Sobre a imaginação política (1)
Uma linguagem para nos repensarmos
A instabilidade política que o país conheceu desde as eleições gerais de 2024 tornou evidente algo que estava a crescer há muito tempo e que consiste no esgotamento do nosso modelo político. O diálogo político inclusivo, que se tornou inevitável após a violência pós-eleitoral, é frequentemente interpretado como resposta a um impasse conjuntural. Mas, na verdade, esse diálogo tornou-se necessário porque o sistema já não consegue cumprir a sua função mais elementar de representar a pluralidade dos cidadãos, mediar conflitos, traduzir interesses e dar forma política a tensões sociais legítimas. A violência eleitoral foi apenas a superfície visível duma crise de representação que afecta os partidos, o parlamento, o governo, a administração pública e a própria legitimidade do Estado.
Quando um sistema político deixa de mediar, as ruas ocupam o seu lugar. Onde os partidos não representam, a sociedade fica sem voz e quando a administração pública deixa de servir o interesse público, o Estado deixa de ser Estado. Tão simples quanto isso. O que o país vive hoje é, portanto, menos uma crise de gestão e mais uma crise de imaginação política. Falta-nos a capacidade colectiva de conceber alternativas credíveis para além das rotinas institucionais herdadas. Falta-nos método para repensar a República, humildade para reconhecer os seus limites e coragem para encarar que a refundação do Estado é uma necessidade prática.
Este momento exige uma reflexão que vá para além da mudança de protagonistas e da rotação entre elites. Requer o esforço de reconstruir o vocabulário político que nos permita pensar com rigor aquilo que temos evitado durante anos, portanto, a fragilidade das nossas instituições, a pobreza do nosso modelo de governação, a incapacidade do Estado de agir estrategicamente, a erosão da cidadania e a ausência de mecanismos reais de responsabilização. Exige, sobretudo, um novo entendimento sobre o que significa governar um país em que as crises deixam de ser episódicas e passam a ser estruturais.
É neste contexto dum sistema político à procura de uma língua para se repensar que decidi fazer uma reflexão em série sobre a imaginação política. Não é para diagnosticar culpados, mas identificar padrões e abrir espaço para um pensamento que seja simultaneamente crítico e construtivo. É (mais) uma tentativa de sacudir o conjunto da esfera pública que, por décadas, se habituou a confundir slogans com estratégia e indignação com análise. O primeiro texto examina o fim da ajuda sueca e argumenta que as nossas reacções revelam mais sobre nós do que sobre a Suécia. A surpresa nacional torna-se metáfora da nossa dificuldade em interpretar o mundo politicamente. O segundo analisa a retórica da “independência económica” e mostra como a ausência duma teoria de mudança impede a tradução de promessas em governação. O terceiro reflecte sobre a fuga de cérebros e defende que a erosão do espírito crítico explica por que razão o país não consegue reter nem valorizar talento. O quarto discute Cabo Delgado e expõe a necessidade duma estratégia de segurança que articule política, economia e legitimidade institucional. O quinto retoma a questão dos grandes projectos para mostrar como a cidadania se perde quando o Estado abdica de representar comunidades e de regular interesses poderosos.
Tomados em conjunto, estes textos são um convite a pensar o país a partir da sua própria fragilidade institucional e da sua necessidade de reconstrução. Não se trata de propor utopias, mas de restituir ao debate público a imaginação que ele perdeu, a saber, a capacidade de conceber um Estado capaz de representar, mediar e proteger e de fazer isso com a lucidez que o momento histórico exige.
Quero aprofundar o que disse no comentário desta semana na MBC TV.