Eis a minha posição em relação à mensagem da Conferência Episcopal de Moçambique. Quem quiser discutir comigo os méritos das questões que coloco é bem vindo. Quem quiser desviar-nos desse propósito será afastado do meu convívio. O acordo e o desacordo são bem vindos. Os ataques pessoais e a deturpação não são.
A “Unidade Nacional” vestida de batina
A filosofia deve muito à religião mesmo se em alguns momentos tiver havido divergências. E esta é uma maneira “soft” de colocar as coisas. Como acontece com toda e qualquer instituição humana, quando um grupo de pessoas percorre o mundo convencido de que está do lado da razão e tem o poder para se impor, a religião, em forma institucional, portanto como igreja no caso do Cristianismo, pode ser extremamente intolerante. A Igreja Católica não foge a esse padrão na sua história. Mas um teólogo que admiro bastante e sobre quem gosto de ler, sempre que posso, é Tomás de Aquino. Viveu no século XIII e a sua obra constitui um dos momentos mais marcantes da evolução do pensamento filosófico. São várias as coisas que admiro em Aquino. Para já, gosto da forma como ele se apropriou da filosofia de Aristóteles (cuja filosofia, nos primeiros anos de vida de Tomás de Aquino, era hostilizada pela Igreja Católica), desenvolveu-a e tornou-a relevante mesmo para a própria Igreja Católica. Gosto também da distinção que ele fez entre o saber revelado (da Bíblia) e o saber natural (a razão), este último condição essencial do diálogo entre pessoas que creem em deuses diferentes. Essa distinção é para mim uma das maiores afirmações da importância do debate na base dos méritos das questões. Gosto também, e isto é importante para esta reflexão, do que ele disse em relação à consciência. Segundo Aquino nem sempre somos obrigados a obedecer à nossa consciência. Curiosamente, ele concede que desobedecer à consciência é errado, mas nem todo o acto que resulta da obediência à consciência é correcto. Acho este pensamento fenomenal e em linha de sintonia com o seu recurso ao pensamento ético de Aristóteles que insistia na virtude como garante duma vida que vale à pena viver.
Faço esta breve incursão para indicar, desde já, as balizas do meu desacordo profundo com a intervenção recente da Conferência Episcopal de Moçambique. Num curioso documento publicado no dia 26 de Fevereiro com o título estranho (e já explico porquê) “Mensagem do Concelho Permanente da CEM, (sic) às comunidades cristãs, (sic) e a todos os moçambicanos de boa vontade, (sic) sobre os actuais desafios da unidade nacional” os Bispos moçambicanos lançam um apelo em defesa da unidade nacional que consideram estar sob ameaça em resultado (a) da instrumentalização do discurso da unidade nacional por certos grupos para seu próprio benefício, (b) da partidarização das instituições do Estado que torna difícil a prossecução de objectivos importantes da Constituição e, finalmente, (c) da reluctância em promover um diálogo inclusivo com todas as forças vivas da sociedade. Está mais do que claro quem é o visado nisto tudo, nomeadamente a ideia da Frelimo que se tem no País, uma Frelimo todo-poderosa responsável por todos os males duma comunidade política em formação. A “mensagem” é, para mim, extremamente pobre do ponto de vista intelectual, baseia-se numa análise populista da situação política do País e é, pelo tom e pela forma, muito infeliz e inoportuna. Já vou explicar porquê. Mas antes quero explicar porque considero o título estranho.
Não percebo porque uma mensagem que é dirigida às “comunidades cristãs” não as exorta a fazerem isto ou aquilo, mas fala do que terceiros (políticos) não estão a fazer. Tratando-se duma instituição particular se ela emite uma mensagem aos seus membros ela tem que colocar as responsabilidades desses membros no centro da sua proclamação. Isso significa analisar uma determinada situação com base nos preceitos morais que eles partilham e exortá-los a adoptarem o tipo de conduta que vai tornar a mudança (ou melhoria) possível (foi assim que Tomás de Aquino fazia e chegou até a inspirar Vladimir Lénine!). É o que eu faria se, por exemplo, fosse chefe duma associação. Analisaria a situação e apelaria aos membros para se comprometerem ainda mais com os princípios que a nossa associação defende. Não iria de modo nenhum limitar toda a minha análise à descrição do que penso que não-membros não estão a fazer bem e que deveriam mudar. Mesmo partindo do princípio de que alguns membros do partido no poder possam ser também cristãos a minha mensagem, como associação privada, seria dirigida à sua consciência como cristãos.
Também não percebo porque a mensagem é limitada “aos moçambicanos de boa vontade”. Sei que se trata dum recurso retórico, mas num contexto em que se destaca a má conduta de alguns seria importante começar por esclarecer o que é um moçambicano de boa vontade. É aquele que acredita em Deus? É aquele que respeita a constituição? É aquele que se preocupa com os outros? E se for isso, porque uma instituição que se arroga o direito de falar para a consciência das pessoas não se quer dirigir aos moçambicanos de má vontade? Porque em nome da unidade nacional fomenta o divisionismo…? Se os que a mensagem critica são de má vontade porque devem eles escutar o que o CEM tem para dizer? Já agora, eu que não concordo com a mensagem sou moçambicano de má vontade? Eu acho o título estranho.
Mas pior do que o título é a própria mensagem, e aqui vou explicar o meu desacordo. Volto a Tomás de Aquino e ao que ele diz sobre a obediência à consciência para contextualizar melhor o meu desacordo. Não há dúvidas que com esta mensagem o CEM, como instância moral que ela julga ser (pelo menos para os crentes), obedece à sua consciência quando fala do que está mal e errado. Seria uma grande falha não obedecer à sua consciência quando ela exige que a Igreja fale e se coloque ao lado daqueles que precisam do seu amparo. O problema, contudo, é que a intervenção da Igreja é acima de tudo uma intervenção política. Quando ela acusa um pequeno grupo de monopolizar a unidade nacional, de partidarizar o Estado e de recusar o diálogo (e torna claro que está a falar do partido no poder) ela faz mais do que simplesmente ouvir e responder à sua consciência. Ela produz uma interpretação política que lhe retira a neutralidade que devia observar para manter o seu estatuto de instância moral. Isto é tanto mais problemático quanto a análise que faz é deficiente. Uma análise superficial da situação em Moçambique mostra naturalmente que se instrumentaliza a unidade nacional, que se partidarizam as instituições do Estado e que há falta de diálogo. Mas a questão não é constatar isto apenas. É também tentar perceber que condições é que contribuem para que seja assim. E uma análise dessa natureza pode mostrar que a distribuição de culpas não é assim tão linear como o CEM supõe. Quando ele usa um recurso retórico gasto como “para quem tem olhos de ver” (isto é quando fala das injustiças no país; diz que elas estão bem patentes para quem tem olhos de ver) revela, em minha opinião, a natureza superficial da sua abordagem. A situação do país não requer quem “tem olhos de ver”. Requer uma análise mais profunda que a “mensagem” não oferece. A chamada de atenção feita por Aquino é importante: nem todo aquele que obedece à sua consciência tem razão. Pessoalmente, acho que a mensagem é um exemplo paradigmático disso.
O outro aspecto que gostaria de referir tem a ver com o conceito de política que o CEM tem, aliás, com a ausência dum conceito de política no seu pensamento. Isto começa logo com o uso que faz da noção de “unidade nacional”. Primeiro preciso de esclarecer que pessoalmente tenho reticências em relação a esta noção devido ao seu enraizamento num discurso político totalitário. Uma instituição cristã devia ter sensibilidade para isto, bastando para isso olhar para a sua própria história e ver como a elevação de certos valores doutrinários conduziram à intolerância. O CEM teria sido mais feliz falando de “convivência sã” ou algo parecido. “Unidade nacional” é que não, pior ainda quando numa mensagem publicada em Fevereiro deste ano a deplorar que ela esteja ameaçada não diga nada, mas nada mesmo, sobre aqueles que ameaçaram dividir o País! Enfim.
O CEM caracteriza a “unidade nacional” como um bem comum e explica (passo a citar; o original tem sublinhados): “De facto, ela é um bem árduo de alcançar e, por isso mesmo, exige uma capacidade de total renúncia dos interesses meramente egoístas e a busca constante do bem-estar do outro como se fosse próprio. A «unidade nacional», portanto, constrói-se todos os dias, com a participação de todos os moçambicanos: homens e mulheres, crianças e velhos, jovens e adultos, sem exclusão de ninguém”. Isto é, na melhor das hipóteses, perplexidade e, na pior, papo do mais trivial que existe. Um bem comum que precisa de “total renúncia dos interesses meramente egoístas” para ser alcançado dificilmente pode servir de valor com utilidade prática para a acção política. Este é o discurso ingénuo da indústria do desenvolvimento e da sociedade civil profissionalizada. O desafio em Moçambique não é lograr a renúncia de “interesses meramente egoístas”, mas sim a criação de condições dentro das quais a prossecução desses interesses não impeça os outros de fazerem o mesmo, ou no mínimo, não implique que os outros fiquem a perder. Esse é o objecto da política e alcança-se não apenas com apelos morais, mas sim, e acima de tudo, com lutas sociais (no sentido positivo do termo “luta”) e com a acção política que toma em consideração os diversos interesses que fazem a nossa sociedade. Neste sentido, o CEM perdeu uma excelente oportunidade de apelar à consciência da oposição para se comprometer mais ainda com o jogo político, único garante das condições que vão diminuir os efeitos nefastos dos “interesses meramente egoístas”.
Portanto, o que se constrói todos os dias não é a “unidade nacional”, mas sim os termos de convivência sã. É como dizia Ernst Renan: a nação é um plebiscito de todos os dias. Eu que não sou político, nem tenho compromisso com nenhum programa político em especial posso dizer aqui e agora que não vejo a manutenção da integridade territorial de Moçambique para todo o sempre como um valor que mereça o meu investimento especial. Em princípio, e apesar de lamentar que haja discursos secessionistas, não vejo nenhum problema que partes de Moçambique se constituam em novos países desde o momento que o processo que conduza a essa situação seja respeitador dos preceitos que sustentam a convivência sã. Se for a vontade duma maioria devidamente legitimada de se afastar do convívio que nos constitui como nação, quem sou eu para desejar o contrário? Quem é o CEM para desejar o contrário? Quem somos nós para desejar o contrário? Insistir nisso como valor politicamente útil é revelar a postura política totalitária que está na base duma boa parte dos problemas que temos como comunidade política. Mas também seria de estranhar que logo uma religião institucionalizada fosse capaz de ver essa incoerência…
Num momento em que o País precisa de mais vozes que apelem para a importância da acção política dentro do quadro definido pelo espírito e letra da constituição democrática que temos aparece um grupo de homens vestidos em batinas com um discurso moral absolutista que promove, ao invés de eliminar, justamente o tipo de postura que nos cria problemas. É, no mínimo, estranho. Eu acho estranho e não percebo, sinceramente, porque algumas pessoas consideram esta intervenção útil e oportuna. Mas é para isso que estamos aqui. Vamos discutir.
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