quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Da democracia partidária e o artigo 74 da Constituição


Introdução
A recente revisão constitucional, ao introduzir a designação dos candidatos a presidentes dos municípios por via da modalidade de cabeça de lista, veio suscitar, no processo da sua implementação pelos partidos políticos, problemas cuja relevância não se confina aos partidos envolvidos.
O facto de que esses problemas evidenciam essencialmente a mesma natureza, obriga a uma reflexão séria, já que nos termos da própria Constituição, no n°1 do artigo 74, «Os partidos expressam o pluralismo político, concorrem para a formação e manifestação da vontade popular e são instrumento fundamental para a participação democrática dos cidadãos na governação do país». Por conseguinte, a qualidade da nossa democracia há-de necessariamente resultar, ou há-de estar à medida, da assunção pelos partidos desses desiderata inscritos na Constituição.
Na fase de designação dos candidatos a cabeças-de-lista ocorreram situações em que estes resultaram, ou podem ter resultado estatutariamente, da indicação do Presidente do partido (tal terá sido o caso do MDM), outras em que trânsfugas de um partido caíram de pára-quedas noutro, para logo ficarem cabeças-de-lista, ao arrepio dos militantes naturalmente candidatáveis (tal terá sido o caso da RENAMO), e ainda aquelas situações em que procedimentos de afastamento de candidatos foram questionados publicamente pelas presumíveis «vítimas» (caso da Frelimo).
Considero importante empreender-se um esforço de análise objectiva dessas situações, formalmente diversas, mas em princípio apenas formalmente diversas, para se identificar a natureza desses fenómenos. Essa análise só pode ser relevante se assumir uma perspectiva supra-partidária, porque, como disse, essas situações prendem-se com a qualidade da nossa democracia, o que consubstancia um interesse que é de toda a sociedade.
A perspectiva da Constituição é justamente aquela que nos coloca na linha dessa objectividade, já que ela, a Constituição, é, por definição, apartidária, e assenta em valores que são, inquestionavelmente, do consenso de toda a sociedade e de todos os partidos.
Será, pois nessa perspectiva, e apenas nela, que me vou situar.
Da Constituição
Na prática as vicissitudes do processo de designação de candidatos a cabeça-de-lista são encaradas como questões internas de cada partido, e, mesmo nas situações mais gritantes de inobservância dos princípios mais elementares de democracia, assume-se uma atitude de tolerância, de complacência ou de mansidão crítica. Próprias de um ambiente em que, havendo tantos telhados de vidro, ninguém quer atirar pedras.
Sendo que no funcionamento da nossa democracia, e, diga-se, no de tantas outras, as escolhas do eleitorado são limitadas ou condicionadas pelas escolhas dos partidos, se estas não obedecerem a princípios estritamente democráticos, a sociedade corre um sério risco de ser levada a fazer escolhas não democráticas e até mesmo antidemocráticas.
Eis porque a Constituição não poderia ser omissa a este respeito.
Com efeito o n°2 do artigo 74, que contém o princípio que transcrevi mais acima, estabelece de forma clara que «A estrutura interna e o funcionamento dos partidos políticos devem ser democráticos».
Isto é, não só a «estrutura» fixada nos estatutos deve ser democrática, como o próprio «funcionamento». Por outra palavra, a vida dos partidos, deve ser democrática.
Este é um comando constitucional e, como qualquer outro comando, não é de observância opcional mas imperativa. Nem é de carácter programático mas vinculativo.
Da operacionalização do comando constitucional
Assumida a clareza do comando constitucional e a vinculação dos partidos à sua observância, a questão que se coloca a seguir é a de como se operacionaliza a sua obrigatoriedade. Em princípio devemos encontrar a resposta na lei ordinária, a qual pode ser omissa, esparsa ou lacunosa, sobre a matéria.
Vejamos então o que a Lei N°14/92, de 14 de Outubro, estabelece sobre este assunto:
O Artigo 3° (Regras básicas) desta Lei, em consonância com a Constituição, preconiza no n°1, alínea h), «não ter natureza antidemocrática», no n°2, alínea a), «definir os seus objectivos políticos, sua estruturação interna e seu modo de funcionamento».
Na alínea c) do n°2 do Artigo 6°, estabelece-se que os estatutos devem conter, entre outras indicações, «os objectivos e princípios por que se rege o partido, designadamente o princípio da eleição democrática e de responsabilidade dos titulares dos seus órgãos»
Estes e outros requisitos são submetidos ao crivo do Ministério da Justiça no requerimento para a constituição dos partidos, e de cuja decisão cabe recurso para o Tribunal Administrativo.
Ora, uma vez aprovados os Estatutos contendo aqueles requisitos, que consubstanciam os princípios fixados no artigo 74 da Constituição, a questão que se coloca, e que é da maior relevância, é a seguinte: o que acontece se, na prática, esses princípios constitucionais e legais não são observados?
Das competências do Conselho Constitucional
Como disse atrás, em matéria de democraticidade, as questões que se suscitam na vida dos partidos têm sido encaradas como estritamente internas, e relegadas ao seu foro privado. Mas tal não passa de mero equívoco, porque se assim fosse delas não cuidaria a Constituição e ainda menos a lei ordinária.
Por isso a Constituição previu, entre as competências do Conselho Constitucional, na alínea f) do n°2 do artigo 244, a de «julgar as acções de impugnação de eleições e de deliberações dos órgãos dos partidos políticos».
Significa que quando ocorrem situações litigiosas na vida dos partidos, elas podem encontrar solução satisfatória e pacífica dentro dos próprios partidos. Mas pode dar-se o caso de não haver resposta consensual. Quando estão em causa ou em litígio prerrogativas de membros, individualmente, é normal invocar-se a disciplina partidária para se pôr fim ao litígio. E normalmente os membros, de boa ou de má vontade, acabam por se submeter, convencidos da justeza das soluções ou convencidos de que não existe outra via, de que não há nada a fazer. Sobretudo convencidos de nada poderem fazer contra o peso esmagador dos aparelhos partidários.
Ora a disciplina partidária não é algo que se sobreponha aos direitos dos membros, a tal ponto que, em nome dela a eles se deva renunciar. Sobretudo não pode a disciplina partidária servir para encobrir violações dos estatutos e para calar quem seja prejudicado por tais violações.
Por outro lado, a dimensão partidária não se pode sobrepor nem à Constituição nem á lei, e a filiação partidária não significa nem implica renúncia de cidadania. Antes de se ser membro de um partido é-se cidadão, e permanece-se cidadão sempre. De tal forma que se um membro de partido se vê prejudicado, de forma injusta e anti estatutária, e não consegue fazer valer o seu direito no quadro do partido, como cidadão, ele tem a prerrogativa de requerer ao Conselho Constitucional a reposição da legalidade estatutária se esta tiver sido violada.
Certamente muitos acharão estranha a ideia de um membro pleitear contra o seu partido. Mas na realidade não está rigorosamente a pleitear contra o partido, mas contra decisões ou deliberações de órgãos ou de dirigentes do seu partido.
E isso só será estranho num clima ou numa cultura dominada pelo endeusamento, pelo culto da personalidade ou pela usurpação dos direitos dos membros pelos aparelhos partidários. Já num Estado de Direito Democrático efectivo tem de ser considerado absolutamente normal.
Assim, nos desenvolvimentos que nos é dado observar, tanto os casos de evidente pára-quedismo, como naqueles chamados de «democracia a dedo», como naqueles em que candidaturas foram afastadas «de forma menos clara» ou de forma «não explicada», todos eles podiam dar lugar a impugnações junto ao Conselho Constitucional.
Sem dúvida que teria sido do interesse da sociedade e do Estado de Direito Democrático ver tais situações esclarecidas ou decididas com toda a objectividade e transparência.
Ao fazer estas análises e considerações não estou dizendo algo de estranho ou de inaudito. O Partido Frelimo, que na verdade, quer se goste quer não, tem sido a matriz de onde os demais partidos replicam normas e práticas, à medida das suas conveniências, passou por fases diferentes daquela em que estão agora a ocorrer as situações a que aludi. Apenas para fazer um breve relance que reavive a memória dos contemporâneos e dê a conhecer aos que vieram depois, relevemos o seguinte:
Quando o Dr. Eneias Comiche, actual cabeça-de-lista da Frelimo para cidade de Maputo, foi candidato a Presidente do Município, foi-o numa ampla e concorrida Conferência Eleitoral em que disputou a designação com um oponente de grande peso, o Dr. Teodoro Waty. Foi uma disputa renhida que se prolongou quase até à boca das urnas. A inquestionável democraticidade do processo conferiu grande legitimidade ao vencedor, primeiro dentro do Partido e, depois, como Presidente eleito do Município.
Mas já na tentativa legítima de renovação do mandato o processo obedeceu a outra norma, entretanto introduzida no Partido Frelimo: a de que a eleição dos candidatos deixava de ser em Conferências Eleitorais para passar a ser competência dos Comités ao nível de cada autarquia. Esta alteração, certamente ditada pela necessidade de maior dirigismo dos processos, evidenciou uma drástica redução da democraticidade que tinha caracterizado os processos anteriores. Daí resultou que, apesar do grande prestígio e popularidade granjeados, no seio do Partido e na sociedade, graças ao seu desempenho, o Dr. Eneias Comiche, na eleição restrita ao Comité da Cidade, perdeu para David Simango.
A evolução das regras ou dos procedimentos eleitorais no seio do Partido Frelimo manteve-se nessa lógica até hoje. Mas é importante referir que essa evolução não tem ocorrido sempre de forma tão pacífica e unânime. Recordemos que, aquando do processo que culminou com a designação de Filipe Nyussi como candidato da Frelimo para as últimas eleições presidenciais, a lista fechada de três candidatos que tinha sido decidida pela Comissão Política, teve que ser aberta por pressão de franjas significativas do Partido, e por força, finalmente, da posição da ACCLN, expressamente inconformada com o carácter fechado dessa lista. Com a abertura conferiu-se, de algum modo e naquelas circunstâncias, maior democraticidade ao processo.
Para dizer simplesmente que a contestação ou «rebeldia», a que assistimos hoje, prende-se fundamentalmente com esta problemática da democraticidade dos processos, e vai levar forçosamente ao repensar de normas e procedimentos. Porque, na minha opinião, e na de muitos, no contexto de uma democracia efectiva e mais ampla, certamente que não fariam sentido algum essas contestações ou «rebeldias».
Em conclusão
É imperioso que os partidos observem a Constituição da República nos seus estatutos, na sua estrutura e no seu funcionamento. Mas para que isso se efective é imperioso que os militantes dos partidos não percam nunca de vista que são cidadãos cujas prerrogativas não são diminuídas nem subalternizadas pela condição de militantes. Que a sua condição de cidadãos não é apropriada pelos partidos.
A democraticidade do funcionamento dos partidos, não é interesse privado dos partidos, antes constitui condição indispensável da democracia e interesse fundamental do Estado. Por conseguinte, não deve ser ignorada, prejudicada ou negligenciada.
Teodato Hunguana

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