política (2)
O fim da ajuda sueca e a pobreza da nossa leitura do mundo
A decisão da Suécia de encerrar a cooperação bilateral com Moçambique, tal como a recente retirada das garantias britânicas ao financiamento dos projectos de gás, parece ter apanahdo o país desprevenido. A reacção pública tem sido marcada por surpresa, indignação e interpretações moralizadas que oscilam entre a acusação de traição histórica e a suspeita de agendas ocultas contra o nosso desenvolvimento. Mas o facto de termos sido surpreendidos diz mais sobre nós do que sobre os suecos ou os britânicos. A questão central não é que a Suécia tenha saído, mas sim que Moçambique não tenha sabido prever a saída, interpretar os sinais, e enquadrar politicamente um acontecimento que faz parte do normal funcionamento de sistemas democráticos. Essa falha revela a insuficiência da nossa imaginação política.
O funcionamento dos sistemas políticos que hoje nos surpreendem é ditado por uma lógica de “accountability” que ainda não compreendemos plenamente. Nas democracias consolidadas, decisões de política externa, cooperação e financiamento não são tomadas em função de afectos históricos, discursos de solidariedade moral ou lealdades simbólicas. São decisões estruturadas por três elementos centrais, a saber, escrutínio público, competição política e responsabilidade perante contribuintes e eleitores. Quando uma democracia enfrenta uma alteração brusca no seu contexto, no caso, uma guerra na Europa, pressões orçamentais, mudanças de governo ou transformações na opinião pública, essas decisões ajustam-se. E ajustam-se rapidamente, sem necessidade de dramatização. A Suécia e o Reino Unido actuaram dentro desta lógica previsível de reavaliação de prioridades, resposta a pressões internas e tomada de decisões que, aos seus olhos, são politicamente responsáveis.
Nós, porém, sobretudo uma parte da nossa intelectualidade, interpretamos estas decisões a partir da gramática da soberania emocional, em que qualquer mudança externa é lida como julgamento moral, retaliação política ou abandono simbólico. Falhamos não por falta de inteligência, mas por falta de imaginação fundada na análise. A nossa incapacidade de distinguir entre política e moralidade leva-nos a projectar sobre os outros a lógica que usamos internamente. Já que entre nós as decisões públicas raramente respondem a constrangimentos institucionais e quase nunca são objecto de escrutínio real, presumimos que noutros lugares também não o são. Daí a surpresa e o ressentimento. Daí, também, a leitura moralista de acontecimentos que, para quem conhece sistemas democráticos, são rotineiros.
Seria menos grave se o problema fosse de interpretação. Só que não é. É também de estrutura mental. Entre nós, a política raramente é vista como sistema de relações, interdependências, incentivos e constrangimentos. É vista, sobretudo, como teatro, um espaço onde as palavras substituem as instituições e onde a vontade é tratada como capacidade. Esta forma de pensar torna-nos particularmente vulneráveis a leituras emocionais. Se a Suécia sai, é porque “nos traiu”; se o Reino Unido retira garantias, é porque “não quer o nosso desenvolvimento”; se a Europa muda de prioridades, é porque “despreza a África”. Não há aqui qualquer esforço de análise, há apenas uma moralização que conforta ao mesmo tempo que nos impede de compreender.
Esta moralização denuncia a fraqueza da nossa imaginação política. Porque imaginar politicamente não é fantasiar futuros idealistas, mas sim compreender a estrutura de relações em que estamos inseridos. É antecipar tendências, ler sinais, avaliar riscos e reconhecer que países, tal como pessoas, tomam decisões em função daquilo que os constrange. A Suécia não abandonou Moçambique. Ela reposicionou-se geopoliticamente num momento em que a Europa enfrenta uma crise de segurança sem precedentes. O Reino Unido não retirou garantias para humilhar o país. Retirou porque a sua política energética, ambiental e reputacional se transformou. Estes movimentos eram previsíveis, mas nós não os previmos. Não porque nos faltem dados, mas porque nos falta uma cultura política que valorize o método e a análise.
A pobreza da nossa leitura do mundo exprime-se, sobretudo, no facto de reagirmos apenas depois dos acontecimentos, como quem acorda com o impacto e tenta recuperar dignidade através de indignação. Reagir quando já é tarde demonstra falta de visão e demonstra também falta de imaginação. A imaginação política é aquilo que permite transformar acontecimentos externos em informação útil, e não em feridas simbólicas. É aquilo que impede que sejamos surpreendidos pelo óbvio. É aquilo que nos permite preparar o futuro em vez de lamentar o presente.
As decisões sueca e britânica podiam ter funcionado como alarmes, não da má-fé dos outros, mas da fragilidade das nossas instituições e do lugar incerto que ocupamos no mundo. Perderemos essa oportunidade se continuarmos a interpretar políticas públicas como agressões morais e relações internacionais como amizades de infância. O mundo não funciona assim. E, enquanto insistirmos em vê-lo como funciona apenas na nossa imaginação emocional, estaremos sempre desprevenidos. A imaginação política serve precisamente para traduzir o mundo real em possibilidade de acção.
Estas decisões externas obrigam-nos a confrontar a nossa própria falta de método assim como a nossa tendência para moralizar o que devia ser analisado. Se a soberania real for realmente tema entre nós, então vamos ter de abandonar o hábito da indignação e adoptar o da compreensão. Só assim seremos capazes de prever e agir. E só assim a ajuda que se retira deixaria de ser perda e passaria a ser aprendizagem.

Sobre a imaginação política (3)

 Elisio Macamo

Sobre a imaginação política (3)
Onde está o projecto de Independência económica?
Há um ano, anunciou-se um novo ciclo político sob a promessa de ruptura com o passado e de inauguração duma nova era. O discurso inaugural falava de “independência económica”, “modernização” e “fazer diferente para ter resultados diferentes”. Um ano depois, o país não dispõe dum único documento, discurso programático ou plano conceitual que explique como estas palavras se traduzem em transformação efectiva. O governo tem slogans, sim, mas ainda não mostrou a ninguém o seu projecto. Tem discursos de motivação (por exemplo, os recentes discursos presidenciais nos conselhos coordenadores), mas não tem teoria de mudança. Esse vazio não me parece acidental. Ele revela a fragilidade estratégica que caracteriza a nossa vida política e a razão pela qual continuamos a confundir vontade com capacidade.
A chamada “independência económica” tornou-se o principal slogan deste ciclo, repetido com convicção e dramatismo, mas nunca explicado. O que significa? De que instrumentos depende? Em que horizontes se enquadra? Com que actores se conta? Que reformas institucionais exige? E, sobretudo, que diagnóstico do país pressupõe? A resposta oficial a estas perguntas, que eu saiba, nunca foi dada. O que temos não passa de algo simbólico, onde independência económica aparece como estado de espírito, e não como arquitectura política. É tratada como resultado desejado, não como processo que requer escolhas difíceis e reformas profundas. Assim, o slogan, que podia ser um ponto de partida para uma estratégia nacional séria, acaba por funcionar como truque retórico que adia o debate essencial sobre a reforma do Estado que passa, para que conste, pela reforma profunda da Frelimo.
Nenhuma independência económica é possível sem um Estado capaz, sem instituições que funcionem, sem contratos transparentes, sem administração pública profissionalizada, sem separação nítida entre governo e Estado, sem justiça confiável e sem regras claras que vinculem o poder político. Nenhuma! O governo fala de independência económica como se dependesse de vontade, mas a independência real, a única que interessa, depende de institucionalidade. Só existe quando os mercados funcionam com previsibilidade, quando os investidores sabem que contratos serão respeitados, quando a economia doméstica não é capturada por interesses partidários, quando a política fiscal é racional e quando o poder executivo é limitado pela legalidade e pelo escrutínio. Nada disto existe por decreto. Tudo isto exige uma teoria de mudança.
O nosso problema estrutural é que o governo não tem uma teoria de mudança, ou pelo menos eu não a vejo em sítio nenhum. O governo ainda não explicou como quer transformar o Estado – analisei entrevistas de ministros aqui e não vi nada realmente programático – reformar a burocracia, profissionalizar a administração, reconstruir a confiança pública, diminuir a captura partidária, fortalecer instituições independentes ou criar condições para que a economia funcione com lógica própria. O governo fala de fazer diferente, mas não explica o que no modelo actual será abandonado, modificado ou reconstruído. Não há diagnóstico claro do que falhou, das razões pelas quais falhou, nem da maneira como as falhas podem ser corrigidas. O país vive suspenso num vazio conceitual onde tudo é vontade e nada é estrutura.
Assim, slogans como “vamos trabalhar” tornam-se simulacros de responsabilidade. Trabalhar em quê? Com que prioridades? Com que meios? Segundo que modelo de gestão pública? Noutros contextos, um governo que proclama uma mudança desta magnitude publica uma estratégia nacional (tipo “white paper”), uma doutrina política ou um plano estruturado de reformas. Aqui, temos apenas proclamações semanais e apelos a um esforço colectivo não enquadrado por diagnóstico, nem método. A ausência de método é, em si mesma, uma forma de desistência. Quando não se quer enfrentar a complexidade, proclama-se intenção.
A imaginação política, essa faculdade que permite conceber futuros possíveis com base em análise e responsabilidade, está ausente do governo. No seu lugar instalou-se uma estética da determinação, tipo uma liturgia da vontade, que substitui pensamento por moralismo. Mas nenhum país se transforma porque um presidente é determinado. Transforma-se porque um presidente é capaz de conceber um projecto político e construir consenso institucional para o executar. E consenso institucional não se constrói com slogans, mas sim com clareza de diagnóstico, rigor de prioridades e coragem em fazer reformas, sobretudo do poder político.
Ao fim dum ano, a ausência de projecto político começa a revelar as suas consequências que eram, de resto, de esperar dada a disfuncionalidade da Frelimo dos últimos dez anos. Decisões avulsas, incapacidade de enquadrar crises e, sobretudo, uma crescente distância entre expectativas e realidade. O país continua sem saber que tipo de Estado pretende construir, que tipo de economia deseja estruturar e que modelo de desenvolvimento orienta as decisões. Continuamos a viver de reacções e improvisos, num ambiente político que não consegue converter a promessa de mudança em programa de transformação. Falta-nos imaginação, não no sentido de fantasia, mas no sentido de visão. Somos praticamente colhidos de surpresa por Trump, pela TotalEnergies, pelos britânicos ou pelos suecos. E depois escrevemos artigos indignados a proclamar soberania...
A independência económica pressupõe, em minha opinião, uma refundação institucional que podia consistir em retirar o Estado da lógica partidária, reconstruir sistemas de integridade pública, criar mecanismos de controlo real, abrir espaço para a crítica e responsabilização, profissionalizar a administração, desconcentrar o poder e criar estabilidade regulatória. Alguém vê sinais disto? Significaria, sobretudo, repensar o próprio exercício do poder político, aceitando que uma democracia não se mede pela força do governo, mas pela força das instituições que limitam o governo.
A imaginação política exige a coragem de formular uma teoria de mudança, de apresentá-la publicamente e de se deixar vincular por ela. Ter medo de explicar o seu projecto é ter medo do país. E um país que aceita governar-se por slogans renuncia à possibilidade dum futuro pensado e, portanto, construído.
Kasswamy Tivane
O país progrediu do cabritanismo ao nhonguismo. Este é o sistema económico actual de Moçambique. O ministério das finanças é uma casa de espantalhos. Os libertadores nacionais repartiram o estado e se esqueceram da causa da sua luta “independência total e completa de Moçambique”
O estado moçambicano deve se refundar para poder alcançar a independência económica, porque com o sistema nhonguismo não dá e não vai dar.
Olhando na dimensão geográfica de Moçambique, e com um governo centralista, o país está condenado só ao retrocesso. O governo central de Maputo nunca vai se preocupar de salas de aulas de uma localidade em Tete, Niassa, Nampula, etc, etc…
Para que uma sala de aulas seja prioridade governamental, precisamos de descentralização administrativa de Moçambique, e fundarmos um estado federal.
Federalismo: este sistema seria ideal para Moçambique, porque os governos federais haveriam de se inteirarem profundamente em desenvolvimento dos seus territórios federais. Eles seriam ultra-exigentes nas fiscalizações e controle de todas as actividades que se desenrolam nos seus estados federais. Por exemplo: o general Chipande monopoliza a via ferroviária Moatize Nacala-porto, tudo bem, os governos federais por onde passa essa linha-ferra não deixariam de fiscalizar e cobrarem imposto ao general Chipande. Outro exemplo: Os Tubarões de Maputo que tem grupos de garimpos em Manica, não escapariam as cobranças de impostos e responsabilização pelo meio ambiente pelo governo federal de Manica, cada grama de ouro extraído de Manica não sairia de Manica sem ser fiscalizado. As empresas comunidades locais é que sairiam a ganhar.
De monto só o governo central de Maputo é que tem o direito e poder decidir aonde pode se colocar uma máquina de radiografia, um laboratório hospitalar, uma lavadaria para roupas do hospital, uma pavimentação de uma estrado de uma localidade, um aterro sanitário de uma vila, um caro de carregar lixo, provas e exames nas escolas.
Vamos refundar o estado moçambicano para um estado federal, livre de um governo centralista, só assim alcançaremos a independência económica.