A
dopto o conceito generalizado
de inclusão como
movimento de resposta a
demandas das camadas habitualmente
marginalizadas e exclu-
ídas que as sociedades, seja por via
do mercado, seja por via das institui-
ções, não vem abordando.
E porque surge este movimento? Jamais
como hoje houve tanta liberdade
política e tanta informação a circular,
mas jamais como hoje há tanta
pobreza e a sua face visível a falta de
emprego para muitos, a par de uma
enorme acumulação de riqueza. Ou
seja, jamais como hoje há tanta desigualdade.
A dominação do capital
financeiro não fez mais do que agravar
a tendência que a equação 99/1
bem exprime.
No meu país é no campo que estas
temáticas se combinam de forma
aguda: aí vive um pouco mais de dois
terços da população, tornando o País
dos menos urbanizados do mundo.
O PIB per capita é de 645,80 USD
(2013), muito mais baixo no campo,
como de resto acontece em relação
aos camponeses africanos: aí os pobres
não têm futuro e vêem-se excluídos
para todo o sempre, eles e os
filhos, da possibilidade de melhorar
a sua vida. Há um “social divide” que
por disperso geograficamente é menos
visível do que nas cidades, mas
não é menos real.
Vou utilizar duas linhas de força no
meu raciocínio: o primeiro vem de
um estudo recente de dois autores
britânicos, Teresa Smart e Joseph
Hanlon, residentes há longos anos
em Moçambique que estudaram a
estratégia seguida no domínio da
agricultura que eles, reportando-se
ao académico moçambicano João
Mosca, qualificaram de estratégia
dual: grandes empresas por um lado
e apoio à agricultura de subsistência
das famílias rurais, por outro.
A crença nas grandes empresas, primeiro
estatais na época do socialismo,
foi substituída pela esperança
do investimento das grandes empresas
multinacionais do agro-negócio.
Ora, argumentam os dois autores,
o agronegócio na sua componente
agrária é um investimento a longo
prazo, requer o que se qualifica de
“patient capital”, muitas vezes ligado
a famílias que querem deixar algo
para os netos.
Nas restantes empresas, há uma
componente na qual elas são, senão
indispensáveis, pelo menos eficazes
como na comercialização, nas redes
de transporte internacional, na
marca. Mas como grandes empresas
cotadas em bolsa sofrem os efeitos
do capital financeiro, vendem-se e
revendem-se, adquirem largos peda-
ços de terra por concessão e um dia
o capital falta, desaparecem. No que
respeita à produção propriamente
dita, a economia de escala que
nos seus países de origem aparece
hoje como vantagem, pode não o
ser quando se trata de investimento
recente, com diferenças de solos
e de ambiente pouco dominados.
Em suma, muitos desses chamados
grandes investimentos não produzem
os resultados esperados.
A questão camponesa é uma questão social
Por Óscar Monteiro*
Em alternativa opõe-se a maior efi-
cácia do pequeno e médio produtor
que conhece cada pedaço dos seus
3 a 4 hectares, qual a zona húmida,
qual a melhor adaptada a determinada
cultura. Este produtor pode
nascer por iniciativa autónoma sobretudo
em zonas de grande rentabilidade:
assim o tabaco e soja
permitiram a emergência de 68.000
pequenos e médios agricultores comerciais
de sucesso em dez anos,
com um padrão de vida razoável e
incomparavelmente superior aos
restantes camponeses. Pode também
nascer a partir dos contratos de produção
com grandes empresas que
vão abandonando ou nunca adoptaram
a produção directa preferindo,
em vez disso, financiar em insumos
agrícolas os produtores locais.
Já o problema dos camponeses de
subsistência é outro, argumenta-se,
não conseguem elevar a sua produtividade
trabalhando apenas com a
sua força de trabalho e da sua famí-
lia imediata. As áreas são pequenas
de mais para justificar um investimento
acima da enxada e o resultado
ressente-se. Mera subsistência é
um estado, não um projecto de vida.
E tudo isso conduz à exclusão.
Eu acrescentaria uma constatação
fundamental: a questão camponesa
tem vindo a ser tratada como questão
agrícola e não como questão
social. Tem sido matéria de técnicos
agrícolas, mas não de analistas
sociais, melhor dizendo enablers
sociais.
Ora, pelo menos na presente fase,
os resultados económicos da produção
devem preocupar-nos não
tanto pela sua contribuição para
o PIB nacional que é importante,
mas sobretudo na medida em que
aumentam a integração social dos
camponeses na sociedade. Por isso a
questão deve ser trazida para o centro
do debate social e a ela se devem
juntar todas as forças sociais empenhadas
na justiça social.
A segunda linha de pensamento é
a que respeita às comunidades e às
terras comunitárias. Uma iniciativa,
por sinal de doadores, agora a ser
endogeneizada por moçambicanos,
vem promovendo a delimitação das
terras comunitárias, de forma a garantir
no quadro legal os direitos das
comunidades sobre a sua terra.
De 2006 a 2014 foram delimitadas
terras comunitárias e o programa do
novo Governo acaba de incluir as
comunidades (e também os pequenos
e médios agricultores) num ambicioso
plano de garantia de posse
de terra. Na óptica prevalecente, um
dos objectivos vinha sendo garantir
direitos da comunidade para assegurar
uma relação contratual segura
com o potencial grande investidor.
Mas a espera pelo investidor não
está a ter o sucesso esperado. Em
contrapartida, um novo filão está a
brotar: nas terras já delimitadas e
tituladas, os membros das comunidades
já estão a fazer, por sua iniciativa,
pequenos investimentos que
somados têm elevado a produtividade.
Quid do financiamento das acções
de promoção e investimento agrí-
cola nas comunidades? A legisla-
ção moçambicana tem disposições
progressistas na matéria. Já não se
considera que todas as receitas decorrentes
da exploração dos recursos
naturais pelos chamados investidores
tenham de ir para o Orçamento
do Estado que depois faria a sua
distribuição balanceada por todo o
país.
A nova legislação mineira e petrolífera
adoptada em 2005 não é uma
invenção moçambicana, mas o seu
carácter sistemático em todas as
áreas é profundamente inovador ao
estabelecer como regra a comparticipação
das comunidades em todas
as receitas geradas na sua região.
O mecanismo é de um “fundo de
desenvolvimento comunitário vocacionado
para interesses próprios
da respectiva comunidade’’ e os mecanismos
de gestão destes fundos
devem ser estabelecidos pelas pró-
prias comunidades. Isto decorre do
facto de se ter estabelecido que, nesta
sua fase inicial (2013) em 2,7%
a percentagem das receitas geradas
na extracção mineira e petrolífera
que é canalizada para as comunidades
por via dos orçamentos dos
Governos distritais. Para esse ano
de 2013, foram apurados os valores
e beneficiadas várias comunidades
num montante global de 30,049,2
Mil Meticais (cerca de 1 Milhão de
Dólares). A estas receitas, acrescem
outras, incluindo uma taxa dos 20%
pela exploração florestal e faunística.
O processo de operacionalização
destes fundos de forma a salvaguardar
os interesses e decisão das
comunidades está em curso e um
grupo de OSC liderado pela Fundação
para o Desenvolvimento da
Comunidade (FDC) está a tentar
a ajudar o Governo, mas numa
perspectiva de defesa dos direitos e
interesses das comunidades, vistas
como parceiras e não como “bene-
ficiários”, a ajuda que entregam não
tem obrigação de reembolso. Iniciativas
generosas acabam por cair no
caritativismo e retiram à produção
o seu carácter essencial e secular de
acrescer riqueza e de criar progresso,
perpetuam o síndroma da dependência
que é ainda uma forma de
exclusão social.
Uma ideia que nos surge neste momento
seria a de procurar não fazer
destes fundos como se de um donativo
se tratasse, mas sim procurar
“reciclá-los” de modo a que sejam
utilizados para relançar a economia
local através de projectos produtivos
ou de geração de rendimentos.
A experiência de Cabo Verde subjacente
no conceito de “reciclar a
ajuda”, nos parece assim muito útil
e gostaria que daqui saísse uma expressão
de disponibilidade.
Os dois grandes tipos de visão
de investimento no campo acima
apontam para a necessidade de valorizar
o capital nacional, por pequeno
que seja, e para a necessidade
de valorizar outras formas de capital
social, saberes, organização e implementar
novas ideias sobre essa cultura
organizacional. Constitui uma
inovação social alcançar um estágio
em que ser camponês deixa de ser
percebido como estigma. Varrer das
mentes o estereótipo do camponês
descalço, de calção, camisa esfarrapada
que nos vem das gravuras coloniais
ou a imagem mais recente do
camponês resignado na sua condi-
ção marginal, ou aguardando o passaporte
para a passagem para outra
classe. Para que surja a ideia de um
camponês próspero e orgulhoso da
sua condição de camponês. Tal vai
levar tempo e serão os exemplos de
sucesso que levarão a essa mudança
de percepções. Premiar e valorizar
socialmente o melhor camponês de
uma certa área territorial pode elevar
o amor próprio.
É na questão do aumento da produtividade
do camponês e do agricultor
que se vai jogar o futuro, na
formação, no crédito, na garantia
de preços e de mercado, no seguro
agrícola, no contrato supervisado
por honest brokers, que corrijam o
desequilíbrio entre partes desiguais.
A formação leva tempo e sabe-se
que o camponês precisa de ver e
tende sempre a cultivar o que sabe
e garante o sustento, mesmo se de
forma básica. A melhor forma de
promover o progresso tecnológico
é através de pequenas melhorias
comprovadas com exemplos. Aqui a
formação por pares, visitas aos casos
de sucesso podem ajudar.
Conselhos aos camponeses, a extensão
pode hoje recorrer às tecnologias
de comunicação (em Moçambique
existem três operadoras de
telefonia móvel com uma cobertura
quase total das zonas rurais, mas
ainda ninguém lançou um sistema
de informação agrícola e extensão
por via de mensagens SMS, apesar
do seu inventor, Greg Carr, ser hoje
um residente de Moçambique e um
notável promotor do desenvolvimento
ecológico e social. Está aqui
um papel para a juventude e para os
programas escolares no campo, com
utilização da língua local, sabidas
que são as limitações ao aumento de
extensionistas rurais por razões or-
çamentais. Num curso da Via Campesina
compreendi a importância
do desenvolvimento das lideranças
camponesas, nas associações, no
empresariado social, cooperativas e
associações de produtores...
Finalmente, esta problemática revela
uma tensão entre o modelo de
governação nacional e transnacional
a quem apetece a uniformidade,
políticas coerentes e globais e a diversidade
e necessidade de diferenciação.
Vale dizer que a atitude inovadora,
um Estado heterogéneo de que fala
Boaventura Sousa Santos, aceitar
como normal o comportamento
“desviante”, fora do padrão ditado
superiormente de que falam Andrews,
Pritchett e Woolcock, são
atitudes indispensáveis quando se
trata de agir ao nível do micro e do
diferente como são as comunidades
camponesas, para mais num país tão
grande (799.000 km2) e tão longo
e recortado (7007 km de fronteiras).
Vai ser necessário desenvolver
um modelo capaz de deixar grande
margem aos implementadores, evitar
a imposição das “boas práticas”
genéricas, e ser também flexível nos
modelos de avaliação, pois eles também
exercem uma pulsão uniformizante.
No fundo, inovarmo-nos também
todos nós, lançar sobre o que temos
vindo a fazer, um olhar novo.
*Intervenção no colóquio sobre a Inovação,
Inclusão Social e Qualidade de
Vida com Boaventura Sousa Santos
e Cristovam Buarque organizado na
Praia, a 9 de Maio corrente pelo Instituto
Pedro Pires para a Liderança.
Revisão do texto da responsabilidade
do SAVANA
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