Tuesday, October 14, 2025

O valor do método

 Elisio Macamo

2 d 
O valor do método
Muitas vezes ouve-se dizer que os académicos são complicados, que vivem distantes dos problemas concretos ou que se perdem em teorias enquanto o país precisa de soluções urgentes. Outros afirmam que o rigor metodológico é uma forma de vaidade, um ritual de linguagem que serve apenas para criar distância entre quem sabe e quem não sabe. Essa crítica parece justa, mas parte de um equívoco profundo. O método não é uma vaidade intelectual. É, talvez, uma forma de responsabilidade pública. Pelo menos é assim que olho para isso. Ele existe para garantir que o que dizemos não depende apenas do que sentimos, mas do que conseguimos demonstrar, e que as nossas opiniões não valem por serem convincentes, mas por serem justificadas.
O jornalismo, por exemplo, tem um papel fundamental e insubstituível na sociedade que é de tornar visível o que está escondido, dar voz a quem sofre e denunciar abusos e contradições. É uma actividade que vive da urgência, e a sua força está justamente na capacidade de traduzir o complexo em algo compreensível e imediato. O trabalho académico é diferente, ainda que complementar. Ele começa onde o jornalismo termina, portanto, no esforço de compreender por que razão e de que modo as coisas acontecem, mesmo quando isso obriga a contrariar o senso comum ou a indignação dominante. O jornalista ilumina o visível enquanto o académico tenta compreender o invisível, isto é, as causas, as mediações e os mecanismos que não aparecem nas manchetes. O método é o que nos permite fazer essa travessia entre o que parece e o que é.
Recentemente, em conversa com o músico moçambicano Stewart Sukuma (num podcast que irá ao ar na próxima quarta-feira), ele perguntou-me se eu ficava chateado quando percebia que as pessoas não me tinham entendido. Respondi-lhe que, por defeito de profissão, não posso dar-me a esse luxo. Como professor, parto sempre do princípio de que, se não me entenderam, o problema começa em mim. Talvez eu não tenha explicado bem, talvez não tenha partido do ponto de vista do ouvinte, talvez tenha suposto conhecimento prévio que ele não tinha. O método é, também, essa forma de humildade e consiste no esforço de calibrar a mensagem ao contexto e de pensar não apenas no que quero dizer, mas no modo como o outro pode ouvir. Ser académico é compreender que o conhecimento só existe quando é partilhado, e que a clareza é uma forma de ética por assim dizer.
Mas acrescentei ao Stewart que o contrário também pode acontecer. Há pessoas que entendem mal não por falta de clareza, mas porque precisam de entender mal. Há resistências que não são cognitivas, são ideológicas. Certas pessoas rejeitam uma ideia não porque ela seja confusa, mas porque ameaça a ordem moral ou política que lhes dá segurança. Eu não espero, por exemplo, ser entendido por quem morre de amores pelos que querem “organizar o país” ou pelos que querem “fazer diferente para terem resultados diferentes”. O método para mim é decisivo porque nos ajuda a distinguir os mal-entendidos honestos das recusas estratégicas. A ciência ensina-nos a não tomar a má recepção de uma ideia como prova de que ela está errada, do mesmo modo que nos ensina a não tomar a nossa convicção como prova de que estamos certos. O método é uma pedagogia da dúvida e uma ética da paciência.
Também é comum que pessoas de fora do mundo académico digam aos académicos como deveriam fazer o seu trabalho. Há quem veja a exigência metodológica como formalismo e quem pense que basta a experiência, a militância ou o bom senso para compreender a realidade. Mas o método é precisamente o que nos protege dessa ilusão. Ele existe para evitar que confundamos intuição com conhecimento, impressão com prova, causa com coincidência. Num mundo onde tudo parece evidente, tipo “a corrupção destrói o país”, “a juventude está revoltada”, “o governo não faz nada”, etc., o método é a disciplina que nos obriga a perguntar como, porquê e em que condições essas afirmações são verdadeiras. O académico não é aquele que tem sempre razão, mas aquele que se obriga a mostrar por que pode tê-la.
O valor público do trabalho académico está exactamente aí. Ele não substitui a acção política, nem resolve problemas de forma imediata, mas ajuda a ver o essencial e a distinguir o que é estrutural do que é apenas visível. É essa distinção que impede o país de andar em círculos, respondendo sempre aos sintomas e nunca às causas. Quando um político promete “acabar com a corrupção” apenas “combatendo a impunidade”, o académico pergunta se o problema está mesmo na falta de punição, ou nas regras de financiamento dos partidos, nos mecanismos de controlo e na cultura de obediência e de dependência institucional. Quando se diz que “é preciso criar empregos”, a análise pergunta em que sectores, com que qualificações, sob que condições produtivas. O académico não traz soluções prontas, mas sim perguntas melhores, e é isso que permite que as soluções deixem de ser ilusões.
Num país habituado à pressa, o pensamento pode parecer uma perda de tempo. Mas é exactamente o contrário. Pensar é o trabalho que torna possível agir bem. E dói! O método é o nome que damos a essa paciência estratégica, portanto, a capacidade de não ceder à urgência do imediato e de resistir à sedução do óbvio. Em última instância, o valor do método é o valor do tempo que ele nos devolve, isto é, o tempo de compreender antes de agir, de escutar antes de responder e, acima de tudo, de aprender antes de ensinar.
É também o método que impede que a crítica se transforme em slogan. Ele ensina-nos a desconfiar das respostas fáceis, a suspeitar do consenso moral e a ver, por detrás de cada evidência, a complexidade que ela esconde. O método é, no fundo, a forma mais discreta da coragem intelectual, aquela que prefere compreender a vencer, e que acredita que a paciência de pensar é, ainda, a forma mais séria de compromisso com o país. Carlos Serra, o falecido sociólogo, falou e bem sobre isto tudo no seu “decálogo do sociólogo”. Aqueles dez mandamentos, interiorizados, fariam muita diferença na nossa esfera pública.
Stewart Sukuma
 
A constante procura do conhecimento dá-nos liberdade. A liberdade é vasta, ajuda-nos a compreender o outro. A capacidade analítica misturada a capacidade de interpretação e assim eu acho que o povo pensa como quem lê um mapa pronto, seguindo caminhos já traçados. Os artistas seguem o mesmo mapa como quem desenha mapas de mundos que ainda não existem, criando novas possibilidades a cada passo e os académicos como quem estuda todos os mapas possíveis, analisando cada detalhe para compreender todos os universos de sentido. Agora, para que todos compreendam, esta e outras análises, mesmo as mais simplificadas, tem de se estudar um pouco. Falo das pessoas simples que não têm grandes ambições e querem viver uma vida tranquila. Aí vejo responsabilidades políticas: Os políticos redesenham os mapas conforme lhes convém, indo por caminhos segundo interesses próprios.
Desculpe me Professor, análise de um músico sonhador. Kkkkkkkkkk.
  • Responder
  • Editado
Elisio Macamo
Stewart Sukuma, excelente análise! gosto da analogia com o músico que cria, na verdade, mundos.
Maria João Teles Grilo
Muito boa análise. Partilho. Obrigada

No comments:

Post a Comment

MTQ