quarta-feira, 11 de julho de 2018

ÁFRICA DO SUL: A DESCIDA AO CORAÇÃO DAS TREVAS


ÁFRICA DO SUL: A DESCIDA AO CORAÇÃO DAS TREVAS
"Há que ter homens que possuam uma moral… mas que ao mesmo tempo sejam capazes de utilizar os seus instintos primordiais de forma a matar sem qualquer sentimento ou paixão, sem crítica… sem qualquer criticismo… pois é isso que nos derrota(...) Não há nada que eu mais deteste que o cheiro da mentira". - Esta, e outras, são citações extraídas e adaptadas do filme ‘Apocalypse Now’ "
17 de Fevereiro. O ‘747’ aterra no aeroporto de Jan Smuts, Johannesburg, a cidade do ouro, como gostam de lhe chamar os ‘boers’ sul-africanos. À saída do avião um elemento das forças armadas está à minha espera. Encaminha-me para um local reservado da aerogare longe dos outros passageiros. A alfândega já sabia quem eu era: o passaporte é verificado mas não lhe colocam qualquer carimbo. A bagagem é também imediatamente recolhida.
O militar, quase um puto, desaparece por uns segundos. Regressa e leva-me a outra sala, onde sou apresentado à secretária do Orlando Cristina, a Lucinda Feijão. Vejo uma simpática senhora de uns cinquenta e alguns anos. Lucinda, tal como Cristina e Fernandes, era uma antiga residente da cidade da Beira, onde o marido fora engenheiro técnico. Trabalha com a R.N.M. desde os tempos da Rodésia, praticamente a partir do início do movimento, em 1977. Um dos seus irmãos, Serras Pires, caçador, será preso dois anos depois em 1984, na Tanzânia, e levado para Maputo, acusado de ligações à Resistência, Mas essa será outra história ainda distante.
Bom, a Lucinda… um metro e setenta de altura suportam este rosto aquilino encimado pelo cabelo grisalho em caracóis largos. Há muito que não via senhora tão simpática e palradora, a querer agora aqui em meia dúzia de quilómetros explicar-me toda a África do Sul actual, Moçambique e a Resistência.
LA COURT MONIQUE: A PENSÃO DA MORTE LENTA, UM REDUTO PARA A RENAMO DIRIGIDA PELO EX-PIDE ‘CARVALHO DAS BARBAS’
Estamos a bordo de uma station VW Passat castanha perigosamente conduzida pela Lucinda e apontamos a Eastgate, um dos modernos centros comerciais de Johannesburg, onde almoçamos umas ‘cheese toasts’ (tostas de queijo), seguindo depois para Pretória. Estou com uma constipação terrível, resultado do ar seco da cabina do 747, sei lá, e ela recomenda-me umas gotas homeopáticas que só aumentam a farfalheira. Bom, rumo a Pretória, não é esse o objectivo? Quase não tenho tempo de antena para falar tal a palradeira dela.
Na capital, sou deixado na ‘La Court Monique’, na Pretorius Street, inteiro e feliz da silva por estar vivo após esta condução louca. Orlando Cristina chama-lhe a ‘pensão da morte lenta’ e é uma residencial usada maioritariamente por trabalhadores emigrantes portugueses. ‘La Court Monique’, tal como o ‘Grand Hotel’ em Johannesburg, é um estabelecimento hoteleiro pertencente a portugueses e com ligações muito especiais à A.M.I., a Divisão de Inteligência Militar da África do Sul.
A residencial em Pretória já albergara no passado outros quadros da Resistência: Fanuel Gideon Mahluza, um dos representantes no exterior, e Constantino Reis, um universitário fugido ao regime, estiveram aqui, embora negros, no seio da mais branca e conservadora das cidades sul-africanas e onde as leis do ‘apartheid’ funcionavam a 100%.
À frente do negócio da ‘La Court Monique’ está o Carvalho, o ‘Carvalho das Barbas’, um dos antigos chefes da PIDE em Angola. O genro, que auxilia na gerência, é um tal José Carlos Monteiro, ex-militar português em Angola, e se tornara mais tarde mercenário, ao lado da UNITA e sul-africanos, na coluna que tentou marchar sobre Luanda. Integrando depois o exército rodesiano de Ian Smith, participou em ‘raids’ contra bases da ZANU de Robert Mugabe em Moçambique.
Um operacional transformado agora em pau para toda a obra, desde condutor a estafeta. Continua com um porte atlético nos seus trinta e tal anos. Uma cabeleira castanha levemente encaracolada emoldura um rosto talvez rugoso demais para a idade onde despontam uns penetrantes e frígidos olhos azuis. Por tudo o que fizera e me relatara, evidentemente, o Monteiro viveria doravante nessa frieza polar dos que já tinham marchado até esse gélido coração das trevas, odisseia macabra que o marcara para todo o sempre: "Liquidávamos tudo’, revela-me com orgulho. ‘Aquelas granadas de fósforo dentro das palhotas... era um espectáculo! O que me custava mais a fazer era abater as cabeças de gado..."
Finda a guerra da Rodésia, Monteiro estabelece-se na África do Sul sendo um dos comandos que participa no ataque sul-africano a casas do ANC (o Congresso Nacional Africano) na Matola, junto a Maputo, em 31 de Janeiro de 1981. Das forças especiais passa a elemento da Divisão de Inteligência Militar, o A.M.I., em tarefas de coordenação e de logística no apoio à R.N.M., tendo alcançado a patente de ‘staff sergeant’. É aqui que se mantém agora.
O ZANZA BUILDING, DE PRETÓRIA, CENTRO DO FURACÃO DE TODA A DESESTABILIZAÇÃO NA ÁFRICA AUSTRAL
É uma Sexta-feira, 18 de Fevereiro. Logo pelo esplendor das oito horas da matina levam-me ao verdadeiro foco da ‘desestabilização’ sul-africana para os países vizinhos. Pretória não é grande e de carro são uns cinco minutos apenas. Estamos no décimo primeiro andar do Zanza Building, no n.º 116 da Proes Street. Este centro de operações funcionara anteriormente no próprio edifício do Ministério da Defesa, o Poyntons, na Kerk Street (ou Church Street, a Rua da Igreja, se quiserem, aqui temos os nomes em inglês e africaans), a dois quarteirões de distância.
Agora, este autêntico ‘centro do furacão’ encontra-se num local um pouco mais discreto, embora quase todo o Zanza albergue instalações relacionadas com a defesa, nos seus catorze andares. No décimo primeiro, além da ‘Mozambique Desk’ funcionam os gabinetes que tratam das actividades contra outros países-alvo: Angola, Zimbabwe, Botswana, etc. Todo este piso pertence à A.M.I. e é gerido por um general, meramente administrativo. Na prática, o poder de decisão está nas mãos de um brigadeiro, o brigadeiro Botha, isto, no início de 1983.
Quanto à ‘Mozambique Desk’, esta é dirigida por Charlie Van Niekerk, na altura coronel, coadjuvado pelo major Kayser. Charlie é código, entenda-se, o homem chama-se Cornelius. Ou é código ou não grama do nome, pronto! Isto são postos de promoção rápida, estas secções de ‘operações sujas’, e o major Kayser será promovido a ‘commandant’ - equivalente ao nosso tenente-coronel - em 1984, e Van Niekerk tornar-se-á brigadeiro em 1986. E quanto ao historial desta gente? Bem, o Kayser fora já oficial de ligação entre a R.N.M. e a África do Sul nos atribulados tempos da Rodésia em que o regime de Ian Smith dava os últimos estertores. Baseado em território rodesiano, reportava a Van Niekerk, aqui em Pretória.
A história de ‘Charlie’ é mais completa: pode-se apontar Charlie Van Niekerk como o militar sul-africano, destes tempos, mais ambientado à questão de Moçambique e um dos mais envolvidos no processo de apoio à RENAMO. A sua ligação aos assuntos moçambicanos remonta à época da guerra colonial, à era de Kaúlza de Arriaga, desempenhando então as funções de conselheiro militar. O 25 de Abril de 1974 vem apanhá-lo precisamente em Nampula na região norte de Moçambique e onde se encontrava o comando operacional.
Deve ser de facto verdade o que dizem, matuto. Toda uma miscigenação atingiu os primeiros ‘boers’, os emigrantes holandeses e outros, envolvendo as populações indígenas. De vez em quando essas ‘ligações proibidas’ transparecem no fenótipo, sobem inegáveis até cá acima vindas da profundidade dos genes, mesmo ao fim de gerações: ruivos com traços negróides e pele mais escura do que seria de esperar. Pouco há de ariano ou nórdico em vários dos oficiais superiores que conheci e Van Niekerk era mesmo um ‘caso exemplo’ pois: cabelo ligeiramente ruivo e encrespado de facto, de tal forma que, olhando para ele sem se saber que era um ‘boer’, podíamos bem dizer que estávamos na presença de um mestiço. Com cerca de um metro e oitenta, magro, mantém um porte militar impecável mas é alguém de trato muito fácil, uma simpatia e... fala bem português. Muitíssimo bem, aliás.
Nas três salas do Zanza referentes a Moçambique trabalham também Orlando Cristina, Lucinda Feijão, José Carlos Monteiro (o tipo da residencial), o piloto português João Quental e, por pouco tempo, Antero Machado, um outro português residente em Johannesburg, amigo de Quental e de Orlando Cristina, e dono de uma agência de publicidade.
E eu? Pois bem, cá aterrei e fico igualmente no Zanza, pelo menos de Fevereiro a Julho de 1983, orientando a partir daqui o trabalho da ‘Voz da África Livre’. José Carlos Cabrita, também português e anterior responsável da emissora, tivera acesso ao Zanza em 1982, mas deixara entretanto a R.N.M. e fora trabalhar para a Swazilândia, na sequência de sérias divergências com Cristina. É uma conversa, um tema que de vez em quando ainda vem ao de cima. Será que há mesmo algum mau feitio no secretário-geral? Como irão ser as coisas daqui para a frente?
João Quental é um dos pilotos dos decrépitos ‘Dakota’ DC-3 do lote que a Força Aérea sul-africana ainda mantém, pelo menos para as ‘cagadas’ nocturnas, fazendo regularmente missões secretas de reabastecimento às zonas da Resistência e aterragens na Gorongosa e noutras partes de Moçambique. Em fins de 1984, já como piloto civil, seria detido numa das viagens que efectua a Maputo. As autoridades moçambicanas viriam a libertá-lo no início de 1988. Quanto a Antero Machado, distinguir-se-ia mais como artista plástico. No passado, traçara alguns panfletos para a
R.N.M. Agora, em princípios de 1983, acaba de escrever uma pretensa ‘nova Constituição’ para Moçambique, um texto sem quaisquer pés nem cabeça, dos pontos de vista político e jurídico.
Além das pessoas estritamente ligadas a cada um dos países-alvo, existem no Zanza secções que dão apoio às diversas ‘desks’, como a secção de Propaganda ou Guerra Psicológica que tem à frente o coronel Grayling, e a de Logística, encabeçada pelo coronel Groblar. Com o Grayling hei-de trabalhar amiúde, claro! Então estou aqui é mesmo para isso ou não é? Muita ‘informação’, desinformaçãozeca e propaganda a rodos para auxiliar o esforço de guerra da Renamo, ou será que já me esqueci pró que vim?!
Ora, alguns desses mesmos traços que já atrás apontei e que mostram uma certa mistura genética estão presentes também neste outro coronel. O aspecto geral em termos de estatura é porém completamente diferente. Se com Van Niekerk tínhamos um ‘Trinitá’ mais envelhecido e magro, aqui temos o autêntico ‘Bud Spencer’ neste corpanzil, cabelo escuro mas igualmente crespo, tez morena (já de nascença ou crestada por este inclemente sol tropical?, interrogo-me) e Grayling fala em voz que concorre em timbre com os ecos mais telúricos trazidos pelo trovão, compassada e segura.
Durante os meses seguintes terei uma liberdade quase total no respeitante à execução dos textos e direcção da emissora. Durante a maior parte do horário de trabalho, das 08h00 às 12h30 e das 13h15 às 16h30, escrevinho textos, bebo coca- cola, revia comunicados de guerra, mamo coca-cola, esboço um ou outro panfleto e fazia a escuta de estações de rádio a sorver coca-cola. De vez em quando, um briefing, reunião de trabalho, com Kayser, Grayling ou Van Niekerk, a arrotar coca- cola pelo nariz.
Ao longo dos primeiros dois meses, Orlando Cristina esteve quase sempre ausente, em digressão pelos Estados Unidos e pela Europa, participando na segunda semana de Março numa conferência do movimento, em Kiel, no norte da Alemanha Federal. E a tentar tratar de uma reforma, a sua própria, acho eu.
Quarta-feira, 23 de Fevereiro.
Atinge o auge a celeuma provocada pela publicação, na revista sensacionalista sul-africana ‘Scope’, de um alegado ‘Relatório Veloso’, Jacinto Veloso é então o ministro da Segurança, em Moçambique, comprometendo círculos políticos e militares portugueses com a FRELIMO. Segundo a revista, trata-se de documentos inéditos e divulgados pelo renegado da Segurança moçambicana, Jorge Costa. Lembro-me que, ainda em Lisboa e discutindo com Orlando Cristina a situação e revelações de Costa, o secretário-geral da R.N.M. havia-me confidenciado ser forjada grande parte de tais informações, mas que iria ser desencadeada brevemente uma campanha empolgante orientada pela BOSS-NIS, a polícia de segurança de Pretória. (...)
Paulo Oliveira está em Pretória.
O Zanza. Neste prédio funcionavam várias instituições da segurança e militares, enformando a AMI - a Divisão de Inteligência MIlitar. Trabalhei durante 1983 e 1984 na Mozambique 'desk' / Renamo que funcionava no 11º andar, um dos pertencentes à AMI, e nomeadamente ao seu DST - Directorate of Special Tasks.

1 comentário:

Varela, o Gigante disse...

Bom dia,

Sou jornalista da revista Sábado e gostaria muito de falar com o autor deste texto por causa de um trabalho que estou a fazer.

Por favor, se ler este comentário, escreva-me para tvcarrasco@gmail.com.

Muito obrigado.