O mecanismo analítico
Espero que tenha ficado claro, no meu último texto, que analisar não é o mesmo que constatar. Agora vou falar sobre como a análise realmente acontece. Analisar é construir uma ponte entre o que afirmamos e o que observamos. Chamo a essa ponte de mecanismo analítico. Ele é o raciocínio que torna plausível uma ideia e, depois, a põe à prova.
Imaginemos que alguém diz: “a corrupção faz mal ao desenvolvimento”. Para que essa frase tenha valor analítico, é preciso mostrar o caminho que liga as duas partes. Primeiro, podemos notar que países com altos índices de corrupção são geralmente pobres, o que torna a frase plausível. Mas a análise começa de verdade quando perguntamos se será mesmo por causa da corrupção. Talvez existam países pobres por outras razões, tipo guerras, isolamento, más colheitas, e países corruptos que cresceram rapidamente. É testando essas hipóteses que a análise ganha densidade.
O mecanismo analítico funciona, portanto, como um circuito. Ele parte de uma tese, procura sinais que a tornem razoável, constrói uma inferência que explique a ligação e, por fim, verifica se essa inferência se sustenta. Só quando o circuito se fecha, isto é, quando a ideia é comprovada e não apenas sugerida, é que a análise cumpre o seu papel.
Um exemplo simples: um pai pode dizer o seguinte: “O meu filho anda mal na escola porque passa muito tempo no telefone.” A frase soa convincente, e talvez seja até verdadeira, mas ainda não é uma análise. Ela é apenas uma constatação com aparência de explicação. Dizer que o telefone causa más notas é afirmar uma ligação sem mostrar como ela funciona. A análise começa quando o pai tenta compreender o mecanismo que liga uma coisa à outra. Observa que o filho passa muitas horas nas redes sociais e que as notas caíram. Isso é que torna a tese plausível. Mas depois repara que outros colegas também usam o telefone e têm bom desempenho. Começa então a perguntar-se se o problema não estará noutro ponto, talvez no sono, na concentração, ou no ambiente da turma.
Após observar por algum tempo, descobre que o filho usa o telefone sobretudo à noite, dorme pouco e chega cansado à escola. Nesse momento, a tese muda de forma. O telefone deixa de ser o culpado e passa a ser o sintoma de um problema mais fundo que seria a falta de descanso. A análise nasce aí mesmo. Ela nasce quando deixamos de culpar e passamos a compreender o mecanismo que faz as coisas acontecerem.
Deixem-me dar outro exemplo aqui. Alguém pode dizer que “as nossas estradas estão cheias de buracos porque o governo é corrupto.” A frase soa justa e até moralmente necessária, mas é apenas uma constatação indignada. A corrupção pode ser uma parte do problema, mas dizer isso não explica como, nem por que razão as estradas se degradam. A análise começa quando o cidadão pergunta como o dinheiro destinado à manutenção se perde. Descobre que muitas empresas de construção são contratadas por concursos pouco transparentes, que recebem adiantamentos e não concluem as obras. Mas descobre também que parte dos problemas vem de falhas técnicas, portanto, projectos mal dimensionados, ausência de drenagem, fiscalização deficiente, falta de equipamentos. Percebe, então, que há corrupção, sim, mas há também incompetência, negligência e ausência de planeamento.
Nesse momento, a frase muda de sentido. O governo não é “corrupto” de forma abstracta; é um conjunto de instituições com práticas diferentes, algumas honestas, outras oportunistas, outras simplesmente mal preparadas. A crítica deixa de ser slogan e torna-se compreensão. É quando entendemos o mecanismo, isto é a cadeia que vai da decisão política à estrada esburacada, que começamos, finalmente, a pensar.
Um bom exemplo da diferença entre constatar e analisar aparece no livro “Moçambique Recolonizado através da Corrupção”, de Joseph Hanlon (não tenho nada contra ele, até porque o livro é bom). O autor afirma que “a recolonização é agora feita por empresas privadas, com as empresas chinesas a desempenharem um papel importante” e que “a corrupção é o principal motor do processo”. Em seguida, descreve o comércio ilegal de madeira em Cabo Delgado, o envolvimento de autoridades e o silêncio dos doadores. Essa descrição torna plausível a ideia de que a corrupção alimenta a recolonização, mas o mecanismo, portanto, como a corrupção local se articula com o capital estrangeiro e as redes de poder, não é demonstrado. Hanlon mostra o efeito, mas não o processo.
Mas a análise começa aqui mesmo. Ela não começa onde a indignação se torna eloquente, mas onde a ligação entre causas e efeitos é testada, desagregada e demonstrada. Sem esse movimento, ficamos presos à aparência das coisas. E é isso que distingue uma conversa inteligente de uma verdadeira compreensão porque a conversa apenas comenta enquanto a análise demonstra.
No comments:
Post a Comment
MTQ