Elisio Macamo
3 d ·
A “sloganização” da análise
Falei da análise e da interpretação. Acho que agora chegou o momento de olhar para um tipo particular de erro. Ele ocorre quando a crítica parece análise, mas é apenas um slogan. É o que acontece quando uma constatação emocional é apresentada como se fosse uma demonstração racional. Infelizmente, há muito disso na nossa esfera pública. É promovido por partes das ciências sociais que acreditam piamente na ideia de que as suas convicções políticas (e até ideológicas no sentido negativo do termo) podem validar conhecimento científico.
Recentemente, um activista sul-africano afirmou, numa entrevista podcast, que “o ANC destruiu a economia da África do Sul”, citando o declínio visível de Joanesburgo como prova. A frase ecoa com força porque traduz uma frustração real, a saber a degradação urbana, o desemprego, as faltas de energia, etc., mas o raciocínio parou na constatação. Faltou o passo analítico que consiste em perguntar como se passou do governo do ANC ao colapso da cidade. Que papel tiveram as administrações locais, a privatização da energia, o declínio industrial, a herança espacial do apartheid, etc.?
Sem essas perguntas, a crítica converte-se em slogan, algo moralmente satisfatório, mas intelectualmente vazio. A razão é simples. O slogan nomeia o culpado; a análise procura o mecanismo. O slogan conforta; a análise desconforta. Quando não fazemos essa passagem, o que chamamos “lucidez” é, na verdade, apenas a forma mais convincente da nossa frustração. Tenho em mim que a sloganização da análise é o que mais empobrece o debate público. Num país onde as coisas não andam, constatar é fácil porque os problemas estão à vista de todos. Mas, sem análise, a reflexão fica prisioneira do imediato. Políticos e cidadãos passam a falar apenas das aparências: “melhorar infraestruturas”, “investir na educação”, “gerar emprego”. São propostas que respondem aos sintomas, não às causas. E porque tudo parece urgente, o curto prazo domina.
O problema com esta lógica é que ela cria um paradoxo. Quanto mais visível o problema, menos profunda é a solução. A política torna-se o espaço do reparo e não da transformação. O verdadeiro risco do slogan não é apenas o de simplificar o discurso, mas o de impedir o pensamento. E onde não há análise, não há visão e, sem visão, não há projecto. Justamente isto faz falta na maior parte das propostas políticas, portanto, uma compreensão do tempo longo dos problemas. Infraestruturas, educação, economia, etc., nada disso melhora por decreto, mas por reconstrução institucional, cultural e moral. Essa reconstrução é lenta e exige paciência estratégica. A política que promete resolver depressa está, quase sempre, a prometer resolver mal. A pobreza da nossa política reside aqui mesmo. Quer o novo governo, quer a oposição prometem soluções imediatas.
Pensar analiticamente é, acima de tudo, aprender a pensar com o tempo. O slogan fala do agora onde a análise fala do caminho. Só quando aprendermos a falar do caminho é que o país deixará de andar às voltas. Muitos dizem, a propósito, que os académicos não são úteis porque não trazem soluções. Mas o valor do trabalho académico está precisamente na maneira como ele nos ajuda a ver o essencial e a distinguir o que é estrutural do que é apenas visível. A boa análise não substitui a acção, mas orienta-a. Faz-nos mais modestos nas promessas e mais lúcidos nas prioridades. O académico não é quem tem respostas rápidas. É quem mostra onde as perguntas devem ser feitas.
Na política, por exemplo, é comum ouvir que “vamos combater a corrupção acabando com a impunidade”. É uma promessa que parece correcta, mas que não vai ao fundo do problema. Combater a corrupção não é apenas prender culpados. É mudar os incentivos, práticas e estruturas que a tornam vantajosa ou tolerável. O académico, ao analisar, ajuda a mostrar que o problema não está só na falta de punição, mas nas condições que a tornam recorrente, desde o modo como se financiam os partidos, até à dependência do Estado como fonte de renda. O mesmo acontece no quotidiano. Perante o desemprego, diz-se que “é preciso criar mais empregos”. A frase é verdadeira, mas vazia. O que significa “criar empregos”? Com que tipo de formação, em que sectores, com que modelo económico? A análise ajuda a perceber que o problema talvez não seja a falta de postos de trabalho, mas a falta de actividade produtiva capaz de os sustentar.
É por isso que o trabalho académico é indispensável. Trabalho académico sério, digo bem. Ele não apaga a urgência, mas coloca-a no seu lugar. Ele mostra que o essencial é, muitas vezes, invisível ao olho apressado da política e da opinião. A sua função pública é impedir que o país se contente com o imediato, que confunda movimento com progresso, e pressa com solução. Quando digo trabalho académico refiro-me à análise mais ou menos como a tenho tratado nestes textos. Um sinal claro dos estragos que a sloganização da análise já faz entre nós é a tendência de muitos de reagir com desconforto a quem aponta para problemas analíticos.
Este desconforto nota-se mais quando os problemas analíticos apontados se referem a algo que aponta para problemas que todos nós vemos. As reacções agressivas vão desde acusações de que a crítica protege os maus, passa pelo reparo segundo o qual a pessoa que apontou os problemas não seria cientista social (é apenas um jornalista, diz-se, como se fosse não problema deixar um jurista dar dicas de saúde que podem prejudicar um doente apenas porque é jurista, não médico...) até às habituais e previsíveis invectivas contra quem consideramos equivocado logo à partida por ser politicamente suspeito (eu, no caso!).
Eu acredito que em países como o nosso, onde tudo parece urgente, o pensamento é o primeiro serviço público que se deve proteger. Só que não é fácil onde os problemas parecem tão óbvios ao ponto de convencerem muita gente que é extremamente perspicaz. Conheço o problema cá das Europas, onde qualquer pessoa julga entender o que está errado com o continente africano...
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