O valor cívico do erro
Uma das maiores fragilidades da política pública em Moçambique é que ela raramente se apoia em estudos prévios sérios. As decisões surgem em resposta a crises ou como demonstrações de vontade política, raramente como resultado de uma análise rigorosa das causas e das condições de execução. Confunde-se acção com eficácia e, até certo ponto, movimento com progresso. O método mostra o seu valor cívico quando ele nos ensina que errar faz parte do processo, mas que há maneiras responsáveis de errar e maneiras irresponsáveis.
O erro responsável é o que nasce de hipóteses testadas, de objectivos claros e de uma compreensão realista das condições em que se actua. É a antítese da denúncia que pertence ao reino da militância imbecil. O erro irresponsável é o que nasce do improviso, da pressa ou da ilusão de que a vontade política é suficiente para mudar o mundo. Este é o reino da denúncia, de quando se abdica do rigor em nome de ideais muitas vezes mal digeridos. Quando uma política falha, o importante não é apenas saber o que falhou, mas por que falhou. E para isso é preciso método, mas método não como formalismo, mas sim como disciplina de pensar antes de agir.
Costumo representar o raciocínio de uma política pública em três níveis. Primeiro, os objectivos, que traduzem os valores a proteger, por exemplo, segurança, justiça, bem-estar, liberdade. Isto é para mostrar que os valores não estão ausentes do rigor metodológico, mas têm um lugar específico. Depois, as medidas, que são as acções concretas destinadas a atingir esses objectivos. E, finalmente, as condições, que são o ambiente político, institucional e social necessário para que as medidas funcionem. Neste último nível aqui, a maioria das políticas moçambicanas tropeça. Definem-se objectivos e multiplicam-se medidas, mas raramente se criam as condições de viabilidade, desde a formação de quadros, à coordenação interministerial, ao controlo financeiro até mesmo à cultura de prestação de contas.
Quando se desprezam as condições, o erro deixa de ser produtivo. Torna-se repetição. Sem boas abordagens analíticas, o país continua a ensaiar soluções que falham sempre pelo mesmo motivo porque ninguém se deteve a compreender o que é preciso existir para que funcione. O método, neste sentido, não é o contrário da política, mas sim o que lhe dá fundamento. Ele converte o erro em aprendizagem e impede que o fracasso se transforme em rotina.
Errar bem, em política, é errar com método, isto é, sabendo o que se quer proteger, testando hipóteses com evidência e criando as condições mínimas para que a acção tenha sentido. O verdadeiro problema de Moz, portanto, não é errar. É não aprender com o erro. E essa incapacidade de aprender vem, quase sempre, da ausência de método, isto é, da pressa em resolver antes de compreender, e da tentação de culpar o contexto antes de o estudar. Aqui de novo chamo a atenção para a importância que o método tem mesmo para quem é activista social ou político. A abordagem metodológica que recupera algumas das preocupações do activismo é o que se chama de “pesquisa acção”. Nela não são as convicções do pesquisador que validam o conhecimento, mas sim o rigor metodológico.
Tenho em mim que a maturidade de uma sociedade mede-se pela forma como ela erra. Onde as convicções políticas ou ideológicas são fortes, não há consciência do erro. Há apenas fé e a análise é reduzida à procura do que confirma convicções. Há um número considerável de cientistas sociais que acham que convicções fortes são suficientes para validar o conhecimento. Infelizmente, vejo por todo o continente os danos que isso fez na formação.
O recurso a palavras que pensam por nós cria em algumas pessoas a ilusão dum conhecimento que não têm porque esse só é possível onde a maneira como a gente chega a certas conclusões é transparente e passível de ser compreendida mesmo por quem não faz parte da nossa malta ideológica. A facilidade com que se pode recorrer ao vocabulário das ciências sociais para conferir respeitabilidade a banalidades costuma levar alguns de nós à irresponsabilidade.
No meu entender, o método é uma espécie de pedagogia do erro porque transforma a tentativa em conhecimento, o fracasso em política pública e a experiência em futuro. Cada tentativa, quando bem documentada e analisada, deixa de ser improviso e passa a ser dado. Cada fracasso, quando estudado, converte-se em licção e não em culpa. Finalmente, cada experiência, quando sistematizada, torna-se base para a próxima etapa de construcção. Hanlon, ao descrever com minúcia episódios como as privatizações dos anos 1990, quando a liberalização económica, imposta de fora e mal enquadrada internamente, levou à destruição de sectores produtivos e ao fortalecimento de elites rentistas, oferece-nos um exemplo claro do que acontece quando o erro não é metodicamente tratado. O país não aprendeu com a experiência, reagiu a ela moralmente, culpando o FMI ou as elites, sem investigar as condições que poderiam ter transformado aquele fracasso em conhecimento político.
De novo: o método organiza a experiência de modo que o erro não se repita, mas dele se aprenda.
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