Governar com raiva
“Nós vamos expulsar! Seja ele general, sargento ou que patência [sic] tem [sic], chefe, nós vamos expulsar! Aquele que ousar cobrar 1 metical para um jovem ingressar na PRM, nós vamos expulsar, não há intocáveis aqui no Niassa, vamos expulsar, sim, senhora! Aquele administrador que [sic] no seu distrito haver [sic] venda de vaga e nós recebermos a denúncia, vamos expulsar primeiro o administrador, depois aquele que vendeu a vaga. É possível aqui no Niassa as pessoas trabalharem sem pagar. Ninguém vai pagar, se alguém pagar, tenham provas, venham ter comigo, se vos impedirem, escrevam no Facebook, eu estou sempre no Facebook, hei de encontrar lá e vamos expulsar!”
Há dias, o Secretário de Estado da Província do Niassa, num discurso, prometeu expulsar todos os que cobrassem dinheiro para facilitar o ingresso na PRM. Fê-lo num tom de indignação moral: “Vamos expulsar! Seja ele general, sargento ou administrador! Se alguém pagar, escreva no Facebook, eu estou sempre lá e hei de encontrar!”. Suponho que o público tenha aplaudido. Parecia coisa corajosa, sincera, até necessária. Só que quando a raiva moral substitui o raciocínio institucional, o Estado deixa de agir como Estado e passa a agir como chefe.
De longe, o discurso parece uma denúncia da corrupção. De perto, porém, é a reencenação daquilo que a torna possível, nomeadamente a personalização do poder. O governante fala não como representante de uma ordem jurídica, mas como figura carismática que promete justiça imediata. “Vamos expulsar” não é a voz de uma instituição. É a voz duma vontade. Não há referência a investigações, a processos disciplinares, a garantias de defesa. Nada. A expulsão antecede o inquérito, a moral substitui o procedimento e o zelo ocupa o lugar da razão. É assim que o autoritarismo se instala sem ter de gritar. Basta soar justo.
Vejo este problema em duas vertentes. Por um lado, há a inversão da legalidade que consiste no dirigente falar como juiz e executor, transformando a lei num acto de emoção. Por outro lado, há uma inversão do pensamento político, em que a corrupção é tratada como falha moral individual, e não como produto de uma estrutura que torna o emprego público a única via de sobrevivência para milhares de jovens. Ao prometer expulsar os culpados, o dirigente encena a luta contra o problema, mas não o combate. A indignação substitui a análise das causas.
A corrupção no recrutamento policial é antiga e estrutural. Resulta duma economia de escassez, duma administração capturada por redes de favores e dum sistema que exige pagamentos informais porque não oferece alternativas formais. Nenhum secretário de Estado, por mais bem-intencionado que seja, resolverá isso com ameaças públicas. É preciso compreender a lógica que faz com que jovens desesperados aceitem pagar e funcionários mal pagos aceitem receber. A raiva, nesse contexto, é apenas uma forma de auto-absolvição política, pois quem grita mais alto contra o mal sente-se dispensado de compreendê-lo.
Mais grave ainda é o efeito pedagógico deste tipo de discurso. Ao convidar cidadãos a escrever-lhe “no Facebook” para denunciar casos, o dirigente substitui as instituições por si mesmo. É um gesto de aparente proximidade, mas profundamente paternalista. O recado que ele dá é de não confiarem nas estruturas do Estado, mas sim nele. É o mesmo modelo de governação que há décadas mina a administração pública moçambicana, o da autoridade carismática que concentra a moral e o poder. Em vez de fortalecer o Estado, enfraquece-o, pois submete as regras à vontade pessoal. Este foi o grande problema da longínqua “Ofensiva Política e Organizacional”.
O que parece coragem é, na verdade, a teatralização da autoridade. O governante procura credibilidade não pela coerência das suas políticas, mas pela intensidade das suas emoções. É o populismo administrativo na sua forma mais pura, onde o poder se legitima pela raiva e se exime do pensamento. Ao transformar a luta contra a corrupção num espectáculo moral, a política abandona o terreno da razão pública e entra na esfera do ressentimento. O resultado é previsível, pois o medo substitui a confiança, a obediência toma o lugar da responsabilidade, e a palavra “expulsar” torna-se sinónimo de governar.
O discurso que vem do Niassa é, portanto, por um lado, um episódio de retórica inflamada, mas, por outro, um sintoma da forma como o Estado se compreende a si mesmo. Um Estado que fala por meio de impulsos, e não por instituições. Até certo ponto, podemos dizer que se trata dum Estado que age por indignação e não por norma, no qual parece normal substituir o raciocínio pela moral instantânea. No limite, é o retracto duma cultura política em que a autoridade se mede pela capacidade de humilhar o infractor, não de reformar o sistema. A raiva converte-se em método, e o método em espectáculo.
Governar é compreender (e pensar!). E compreender exige serenidade, método e respeito pelas formas. O combate à corrupção não se faz à margem da lei, mas dentro dela, e não se vence com frases de efeito, mas com instituições sólidas. Um dirigente que fala em expulsar antes de investigar compromete o próprio princípio que defende. Ao prometer justiça sem procedimento, anula a justiça. O maior desafio de Moz não é a falta de vontade moral, e sim a ausência de cultura institucional. Continuamos a confundir a força da voz com a força do Estado e a emoção com o pensamento.
É perigoso governar pela raiva, muito perigoso! Mas é, infelizmente, a escola da OJM, a dos jovens que tentam ser mais Frelimo do que a própria Frelimo porque cresceram numa estrutura que recompensa a ortodoxia e se tornaram os guardiões da pureza ideológica num partido que, em si, já vive de contradições e pragmatismos. É uma sobre-identificação que produz o efeito curioso de que, quanto mais distante a Frelimo real estiver dos seus ideais fundacionais, mais esses jovens se esforçam para representar a “Frelimo imaginária”, portanto, pura e moralmente incorruptível. É essa nostalgia fabricada que explica discursos como o do secretário de Estado, dum moralismo ruidoso, messiânico e teatral, que tenta compensar a falência institucional do partido com a retórica da pureza moral.
Tomas Mario
Simplesmente...inqualificável! Impressionante pobreza política! Como é possível termos, ainda hoje, indivíduos com este tipo de discurso, ocupando cargos públicos tão importantes quanto o dele?!
- Edited
Miro Guarda
Tomas Mario, mais velho, não será um sintoma do momento em que vivemos? O povo quer sangue a qualquer custo, e eles, os governantes, pressionados que estão, querem responder a esse clamor também a qualquer custo.
E o resultado? É este espetáculo gratuito que assistimos na nossa praça política. Nihowaiaa, apwaka!
Tomas Mario
Miro Guarda Um populismo cabotino!
Carlos Jonasse
Quando leio os discursos do SE de Niasa, sempre lembro-me do Livro "Governar é Pensar "do Professor Elísio Macamo. Esta obra devia ser de leitura obrigatória para todos os governantes moçambicanos. Este livro, compara-se à bíblia, aliás, tem uma espécie de 12 Mandamentos da Lei de Deus. Professor, na possibilidade do primeiro volume ter esgotado, sugeria que editasse o volume II e distribuísse aos governantes. É uma boa Bíblia! Vale a pena Ler!
Dennis Titosse
Elisio Macamo, pelo menos serve para manter acesa ou reacender a chama que conecta o poder à base. Sim, a política é, ou dever ser, feita de verdade e justiça - incluindo o primado do estado de direito democrático-, mas também de populismo.
Seria compreensível questionar se esses pronunciamentos são por estratégia meritória ou mera inocência. Se for o primeiro caso há “dolo”. Se for o segundo é parte do processo de construção do país que queremos.
Sansao Da Luz
Gratidão pela partilha da excelente recensão crítica Prof. Aquele discurso não passará das entrelinhas do papel. É objecto de “lavagem cerebral” com exacerbado populismo à mistura. Cogito que o seu alvo era o Xitsungo! Encenação teatral gratuíta, e mal executada.
Isabel Maria Casimiro
Assm andamos há muito. Não aprendem!
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