Tuesday, October 14, 2025

Nós os intelectuais e o dilema da lucidez moral

 Elisio Macamo

6 d 
Nós os intelectuais e o dilema da lucidez moral
Circula intensamente um depoimento de Severino Ngoenha sobre o processo que levou à criação do diálogo interpartidário em Moçambique. Para muitos, as suas palavras são a confirmação definitiva daquilo que “todo o mundo já sabia”, nomeadamente que o Presidente agiu de má fé, que o diálogo foi manipulado, que Venâncio Mondlane foi injustamente excluído, e que a Frelimo continua a jogar xadrez político com adversários ingénuos. Eu acho que há uma outra forma, talvez até mais exigente e mais instructiva, de ler o que o filósofo disse.
Eu não escutei o depoimento como prova, mas sim como expressão duma tensão antiga entre lucidez moral e inteligência política, ou melhor, entre o desejo sincero de ver o país reconciliado e a incapacidade que todos temos de compreender plenamente as lógicas do poder com que se quer dialogar. Ninguém pode duvidar da integridade de Ngoenha e de outros que com ele tentaram pacificar o país. O país estava a arder, as mortes multiplicavam-se, e ele, doente e à distância, sentiu o imperativo de fazer algo. Essa decisão de não ficar em silêncio é, em si, um acto de cidadania que recusa o conforto da distância. Ligou-me várias e conversamos e senti essa sua preocupação.
Mas o seu relato, mal entendido, pode também revelar uma visão linear e moral da política, sobretudo se quem o escuta acredita que basta reunir as partes e fazê-las “conversar” para que as boas intenções prevaleçam sobre os cálculos. A política aparece, nesse tipo de leitura, como um desvio ético a corrigir, e não como um terreno de disputa, de força e de compromissos imperfeitos. Eu próprio, na altura, mostrei reticências em me meter num campo que não domino com receio de acabar usado pelos políticos. Dentro do Manifesto Cidadão tivemos fortes discussões sobre isto e prevaleceu a ideia de que devíamos seguir pela via cívica, algo que começa a fruir aos poucos, pois o diálogo não é negociado em nome de partidos, mas em nome da consciência pública.
Algumas pessoas estão a ler no depoimento do Severino Ngoenha o desenrolar do processo como a manifestação da acção de forças obscuras dentro da Frelimo que teriam “roubado” a iniciativa. É uma leitura compreensível, pois há, de facto, dinâmicas internas e resistências reais. Mas essa narrativa alimenta uma lenda que nos tem paralisado há décadas, nomeadamente a duma Frelimo omnisciente, astuta e capaz de manipular tudo e todos. Essa é a imagem da Frelimo como um destino e tem efeitos políticos devastadores. Ela reforça o sentimento de impotência dos demais actores e dissolve a sua responsabilidade. É mais fácil dizer que “a Frelimo estragou tudo” do que reconhecer os próprios limites que incluem erros de cálculo, ingenuidade, confusão entre autoridade moral e capacidade política.
O resultado disso tudo pode ser uma mitologia do poder, onde uns são sempre espertos e outros sempre enganados. Infelizmente, a política real é mais complexa porque ela não se move por maldade ou pureza. Ela move-se por interesses, oportunidades e equilíbrios. Reduzir tudo à traição e má fé, de um lado, e a imbecilidade do outro, é recusar compreender como o poder se exerce e se transforma. O que o depoimento faz, pelo menos comigo, é revelar a dificuldade de muitos de nós intelectuais moçambicanos em distinguir entre juízo moral e inteligência política. A lucidez moral é necessária porque dá direcção e protege a integridade. Mas sem inteligência política, ela torna-se facilmente instrumento nas mãos de quem compreende melhor o jogo. Este é o trágico destino do intelectual que entra na política sem desconfiar dela. Quer salvar a nação pela palavra, mas é a nação que o engole pelo silêncio. A boa fé é condição de partida, mas não substitui a leitura estratégica do poder, nem a compreensão das suas instituições e resistências. Nós os intelectuais temos dificuldades com isso e o tipo de esfera pública que temos não ajuda, pois, e como está a acontecer agora, o depoimento está a ser politizado duma maneira que pode deturpar o que o filósofo quis dizer.
Não é que o esforço de intelectuais como o Ngoenha seja vão. Salvou vidas, reduziu tensões e manteve aberta a ideia de diálogo. Mas o caminho talvez não fosse esse. Num país onde as instituições partidárias são parte do problema, a regeneração moral não virá da política, mas de fora dela, portanto, da sociedade civil e dos espaços onde os cidadãos se reconhecem como tais, e não como militantes ou clientelas. De novo, e um pouco a puxar a brasa para uma certa sardinha (da qual o Severino Ngoenha faz parte), o Manifesto Cidadão, que propõe o debate público como exercício de responsabilidade partilhada, é exemplo dessa outra via, portanto, a da lucidez moral que se recusa a ser ingénua.
A política não precisa de ser moralizada, mas sim de ser compreendida e depois transformada com os instrumentos que a própria sociedade inventar. As reacções ao depoimento ilustram, com precisão, este mesmo dilema. Circula, por exemplo, o comentário que resume o seu discurso com frases como, “Sem Venâncio não faz sentido”; “Chapo, não faz sentido um diálogo sem Venâncio”; “Os pontos do diálogo nasceram do documento de Venâncio”; “A Frelimo meteu o bedelho e dissolveu o programa” e termina com uma exclamação: “Guardem esta narração, é a história de Moçambique para os nossos filhos.”
Portanto, este comentário transforma um testemunho ambíguo e autocrítico numa epopeia moral em que o Venâncio Mondlane é herói, Ngoenha é profeta traído, e a Frelimo é a vilã omnipotente. O que era reflexão cândida converte-se em prova e o que era consciência converte-se em acusação. Este é o triunfo da leitura emocional sobre a compreensão política. Ao se canonizar o depoimento como “história para os nossos filhos”, o comentário tenta transformá-lo em memória oficial, quando ele é, na verdade, uma narrativa pessoal, hesitante e fragmentária. Assim, o grande gesto do filósofo, que pretendia abrir diálogo, é usado para fechá-lo. O apelo à reconciliação é transformado em combustível para o ressentimento.
Para mim, o depoimento devia ser lido, portanto, não como denúncia, mas como um espelho que reflecte a nobreza das intenções e a insuficiência dos instrumentos. Ele mostra como, em Moçambique, o problema não é apenas quem tem o poder, mas como o pensamos. Enquanto a consciência moral e a inteligência política não aprenderem a trabalhar juntas, o país continuará a oscilar entre o idealismo frustrado e o cinismo resignado. Em suma, a verdadeira licção talvez seja que não basta querer o bem. É preciso saber como o bem se faz. E isso exige, talvez, muito mais do que a pureza que todo o auto-intitulado crítico do sistema pensa caracterizar a sua própria pessoa. Exige método, paciência e imaginação política.
Chil Emerson
Eu concordo com isto, mas a forma como pensamos é por "culpa" de quem detém o poder... Infelizmente. Não há nada a perder em ter mais cérebros lá a debater pelo bem estar político - social, absolutamente nada. Este diálogo deve se despir de egos, da esquerda e direita, e metemos na cabeça que BOAS IDEIAS NAO DEVEM TER COR PARTIDARIA. Enquanto Moçambicano é assim que penso e sonho para com o meu país.
Nhanisse Jah
Chil Emerson segundo o PR, não é preciso fazer requerimento para participar deste diálogo. Que tipo de mecanismo mais aberto podemos ter para se considerar que todos têm lugar? Montar um requerimento?
Chil Emerson
Nhanisse Jah parar com isso é parte do processo. Isto aqui, a iniciativa deve vir do PR mesmo, não é para agradar ego dele (do VM) mas dos que o seguem, que figuram como parte do povo, ( aqui falo de representação)por algum motivo que infelizmente não pode ser ignorado. Essa manobra aí que você está a tentar fazer não bate irmão, não faz isso, não precisamos disso... Que seja algo formal para tudo seguir legalmente e todos ficarmos felizes.
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Rui Miguel Lamarques
O que o texto do Elisio Macamo propõe (e que muitos leitores têm dificuldade em aceitar) é precisamente uma inversão desse impulso de procurar “culpados”. A sua tese é que o problema não está só em quem detém o poder, mas em como o pensamos. Ou seja, o desafio é mais profundo do que a moral ou a alternância de partidos: é estrutural, cultural, cognitivo até. O raciocínio é incómodo porque desloca a crítica do terreno confortável da indignação para o campo mais árduo da introspecção. É fácil denunciar o poder; é mais difícil reconhecer que, mesmo quando o criticamos, reproduzimos as suas lógicas. A forma como discutimos, como idealizamos purezas, como nos dividimos entre heróis e vilões, tudo isso é já parte do problema que dizemos combater.
Quando o Elísio fala da “lucidez moral” e da “inteligência política”, ele não está a defender o cinismo nem a neutralidade; está a reclamar método e imaginação política, virtudes que faltam tanto aos que governam como aos que se dizem contra o governo. Porque querer o bem não basta, é preciso compreender as estruturas que tornam o bem exequível.
A tua observação sobre “culpa de quem tem o poder” é verdadeira no plano factual, mas talvez insuficiente no plano analítico. A dominação só se sustenta quando é pensada e aceite como natural por todos: também pelos dominados. A política moçambicana, como o texto sugere, vive desse ciclo de impotência: os que mandam perpetuam-se, e os que criticam não reinventam o campo de possibilidades.
A mensagem essencial é que não há emancipação sem imaginação política e essa só floresce quando a lucidez moral aprende a dialogar com a inteligência estratégica. Não basta ser honesto; é preciso ser eficaz. Não basta querer justiça; é preciso compreender o jogo. Só assim o país deixará de oscilar entre o idealismo frustrado e o cinismo resignado.
Eu, felizmente, abstenho-me de discutir essas coisas no meio de tanta gente ruidosa.
Nhanisse Jah
Chil Emerson sendo sincero, os egos são armadilhas perigosas que vibram ao sabor do sentimento diário. O VM como lider tem responsabilidade sobre os seus liderandos, e ele tem o dever de ser proactivo em algum momento para homogeneizar ideias divergentes. Não digo que Chapo não pode dar o primeiro passo, mas é arriscado olhando para o perfil "aristocrático' da personagem em questão. Por mim, VM, hi Makati, poderia "se entregar" e mostrar que tem vontade de diminuir o clima de tensão. A radicalização intelectual parte das decisões dos líderes, e eles devem mostrar um gesto (ou meio gesto) de querem o que todos querem, e não sentar e apontar. Repito, não digo que o PR não deve dar o primeiro passo, mas VM não está isento de responsabilidade, tomando em conta a abertura geral oferecida.
Chil Emerson
Nhanisse Jah são sim eu nem estou a negar ... Mas ego há lá no VM e na FRELIMO e, por mais incrível que pareça, na RENAMO... Não quero falar daquela tesoura que se acha uma Forquilha... Desculpem - me pelo termo usado mas me é intragável a pessoa. Não estamos estamos interessados nisso enquanto nação. Vamos lá pah, temos coisas por fazer, sair daquela lista maldita lista cinzenta, que nem quero dar nomes aos bois (culpas) e desenvolver este país ja chega de um país destruído e empobrecido cada vez mais por conta de egos...
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Nhanisse Jah
Rui Miguel Lamarques em suma, falta-nos o bom senso.
Nhanisse Jah
O grande problema deste país é o excesso de politização de opiniões. Não escutamos para perceber, mas para coar e retirar o que aparentemente nos beneficia. E isso não é falta de instrução, porque quanto mais instruídas as pessoas, mais politizadas ficam. O que nos falta mesmo é bom senso.
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Carolina Menezes Matos
Nhanisse Jah , na minha modesta opinião, o grande problema deste País é ninguém pensar em País de forma patriótica mas como uma "coisa" que serve interesses pessoais ou de pequenos grupos. O tal Povo de que tanto se fala não passa de um bordão que se usa para apoiar a caminhada para o púlpito.
Nhanisse Jah
Carolina Menezes Matos concordo sem tirar nada. Obrigado.
Orlando Bila
João X. Manhice

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