Quando a ignorância é entendida como lucidez
“Nós podemos mendigar sermos recebidos pela empresa, se não tivermos qualidade, nenhuma empresa vai nos receber. É por isso, acabar essa coisa de aulas de slides, de falar muito “conceito, conceito, conceito”, ensinar pessoa saber? Saber fazer! Não é? As pessoas que vão aos ritos de iniciação nao têm caderno, mas sabem? Sabem fazer! Como, como? Ritos de iniciação? É tipo vestibular antes de casar, é vestibular pré-matrimonial. Então, o que precisamos de fazer é que produzamos pessoas que servem ao sector privado, às empresas e as empresas também acolham as nossas pessoas porque vale a pena receber essa gente. Eu sou da área de história, ciências sociais, sim senhor, mas, mas, as minhas ciências sociais não resolvem problema porque o sentimento não enche barriga, as teorias não matam fome! Podemos ter saudades do passado, mas na minha terra (), quer dizer, afirmar aos filhos que nós no passado comíamos, isso não consola as crianças para não sentirem fome no presente só porque no passado comeram. É aqui onde o Nietzsche disse as desvantagens da história. Vamos treinar as pessoas para saberem fazer coisas! Eu como militar, a minha teoria é a seguinte: treina como lutas e luta como treinas. Não pode treinar na alcatifa para ir combater no mato. Da mesma forma, não podemos ensinar pessoas coisas fúteis, coisas que não valem, para depois querer empregar, emprego. As empresas não trabalham com santidade porque a santidade só serve para a igreja, mas não serve para o desenvolvimento” (trecho da intervenção dum Major-General do exército moçambicano)
No VII Fórum dos Dirigentes de Instituições de Ensino Superior, um general moçambicano, de certeza também dirigente universitário, fez uma intervenção que, a julgar pelas reacções entusiásticas nas redes sociais, teria sido inspiradora. Falou sobre a “governação orientada para a qualidade” e defendeu a necessidade de ensinar as pessoas a “saber fazer” em vez de “saber pensar”. O problema é que, mesmo aplicando o princípio da caridade interpretativa, isto é, lendo o discurso no melhor sentido possível, o que resta é uma sequência de contradições, confusões conceituais e pobreza intelectual.
A seguir, procuro mostrar por que esse discurso não faz sentido, o que seria necessário para que fizesse sentido e por que, mesmo corrigido, ele continuaria a ser um equívoco perigoso. O trecho em causa é uma colecção de lugares-comuns, frases de efeito e metáforas deslocadas. É o tipo de discurso que emociona o público precisamente porque evita pensar. Vejamos algumas falácias e incoerências centrais. A primeira é a falácia do falso dilema: “Temos de acabar com essa coisa de aulas de slides, de falar muito ‘conceito, conceito, conceito’. O que precisamos é ensinar a pessoa a saber fazer.”. Aqui o orador cria uma oposição artificial entre teoria e prática, como se fossem mutuamente excludentes. É uma falácia do falso dilema porque pressupõe que ou se ensina teoria ou se ensina prática, quando o verdadeiro ensino combina as duas dimensões. Sem conceitos, não há capacidade de generalizar nem de transferir conhecimento. Saber fazer sem saber por quê é mera repetição; saber pensar sem saber fazer é abstracção estéril. O equilíbrio entre ambos é precisamente o que define a qualidade académica.
A segunda falácia é a da falsa analogia. “As pessoas que vão aos ritos de iniciação não têm caderno, mas sabem fazer.” O argumento confunde contextos incomparáveis. Os ritos de iniciação transmitem saberes tradicionais corporais e simbólicos, em contextos de socialização ritual. A universidade, ao contrário, forma competências críticas e profissionais que exigem formalização, método e conceitualização. Usar esse exemplo para deslegitimar o ensino teórico é falacioso. A semelhança superficial (“aprendizagem sem cadernos”) encobre diferenças essenciais (“natureza do saber e da finalidade”). Isto está ligado a uma incongruência performativa no que ele diz: “As teorias não matam fome.”; “Eu, como militar, a minha teoria é a seguinte: treina como lutas e luta como treinas.” A incoerência é evidente. O orador desqualifica as teorias e, no mesmo fôlego, formula a sua própria, e de forma dogmática. Trata-se de uma contradição pragmática. Ao usar uma teoria para negar a importância das teorias, anula o próprio argumento, além de que “treinar como se luta e lutar como se treina” é, em si, uma teoria, isto é, um princípio normativo que orienta a prática. O problema não é ter teoria, mas ter uma teoria pobre.
A seguir, temos uma falácia da metáfora totalizante. “Não se pode treinar na alcatifa para ir combater no mato.” A metáfora militar é sedutora, mas desastrosa. A educação não é combate, nem o conhecimento é munição. O que funciona no quartel não se aplica à universidade. Transferir a lógica da guerra para o ensino é uma metáfora totalizante, pois destrói a autonomia do pensamento e instala uma visão autoritária da aprendizagem, portanto, aquela em que se obedece, mas não se compreende. Isto encaixa numa outra falácia, nomeadamente a da generalização apressada. “Se não tivermos qualidade, nenhuma empresa vai nos receber.” Além de tautológico (“sem qualidade, não há qualidade”), o argumento ignora que a relação entre universidade e mercado de trabalho depende de múltiplos factores, entre os quais políticas públicas, economia, cultura institucional e ética empresarial. Atribuir o problema à falta de “qualidade” dos graduados é uma generalização apressada, típica de quem confunde diagnóstico com moralismo. Finalmente, ainda temos a falácia moral: “As empresas não trabalham com santidade porque santidade só serve para a igreja.” Aqui o discurso escorrega para o cinismo. O general equipara “santidade” à ética e conclui que a ética é inútil para o desenvolvimento. É uma falácia moral porque transforma a eficiência em virtude e a moralidade num obstáculo. O resultado é devastador, pois isso implica um modelo de sociedade em que o sucesso dispensa a consciência. Essa forma de raciocínio é precisamente o oposto da governação orientada à qualidade.
Deixem-me tentar melhorar o que ele disse para vermos se ‘e possível salvar o argumento. Para fazer sentido, o discurso teria de (a) definir “qualidade” não como obediência ao mercado, mas como capacidade de formar pessoas críticas, competentes e éticas, (b) reconhecer o papel da teoria como fundamento que torna o “saber fazer” reflexivo, adaptável e responsável, (c) clarificar o lugar do sector privado, pois as universidades não existem apenas para servir empresas, formam também servidores públicos, professores, investigadores e cidadãos; (d) usar a analogia militar com critério, portanto a ideia de “treinar como se luta”, poderia, metaforicamente, significar coerência entre ensino e realidade social, não militarização da educação; (e) repor a dimensão moral e cívica, pois a qualidade sem ética é mera eficácia e eficácia sem sentido é governação vazia. Se fizesse tudo isto, o argumento ganharia alguma coerência argumentativa, mas, conforme já disse, continuaria discutível.
A intervenção continuaria limitada por três ilusões fundamentais. A primeira é a ilusão tecnocrática que reduz a educação à formação funcional, como se o valor do saber fosse meramente instrumental. A segunda é a ilusão mercadológica que subordina a universidade ao sector privado, esquecendo que o seu papel também é imaginar alternativas ao mercado. A terceira seria a ilusão anti-intelectual que identifica pensamento com improdutividade, como se reflectir fosse um luxo num país pobre. Estas ilusões são perigosas porque produzem governantes incapazes de pensar e cidadãos incapazes de exigir que pensem.
Há aqui dois níveis de tragédia. O primeiro é individual e institucional. O general que falou é dirigente de uma instituição de ensino superior, mas revela um despreparo inquietante para o cargo que ocupa. O seu discurso evidencia ignorância conceitual, desorientação pedagógica e desprezo pelo pensamento. É triste porque mostra como a retórica da “praticidade” pode servir para encobrir a ausência de conteúdo. O segundo nível é colectivo e político. A calorosa recepção que o discurso parece estar a receber mostra a pobreza do debate público em Moçambique. Aplausos a ideias incoerentes são sintomas de um país que perdeu a capacidade de distinguir a substância do espectáculo. Quando o senso comum celebra a superficialidade como sabedoria, é natural que as instituições públicas produzam dirigentes do mesmo calibre.
A “qualidade da governação” de que se fala nos fóruns não é apenas uma questão de gestão, é antes de tudo uma questão de pensamento. Governar bem exige compreender bem, e compreender bem exige respeito pela complexidade das coisas. Quando os que dirigem desprezam a teoria, acabam por desprezar a própria razão que sustenta a República. Talvez seja por isso que Moçambique continua a treinar na alcatifa enquanto a luta verdadeira, a do pensamento, continua por travar. E enquanto assim for, continuaremos a enviar soldados para combater em Cabo Delgado sem compreender as causas da guerra. Porque, com generais que acreditam que pensar é perda de tempo, a única batalha que não sabem travar é precisamente aquela que poderia pôr fim a todas as outras, nomeadamente a batalha de entender o país que comandam.
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