Tuesday, October 14, 2025

Interpretar

 Elisio Macamo

3 d 
Interpretar
Depois de analisar (portanto, depois de aplicar o mecanismo analítico), o passo seguinte é interpretar. Interpretar é indicar as circunstâncias exactas em que uma tese é válida. Não basta dizer “a corrupção faz mal ao desenvolvimento”; é preciso mostrar em que condições isso acontece e em que condições pode não acontecer. A interpretação é o momento em que o pensamento ganha precisão porque deixa de ser um juízo universal e passa a ser um juízo condicionado.
Interpretar é, portanto, delimitar. É reconhecer que uma conclusão não vale sempre, nem em todo o lugar, mas sob certas condições verificadas. Quando afirmamos que “a corrupção prejudica o desenvolvimento”, estamos a dizer algo que só se sustenta quando a corrupção mina a confiança e onde as instituições públicas são fracas. Em certos contextos, contudo, a corrupção pode funcionar como “lubrificante” de sistemas administrativos lentos ou como mecanismo de redistribuição informal, o que não a torna boa, mas altera o seu efeito económico. A sociologia do desenvolvimento dos anos sessenta recomendava a corrupção como um recurso importante para o desenvolvimento dos países em desenvolvimento...
Essa diferença entre verdade total e verdade condicional é o que distingue a análise ideológica da análise científica. Interpretar é o momento da humildade do pensamento, quando reconhecemos os limites daquilo que sabemos. Uma pessoa pode dizer assim: “O café faz mal à saúde.” É uma afirmação total que parece verdadeira, mas ignora contextos. Quando alguém analisa e interpreta, a frase muda: “O café faz mal à saúde quando é consumido em excesso, sobretudo por quem tem problemas de sono ou de coração.” Aqui, já não se fala de um mal absoluto, mas de um mal sob certas condições. A interpretação indica em que circunstâncias a tese é válida e, implicitamente, em que outras não é.
O mesmo vale para quase tudo no quotidiano. Dizer “trabalhar muito faz mal” é uma generalização; dizer “trabalhar muito sem descanso e sob pressão constante faz mal” é uma interpretação. Pensar assim exige a humildade de reconhecer que as coisas não são sempre, mas dependem (de contexto, de intensidade, de tempo, de pessoas, etc.). Mas aqui vai mais um exemplo. Há gente que acredita que o Chefe de Estado não devia ser, ao mesmo tempo, Presidente de um partido político. Para muitos cidadãos, essa acumulação de cargos enfraquece a democracia e cria desigualdade entre partidos. Já o Conselho Constitucional entende que a lei não proíbe essa situação e que, portanto, ela é legítima. Temos, assim, duas posições que parecem incompatíveis, pois uma é jurídica e outra moral.
O debate costuma parar aqui, com cada lado convencido de que tem razão. Mas a análise começa quando procuramos as condições em que cada posição faz sentido. A interpretação leva-nos a perguntar em que circunstâncias a acumulação de cargos seria prejudicial ao país. Talvez quando o partido controla todos os recursos do Estado e o Presidente usa a máquina pública para fins partidários. Mas também podemos perguntar em que circunstâncias essa acumulação não seria necessariamente um problema. Talvez num contexto de instituições fortes, fiscalização independente e cultura política plural. A interpretação, portanto, não escolhe um lado. Ela indica os limites de validade de cada argumento. Dizer que “a acumulação de cargos faz mal ao país” é plausível; demonstrar quando, como e porquê é que faz mal, isso seria interpretar. É também o que separa a convicção moral da compreensão política.
Um exemplo do que estou aqui a tentar explicar aparece, de modo involuntário, em “Moçambique Recolonizado através da Corrupção”. Hanlon escreve que, após o socialismo, “coisas que não eram permitidas nos ‘maus velhos tempos socialistas’, porque eram vistas como ‘corruptas’, são agora permitidas no novo mercado livre”, e que o FMI levou o mercado livre “mais longe do que na maioria dos países doadores”. Aqui ele reconhece implicitamente que nem toda a corrupção tem o mesmo significado em contextos diferentes: práticas antes vistas como “corrupção” tornaram-se legítimas sob a lógica do mercado. Se levasse esse raciocínio adiante, Hanlon poderia ter oferecido uma verdadeira interpretação mostrando quando e por que certas práticas se tornam destrutivas, e quando são apenas expressão de novas regras económicas.
Há quem veja nesta forma de pensar uma dicotomia falsa entre denúncia e análise, embora para mim a questão não seja escolher entre uma e outra. O problema surge quando a denúncia substitui a demonstração, quando o facto de uma crítica ser moralmente justa for tomado como prova de que é também verdadeira. Denunciar injustiças é necessário, mas confundir o acto moral com o acto analítico empobrece o pensamento. A denúncia pode ser o início da análise, mas nunca o seu fim. Outro equívoco está na forma como se entende a agência local. Reconhecer o papel das instituições financeiras internacionais não significa negar responsabilidade aos actores moçambicanos. Significa apenas perguntar como essas relações se formam, com que cumplicidades e sob que racionalidades políticas. Explicar a dependência não é desculpar o dependente, mas sim compreender o tipo de liberdade que ele tem e o modo como a exerce.
Também se diz que exigir “análise rigorosa” seria uma forma de elitismo ou purismo metodológico como se rigor fosse l(i)uxo académico. Rigor é a ética do pensamento, pois ele reside no cuidado de demonstrar a inferência antes de proclamar a conclusão. Quando pedimos rigor, não estamos a pedir distância emocional, estamos a pedir que a emoção seja acompanhada de verificação. Sem isso, a indignação torna-se retórica e o conhecimento, propaganda. Por fim, há quem veja neste tipo de crítica uma forma de conservadorismo, como se chamar à responsabilidade e à precisão significasse neutralizar a luta política. É o contrário. A verdadeira radicalidade está em compreender as causas, não apenas em nomeá-las (foi assim que Marx se distanciou de Feuerbach...). A denúncia moral pode mobilizar, disso ninguém duvida, mas só a análise é que transforma. Interpretar é, portanto, o que salva o pensamento da tentação moral de achar que ter razão é o mesmo que compreender.
Por isso insisto que interpretar é o momento em que a análise se transforma em compreensão. É quando deixamos de repetir o que é verdadeiro em geral e passamos a dizer em que circunstâncias é verdadeiro. A política, a ciência e até a vida pessoal seriam mais sensatas se fôssemos capazes de fazer algo tão simples quanto isso, isto é não querer ter sempre razão, mas saber em que condições a temos.
N.B. Tudo isto está no meu livro “Análise social para leigos” (Ethale). Só estou a dizer.

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