Sobre a colonialidade da governação
Tenho estado a reclamar dos bancos. Um amigo moze na Alemanha contou-me desesperado que tem a conta bloqueada, vive longe de Berlim onde está a Embaixada para poder obter o equivalente da “declaração do bairro”... A simples tarefa de actualizar uma conta bancária tornou-se um teste de resistência cívica. Todos os anos, milhares de cidadãos enfrentam bichas, declarações, carimbos e justificações absurdas para provar que continuam a existir. O banco pede o BI, o NUIT, a declaração do bairro e, se possível, um documento que confirme que nada mudou desde o ano anterior. A explicação que alguns dão – porque o Banco de Moçambique é importante demais para se dignar explicar isto ao público – é que se trata de “exigências internacionais”. A frase soa técnica e inevitável, mas para mim esconde um mecanismo político mais profundo que é o que chamo de governação pelo supérfluo, uma forma de regular que substitui a imaginação institucional por rituais de obediência.
O sistema financeiro global nasceu da ordem colonial e mantém a sua hierarquia moral. As instituições que o regulam, portanto, FMI, Banco Mundial, FATF (no primeiro comentário, reproduzo um glossário que explica esta terminologia toda), foram criadas para proteger o centro do risco vindo da periferia. Sob o disfarce da neutralidade técnica, perpetuam uma geografia da confiança em que uns são naturalmente confiáveis e os outros devem provar-se. Os países africanos aparecem nesse mapa como zonas de desconfiança estrutural, permanentemente avaliados e raramente avaliadores. A integração de Moçambique nesse sistema repete o momento colonial de se provar inocência para poder participar. Eduardo Mondlane dizia que tínhamos de deixar de ser africanos para podermos ser aceites como pessoas...
O princípio das normas internacionais de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo é, em si, razoável. O problema não está no princípio, mas na forma como ele é aplicado. O FATF recomenda uma abordagem baseada no risco, proporcional e flexível. A ideia é simples. Exigir mais de quem representa maior risco, simplificar para quem representa menos. No entanto, em Moçambique, o princípio da proporcionalidade é traduzido como burocracia total. O Banco de Moçambique, ao invés de auditar sistemas e processos, audita papéis. Age de forma defensiva não para gerir risco, mas para se proteger de ser acusado de ser relaxado. A banca comercial, por seu lado, responde com igual medo transformando a relação com o cliente numa sucessão de verificações inúteis. E o cidadão, no fim da cadeia, paga o preço da desconfiança institucional.
Esta inversão é o retrato fiel da governação pelo supérfluo. Em vez de resolver o essencial que seria melhorar os sistemas, digitalizar e coordenar com outras bases de dados do Estado, prefere-se multiplicar os sinais externos de seriedade. Por isso, temos carimbos, bichas e declarações do bairro. Governa-se por aparência, não por substância. A energia institucional é consumida a provar que existe autoridade, não a produzir eficiência. O Estado torna-se espectador de si mesmo, satisfeito com a sua própria encenação. Este é um grande defeito do nosso sistema de governação. O cidadão é sempre secundário. É por isso que as nossas reclamações colectivas há anos são ignoradas. O Estado não está nem aí!
Agora, por detrás desse comportamento está uma forma de governação defensiva que consiste na prática de um poder que age para se proteger, não para proteger. O Banco de Moçambique transfere o risco para os bancos comerciais; os bancos transferem o custo para o cidadão. Cada nível da hierarquia esvazia-se da sua responsabilidade e empurra o peso para baixo. O resultado é um serviço público invertido em que o Estado não simplifica, mas complica; não apoia, vigia e não confia, exige provas de vida. O impacto social é devastador. A desconfiança recíproca corrói o vínculo entre Estado e cidadão. Quem não se enquadra na forma, portanto, quem vive sem residência fixa ou formal, sem factura ou sem contracto, é empurrado para fora do sistema financeiro. O banco que deveria incluir, exclui. A norma que deveria dar segurança, cria insegurança. E o país, ao tentar ser exemplar aos olhos do mundo, enfraquece-se por dentro.
Há, no entanto, uma ironia estrutural nisto tudo. As soluções que poderiam simplificar o processo e aliviar o cidadão são plenamente aceites pelo sistema internacional. Sim, são! O FATF não exige burocracia cega. Pelo contrário, recomenda exactamente o que Moçambique não faz, portanto, uma supervisão baseada em risco, escalonada por níveis de conta, digitalizada, e com foco em eficiência. O Banco de Moçambique poderia criar um cadastro nacional de clientes, reduzir a frequência de actualização para contas de baixo risco, e substituir a prova anual de existência por actualização por evento (por exemplo, mudança de estado civil). Tudo isso seria compatível com os padrões internacionais. Cumprir o que o mundo exige não obriga as nossas instituições a torturarem o cidadão. Não é verdade o que se diz por aí. Os jornalistas deviam perguntar ao Banco de Moçambique (se conseguirem). Há simplesmente falta de imaginação e indiferença pelo cidadão.
Portanto, a insistência em transformar a norma em fardo revela o verdadeiro problema que é o da falta de imaginação política, um dos nossos maiores Calcanhares de Aquiles. A governação moçambicana confunde disciplina com inteligência e formalidade com seriedade. Incapaz de criar soluções próprias, limita-se a imitar a rigidez alheia. É a colonialidade internalizada, onde o regulador nacional comporta-se como aluno ansioso para agradar ao professor estrangeiro, e o banco, como funcionário zeloso que se justifica antes de servir. A obediência torna-se a única linguagem institucional. O custo disto é duplo. Internacionalmente, o país cumpre, mas sem autoridade simbólica; internamente, obedece, mas sem eficácia. O sistema financeiro global, que se apresenta como escudo da estabilidade, converte-se num filtro moral onde Moçambique é sempre o suspeito. E o Estado moçambicano, ao aceitar essa posição, transforma o cidadão no bode expiatório da sua fragilidade.
Ontem conversava com a minha mulher sobre isto e dava-lhe a imagem de uma pessoa vinda das zonas rurais que entra na cidade e é recebida com desconfiança, como se o simples facto de vir de fora fosse uma ameaça à ordem urbana. O sistema internacional olha para Moçambique da mesma forma, isto é, como um corpo estranho, potencialmente portador de risco, que deve ser revistado antes de poder entrar. E, para provar que é digno de circular na cidade global, o país sujeita os seus próprios cidadãos ao mesmo escrutínio humilhante.
Mais uma vez: cumprir normas internacionais é necessário. Mas fazê-lo com imaginação, proporcionalidade e sentido de cidadania é o que distingue um Estado soberano de uma colónia regulamentar. A verdadeira prova de maturidade institucional não é o rigor com que a gente obedece, mas a inteligência com que o pessoal se adapta. Como país precisamos de passar da governação pelo supérfluo à governação pelo essencial, portanto, da multiplicação de gestos vazios à invenção de soluções que simplificam a vida e reforçam a confiança. Servir o cidadão primeiro e o sistema depois. Essa é a única forma de estar no mundo sem pedir desculpa por existir.
N.B. Dormi às duas horas da madrugada esta manhã a pesquisar este assunto porque não entendia muito bem a justificação de que são normas externas. Peço desculpas pelo longo texto que nem termina aqui. No primeiro comentário, e em sintonia com o mesmo argumento, apresento um glossário técnico para ajudar a entender ainda melhor o que está em causa. Existe a colonialidade, que é um facto, mas existe também a falta de imaginação política. E essa é fruto do desprezo que o nosso Estado sente pelo cidadão. Não sei porque a nossa imprensa não se preocupa com este tipo de assuntos e tenta interpelar o Banco Central. Esta instituição abdicou do seu dever de proteger o cidadão e promover a nossa economia. Não basta ser bom economista, bom jurista, bom engenheiro para se ser competente. É preciso ter imaginação e essa faz muita falta em Moz!
Elisio Macamo
Meu glossário interpretativo da governação financeira e suas margens de manobra
AML / CFT (Anti-Money Laundering / Countering the Financing of Terrorism): Este é o núcleo das exigências internacionais. Visa evitar que o sistema financeiro seja usado para crimes ou terrorismo. É uma política de vigilância global que impõe aos países periféricos o papel de polícias locais da integridade financeira internacional. O Banco de Moçambique pode aplicar as normas por níveis de risco, evitando burocracia cega. A banca pode simplificar os processos para clientes de baixo risco sem violar o princípio AML/CFT.
KYC (Know Your Customer): Procedimento de identificação do cliente. No Sul global, o KYC converte-se numa forma de cidadania condicional em que só é “visível” para o Estado quem consegue provar documentalmente a própria existência. O Banco de Moçambique pode criar um cadastro digital nacional KYC (ligado ao NUIT e ao BI biométrico), reduzindo exigências repetitivas. Os bancos podem aceitar formas alternativas de comprovação (ex.: geolocalização, declaração electrónica).
CDD / EDD (Customer Due Diligence / Enhanced Due Diligence): Níveis diferenciados de verificação consoante o risco. O princípio original do “risk-based approach” é frequentemente ignorado; praticamente tudo se torna “enhanced”. Os bancos podem aplicar o CDD a assalariados e pequenos comerciantes e reservar o EDD apenas a transacções complexas. O Banco de Moçambique pode sancionar bancos que apliquem EDD sem justificação plausível.
PEP (Politically Exposed Person): Pessoa politicamente exposta. A suspeita aqui é de potencial risco de corrupção (?!). Para mim, e como conversava ontem com um amigo antigo governante, é uma categoria que pode ter sido criada para proteger o sistema internacional de fluxos ilícitos, mas usada externa e internamente como pretexto para controlo político. O Banco de Moçambique pode definir critérios objectivos para identificação de PEPs, evitando perseguição arbitrária. Bancos podem gerir o risco com monitorização automatizada, não com bloqueios preventivos.
UBO (Ultimate Beneficial Owner): Beneficiário final que é quem controla ou lucra realmente com uma entidade. Essencial para transparência, mas difícil de aplicar onde a economia é informal e a propriedade é difusa. Aqui os reguladores podem criar registos simplificados de beneficiários para PME e associações locais. Bancos podem solicitar informação apenas quando a estrutura societária for complexa.
FATF / GAFI (Financial Action Task Force / Groupe d’Action Financière) : Organismo global que define os padrões. O FATF é o árbitro moral do sistema financeiro mundial. Os países do Sul são avaliados, raramente avaliadores, portanto, trata-se duma forma de governação colonial por listas. O Banco de Moçambique pode aplicar o espírito das normas (proporcionalidade e eficácia) em vez da letra. O FATF não exige burocracia excessiva, apenas comprovação de que o risco é controlado.
ESAAMLG (Eastern and Southern Africa Anti-Money Laundering Group): Grupo regional africano que replica o modelo do FATF. Espelha a hierarquia global em que os países do Sul tornam-se agentes de auto-vigilância. O Banco de Moçambique pode usar o ESAAMLG como fórum para propor interpretações adaptadas à realidade africana, reforçando a soberania regulatória regional.
SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication): Rede de comunicação que permite transferências bancárias internacionais. Mais do que uma tecnologia, é instrumento de poder geopolítico. Quem controla o acesso ao SWIFT controla a integração económica global. A Rússia (e bem feito! Quem manda invadir?) sente isso. O Banco de Moçambique deve garantir conformidade mínima com padrões AML/CFT para manter acesso, mas pode negociar com parceiros regionais soluções alternativas ou sistemas complementares (por exemplo, plataformas africanas de pagamentos).
Compliance: O conjunto de políticas e práticas que asseguram conformidade com normas legais e regulatórias. Nos países em desenvolvimento, compliance torna-se sinónimo de paralisia institucional, isto é, o medo de falhar substitui a capacidade de pensar. O Banco de Moçambique pode estimular uma cultura de compliance inteligente baseada em sistemas de controlo de risco e não em papeladas e declarações do bairro. A banca pode transformar departamentos de compliance em centros de inovação regulatória.
Grey List / Black List: Listas do FATF de países sob vigilância ou de alto risco. Funcionam como dispositivos (à la Foucault) de reputação global; moldam o acesso a crédito e a confiança internacional, reproduzindo o mapa colonial do “centro” e da “periferia”. Sair da “grey list” depende de demonstrar eficácia e não de multiplicar exigências. O Banco de Moçambique pode investir em tecnologia de monitorização, relatórios de risco e capacitação de auditores em vez de castigar clientes.
Risk-Based Approach: Abordagem baseada no risco. É o princípio central do FATF. É o antídoto contra a governação pelo supérfluo, mas raramente aplicado nos países periféricos, onde o medo de errar gera o excesso. Tanto o Banco de Moçambique quanto a banca podem adoptá-lo plenamente através da diferenciação de perfis de clientes, níveis de exigência e frequência de actualização. É aqui que reside a verdadeira soberania regulatória e que por inércia e indiferença o Banco de Moçambique simplesmente ignora.
Correspondent Banking: Relação entre bancos de diferentes países para operações internacionais. É a via pela qual o sistema internacional “pune” discretamente países considerados de risco (bancos estrangeiros cortam relações, isolando o sistema nacional). O Banco de Moçambique pode reforçar transparência e comunicação com correspondentes para evitar exclusão, mostrando que os riscos são geridos proporcionalmente.
Proporcionalidade: Princípio segundo o qual as medidas do Estado devem ser adequadas, necessárias e equilibradas em relação ao fim que se pretende atingir (!!!!). Nos países com governação defensiva e onde o Estado odeia o cidadão, a proporcionalidade é substituída pela ostentação do rigor em que se confunde intensidade com competência. Este é o espaço de liberdade por excelência. O Banco de Moçambique pode invocá-lo para reduzir formalismos e defender perante o FATF que eficiência e inclusão são parte da boa conformidade.
Portanto, este glossário mostra que o sistema financeiro internacional é, ao mesmo tempo, um campo de dependência e um espaço de manobra, que a dependência nasce da assimetria uma vez que as regras vêm de fora. Mas a manobra nasce da inteligência! As regras podem ser interpretadas, contextualizadas e aplicadas com imaginação. A diferença entre submissão e soberania está em compreender que cumprir não é o mesmo que obedecer. Cumprir é estar à altura das normas com critério próprio; obedecer é aplicá-las com medo. O Banco de Moçambique e a banca comercial têm, portanto, uma escolha a fazer. Podem ser executores ansiosos da desconfiança global ou agentes serenos de uma governação pelo essencial.
Espero ter sido claro. Até prova em contrário, somos mais vítimas de nós próprios do que da ordem internacional. O FATF nem imagina que em Moçambique há chefe do bloco, do quarteirão e ainda secretário do bairro. Está-se nas tintas para isso!
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Elisio Macamo
bom domingo!
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Rogério Sitoe
Elisio Macamo veja o cúmulo dessa burocracia dos bancos. Um reformado em 2024 vai ao INSS pedir a sua "prova de rendimento" . Se tiver contas em dois Bancos cada declaração tem de ter o nome específico desse banco. Acto número 2: Na próxima exigência dos bancos, dois anos depois, para além de toda aquele papelada chata tem de trazer, de novo, do INSS as mesmas declarações referentes aquele ano. Perguntei ao funcionário: O que o pensa que mudou no valor da reforma que seja significativo e que altere a autorização para eu manter a conta no Banco? " porque não usam , pelo menos para isto, o que está no vosso banco de dados. "Nós só cumprimos ordens, mas eu te entendo ". Elísio , assim será daqui a dois anos. Nem comento
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António Muchanga
Obrigado mano grande
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Sofia Meneses Dias Cassimo
Não esquecer que é preciso ajudar a diminuir o desemprego. Menos papel implica menos pessoas.
Em vez de criarmos alternativas usamos a mesma fórmula à espera de resultados diferentes
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Gabriel Serafim Muthisse
Excelente texto. Quando queremos, conseguimos ser uma vergonha. As exigências são simplesmente estupidas. Eu perguntava numa outra postagem tua se esta desconfiança para com os clientes dos bancos era assim em todo o mundo, ou se estas exigências estupidas só são aplicadas para nós, os pretos. Temos de provar constantemente que não andamos a lavar dinheiro e a apoiar o terrorismo!…
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Gabriel Serafim Muthisse
No policiamento existe aquilo que se chama “profiling”. Não se anda a policiar a toda a gente porque não só seria custoso, como quase impossível. Há estudos que se fazem para cada tipo de crime ou transgressão e para o perfil que mais se encaixa a esses crimes ou transgressões. Normalmente manda-se parar de acordo com esses perfis. Em Moçambique a polícia de trânsito parte do princípio de que cada condutor é um transgressor e manda parar a todos sem qualquer critério, transformando a condução numa tortura diária. Para o BM cada moçambicano que tenha uma conta é um criminoso internacional!
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Elisio Macamo
Gabriel, é isso, infelizmente. é isso.
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Celia Meneses
Há uns anos fui objecto de duas tentativas de extorsão de dinheiro( coitados estes não sabiam que a minha conta não é grande) objectei á administração do banco que os extorters tinham lá conta… pois tinham me dado o número para eu fazer a transferência, disseram-me que nada podiam fazer para meu grande espanto, sabendo nós o que é necessário para abrir e manter a conta.
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Elisio Macamo
Celia, somos robots. fazemos sem pensar.
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Jose Cossa
Todos os anos tenho que tratar declaração do bairro. Porquê?
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Isabel Maria Casimiro
Bom retrato do que vivemos todos os anos. E entretanto bloquearam-me a conta num banco. Tentei actualizar os dados, estando fora do país, masmão consegui. Tem de ser presencial!
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