Fonte:
Anuário das Testemunhas de Jeová de 1996.
*** yb96
pp. 116-185 Moçambique ***
Moçambique
“FICA sabendo, Chilaule, que aqui é
Moçambique, e vocês nunca serão reconhecidos neste país. . . . Mas
você esquece isso!” Quando agentes da agora extinta Polícia de Investigação e
Defesa do Estado (PIDE), irados, dirigiram estas palavras a uma das Testemunhas
de Jeová, era o auge do domínio colonial português em Moçambique.
O domínio da Igreja Católica Apostólica Romana era indisputado.
Mas as Testemunhas de Jeová não pararam
de expressar publicamente a sua fé em Jeová, nem deixaram de falar a outros
sobre os amorosos propósitos Dele. Sua história em Moçambique fornece prova
eloqüente da qualidade da sua devoção a Jeová. Eram fortalecidas pela sua
confiança no amor de Deus e de Seu Filho, o tipo de amor descrito pelo apóstolo
Paulo ao escrever: “Quem nos separará do amor do Cristo? Acaso tribulação, ou
aflição, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Assim como
está escrito: ‘Por tua causa estamos sendo entregues à morte o dia inteiro,
temos sido considerados como ovelhas para a matança.’ . . . Estou
convencido de que nem a morte, nem a vida, . . . nem governos, nem
coisas presentes, nem coisas por vir, . . . nem altura, nem
profundidade, nem qualquer outra criação será capaz de nos separar do amor de
Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.” — Rom. 8:35-39.
A história dos servos de Jeová em
Moçambique é um registro de pessoas que, mesmo despojadas de todos os seus bens
materiais, eram ricas por causa da sua bem-arraigada fé. Viram a evidência do
amor que Deus lhes tinha e tinham um intenso amor uns aos outros. Mas, antes de
examinarmos esta história, demos uma olhada no próprio país.
Sua beleza e suas
peculiaridades
Moçambique, com uma população calculada
em 17.400.000, estende-se por quase 2.500 quilômetros pela costa sudeste da
África. O clima é basicamente tropical, e os produtos agrícolas são
tropicais: coco, ananás, castanha de caju, mandioca e cana-de-açúcar. Frutos do
mar também são uma parte destacada da alimentação.
Os moçambicanos, na maior parte, são um
povo alegre e bem-humorado, que ama a vida. Dentre eles procederam atletas de
fama mundial. Naturalmente, estes são poucos. Mas há mais de 19.000 que são
vencedores numa corrida que envolve outros valores. São as Testemunhas de
Jeová, cuja história em Moçambique remonta a 1925.
Sementes da verdade criam raízes
Foi naquele ano que Albino Mhelembe,
moçambicano que trabalhava nas minas de Johanesburgo, África do Sul, ficou
conhecendo as boas novas do Reino de Deus. As sementes da verdade do Reino
criaram raízes no seu coração e ele logo foi batizado. Voltando para casa,
passou a pregar aos membros da sua anterior Igreja da Missão Suíça, em Vila
Luísa (hoje Marracuene), na província mais sulina de Moçambique. Esses
africanos recém-interessados eram muito zelosos e amiúde viajavam 30
quilômetros para chegar às reuniões. Formaram-se novos grupos, inclusive um em
Lourenço Marques, agora Maputo.
Por volta desta época, a pregação da
mensagem da Bíblia estava começando mais ao norte. Gresham Kwazizirah, africano
em Niassalândia (hoje Malaui), havia estudado o livro A Harpa de Deus
com a ajuda de John e Esther Hudson, da África do Sul. Em 1927, Gresham,
acompanhado por Biliyati Kapacika, mudou-se para Moçambique à procura de
emprego. Entraram no país pela região de Milange e seguiram para o sul até
Inhaminga, Sofala. Ali conseguiram emprego nos Caminhos de Ferro
Trans-Zambézia.
Em Inhaminga encontraram também uma
congregação dum movimento chamado Watch Tower (Torre de Vigia) e seu pastor
Robinson Kalitera. Quando Kalitera ouviu os ensinos de A Harpa de Deus,
seus olhos se abriram. Reconheceu que estava enganado, e ele e toda a sua
congregação começaram a se associar com a organização de Jeová.
O campo europeu recebe atenção
Em 1929 chegaram a Lourenço Marques,
procedentes da África do Sul, as primeiras Testemunhas européias, Henry e Edith
Myrdal, que começaram a dar testemunho à população portuguesa. Quatro anos
depois, juntou-se a eles o casal Jager. Em resultado da sua vinda, lançaram-se
muitas sementes da verdade bíblica.
Daí, em 1935, mais dois pioneiros, Fred
Ludick e David Norman, fizeram uma visita a Lourenço Marques. Ficaram com a
família Myrdal. Todavia, no seu quinto dia de serviço, foram abruptamente
apanhados pela polícia secreta, na residência dos Myrdal, lançados na Maria
Preta (um furgão usado para transportar marginais) e levados a um alto oficial,
chamado Sr. Teixeira. Quando David disse destemidamente que sabia que o
bispo estava por detrás de toda a conspiração, o Sr. Teixeira saltou e
berrou: “Se vocês fossem cidadãos deste país, eu os baniria agora mesmo para a
ilha da Madeira, mas como são sul-africanos, vou deportá-los imediatamente!”
Naquele mesmo dia, foram escoltados até a fronteira por dois carros cheios de
policiais fortemente armados. Mas ao chegarem à fronteira, os irmãos deram
testemunho aos guardas policiais, deixaram publicações com eles e apertaram a
mão de todos, antes de seguirem viagem.
Severas provas
Janeiro Jone Dede, humilde lavrador
africano, conheceu a verdade em 1939, em Inhaminga. Retornando ao seu lar em
Mutarara, falou da verdade aos familiares, que eram membros dum grupo religioso
que praticava a poligamia. Ele se tornou pioneiro especial, e dois de seus irmãos
carnais, Antônio e João, serviram como pioneiros regulares. No entanto, em
1946, Janeiro foi preso e mandado a Tete, onde o fizeram limpar sanitários dos
europeus, por quatro anos. Depois foi transferido para a prisão central na
Beira, e dali foi transportado de maneira tanto estranha como desumana para
Lourenço Marques. Foi enviado de barco numa caixa cheia de água salgada,
ficando apenas com a cabeça para fora. Chegando a Lourenço Marques, emergiu nu;
sua roupa se tinha desintegrado. Deram-lhe um saco para se cobrir. No seu
julgamento, mandaram que abandonasse sua religião e seu Deus, mas assim como
fizeram os apóstolos de Jesus Cristo, ele respondeu: “Importa obedecer a Deus
antes que aos homens.” — Atos 5:29.
Depois do julgamento, Janeiro foi colocado
numa cela isolada dentro duma caixa pequena de madeira, que tinha apenas uma
minúscula abertura pela qual enfiavam diariamente alguns pedaços de fruta. Uma
semana depois, quando o tiraram dali, praticamente não conseguia ficar de pé.
Junto com seus irmãos carnais, Antônio e João, ele foi deportado para São Tomé
e Príncipe, para cumprir uma sentença de sete anos. Durante este tempo, os
irmãos Dede ajudaram a formar uma
congregação nessas ilhas penais. Quando Portugal Dede, que se encontrava na
África do Sul, ficou sabendo da deportação dos seus irmãos, voltou a Mutarara
para cuidar da congregação até que eles fossem soltos da colônia penal.
E que dizer das Testemunhas no sul?
Sofrendo dura perseguição, também provaram ser Testemunhas leais. Entre eles
estava Albino Mhelembe, que então já estava avançado em anos. Em 1957, ele e
outros de Lourenço Marques também foram deportados para São Tomé, mas
continuaram a dar testemunho. Sional Tomo, embora trazido de volta de São Tomé
depois de dois anos, foi novamente exilado, mas esta vez para Meconta, na
província de Nampula. Ele faleceu ali, mas deixou uma congregação formada como
evidência do seu ministério.
“Eu serei pastor do rebanho de Deus”
Foi assim que Calvino Machiana
respondeu quando seu professor perguntou aos alunos o que queriam ser quando
crescessem. Mais tarde, em Johanesburgo, um ex-colega de escola lhe deu
testemunho. Mas foi só quando retornou a Lourenço Marques, em 1950, que ele
finalmente cortou os laços com a Igreja da Missão Suíça. Quando a polícia
colonial, a PIDE, prendeu e deportou os mais experientes do grupo, os que
ficaram ali não tinham supervisão.
Providencialmente, Nelli Muhlongo, uma
sul-africana, veio visitar seus parentes na vizinhança onde Machiana morava.
Machiana soube que ela era Testemunha de Jeová e falou-lhe sobre os
interessados na região. Ela os reuniu e iniciou um estudo bíblico em grupo.
Havia seis participantes neste grupo de estudo. A irmã Muhlongo pediu a
Machiana que dirigisse o estudo, mas ele recusou, dizendo: “Não sou batizado.”
Ela respondeu: “Eu estou aqui apenas de visita. Quando for embora, você terá de
tomar a dianteira.” De modo que Machiana tornou-se “pastor do rebanho de Deus”
mais cedo do que esperava.
“Zunguza, . . . volte ao seu
país”
Em 1953, o jovem Francisco Zunguza
partiu da Beira para a Cidade do Cabo, na África do Sul. Seu objetivo era
conseguir uma bolsa de estudos para estudar Medicina em Londres. Sua bagagem
incluía o livro Filhos, que um amigo
lhe dera de presente. Ele ficou em Pretória com uma família anglicana, que
certo dia o viu ler o livro e lhe perguntou se ele era Testemunha de Jeová.
Respondeu que não, mas que apenas estava lendo o livro. No entanto, a família
bondosamente o pôs em contato com uma Testemunha de Jeová, que então iniciou um
estudo com ele. Dois anos depois de ter chegado à África do Sul, foi batizado.
O irmão Zunguza se lembra de ter
recebido o seguinte conselho de irmãos maduros na congregação: “Zunguza, é
melhor que volte à sua terra, Moçambique, e que trabalhe lá. Você agora já é
batizado. Por que procurar outras coisas? Não vale a pena.” (Note Romanos
11:13; Filipenses 3:7, 8; 1 João 2:15-17.) O irmão Zunguza
aceitou este conselho e sem demora retornou a Lourenço Marques, onde se juntou
ao pequeno grupo lá. Mais tarde, casou-se e, com a esposa Paulina, foi usado
extensivamente pela organização de Jeová no serviço de viajante em todo
Moçambique. Seu amor a Deus passou por severas provas de perseverança. Apesar
de uns 14 anos que passou em prisão, em campos de concentração e sob
restrições governamentais, ele permaneceu fiel. É compreensível que seja
amado e muito apreciado pelos irmãos moçambicanos. Conforme diz o próprio irmão
Zunguza, “foi melhor que voltei à minha terra”.
Tentativas de obter reconhecimento legal
Preocupados com a perseguição e as
deportações movidas pelo governo colonial, a congênere sul-africana da
Sociedade, em 1954, enviou a Moçambique Milton Bartlett, formado na Escola
Bíblica de Gileade da Torre de Vigia. Durante a estada de apenas poucos dias, ele
conseguiu falar com o cônsul americano e com uma alta autoridade portuguesa,
que recomendou que fizesse ao Governador Geral um requerimento de
reconhecimento legal. A autoridade disse, porém, que por causa da
concordata do governo com o Vaticano, mesmo certo grau de liberdade concedida
às Testemunhas de Jeová nunca lhes daria a liberdade usufruída pela Igreja
Católica Romana.
Tentou-se outra vez no ano seguinte,
quando John Cooke, outro formado em Gileade, visitou o cônsul britânico em
Moçambique. Embora o cônsul fosse amigável, mencionou que o cardeal católico
fizera recentemente na imprensa um ataque contra todas as formas de
protestantismo. O cônsul acrescentou também que a polícia de segurança
considerava as Testemunhas de Jeová perigosas. Na conclusão, ele expressou a
opinião de que, dentre todas as “seitas”, para usar a sua palavra, as
Testemunhas eram as que tinham a menor chance de obter reconhecimento legal.
Não obstante, a visita do irmão Cooke
produziu bons resultados. Ele conseguiu fazer uma revisita a um jovem
português, interessado, de nome Pascoal Oliveira. Pascoal estivera anos antes
em contato com a verdade em Lisboa. Providenciou-se um estudo com ele e seus
pais. Pascoal dedicou-se mais tarde a Jeová.
Em 1956, a congênere da Sociedade na Niassalândia,
que então cuidava da obra em Moçambique, começou a enviar pioneiros especiais
pela fronteira para pregar em aldeias na região norte. Outros também vieram
servir onde havia necessidade em Moçambique, e sua influência foi sentida
especialmente nas regiões fronteiriças.
Retorno dos exilados
Com o tempo, Janeiro Dede e seus irmãos
retornaram de São Tomé. Em São Tomé haviam conseguido pregar livremente, mas ao
retornarem para casa, receberam chicotadas e foram mandados parar com a
atividade de pregação ou seriam deportados de novo para nunca mais voltar. Como
isso era semelhante ao tratamento dispensado aos apóstolos de Jesus Cristo pelo
Sinédrio judaico! — Atos 5:40-42.
Janeiro e seus irmãos não deixaram que
essas ameaças os impedissem de servir a Jeová. Em março de 1957, Janeiro foi
designado pioneiro especial, e posteriormente, durante mais de dez anos, serviu
como superintendente de circuito na maior parte do país.
Testemunho dado durante a noite
Recém-interessados continuavam a
juntar-se ao grupo em Lourenço Marques. Uma das casas em que se realizava um
estudo era a de Ernesto Chilaule, moçambicano. Também Antônio Langa morava ali.
Tendo tido formação católica, Langa questionava pontos doutrinais e exigia
provas, especialmente a respeito da Trindade. O grupo temia que ele os
denunciasse à PIDE (Polícia de Investigação e Defesa do Estado). Langa, porém,
tinha interesse sincero na verdade e continuava a escutar o estudo do lado de
fora da casa, escondido debaixo da escada. Baseado no que ouvia, concluiu que
esta era a verdade.
Certo dia, um irmão deu a Langa de
presente o livro “Seja Deus Verdadeiro”.
No dia seguinte, ao voltar do trabalho, Langa começou a ler o livro às duas
horas da tarde e não o largou até chegar ao fim, às duas horas da madrugada! Depois
disso, passou a assistir regularmente às reuniões e a insistir que seu amigo
Chilaule também lesse o livro, para que pudessem começar a pregar.
Escolheram como território os grupos
animistas sionistas (Mazione) nos arrabaldes de Lourenço Marques. À noite,
quando esses grupos se reuniam para seus rituais ao som de tambores, com
danças, bebedeiras e música, os dois se dirigiam a eles e, depois de receber
permissão do líder do grupo, proferiam um breve discurso. Muitas vezes já era
de madrugada quando voltavam para casa. Que zelo na divulgação da
recém-encontrada fé!
Batismo em Lourenço Marques
Quando o grupo que relatou serviço de
campo atingiu 25, escreveu-se uma carta à congênere sul-africana, pedindo
que enviasse um representante para batizar esse novatos. A resposta dizia
que o próprio irmão Zunguza devia cuidar disso. Em 24 de agosto de 1958,
numa reunião realizada num lugar discreto, 13 pessoas foram batizadas
— as primeiras em Lourenço Marques. Este grupo incluía Calvino Machiana,
Ernesto Chilaule e Antônio Langa, com as respectivas esposas, bem como Paulina
Zunguza.
Em 1959, depois de o irmão Zunguza se
ter mudado para Beira, o irmão Chilaule foi convocado pela PIDE. Esta havia
interceptado a sua correspondência e a havia lido. Ele foi interrogado a manhã
toda. Naquela tarde, agentes foram à sua casa e confiscaram todas as
publicações. Os irmãos e os interessados que viram o Land-Rover da polícia
diante da casa de Chilaule temiam que todos eles também fossem presos.
Surpreendentemente, porém, uma semana depois, todos os livros foram devolvidos.
Este foi o encorajamento de que o grupo precisava.
Visitas oportunas dão encorajamento
No ínterim, Pascoal Oliveira e o
pequeno grupo de europeus em Lourenço Marques receberam visitas edificantes de
Halliday e Joyce Bentley, um casal de missionários enviados pela congênere na
Niassalândia. Suas visitas, duas vezes por ano, incluíam Beira, uns 720
quilômetros ao norte da capital, bem como outras cidades. Mais tarde, Milton
Henschel, da sede mundial, também os visitou e encorajou para continuarem a
cooperar com a organização de Jeová. A primeira congregação de Testemunhas
moçambicanas já funcionara na capital por alguns anos quando, em 1963, se
formou ali uma congregação para os publicadores europeus.
Proclamação corajosa das boas novas
Depois que a polícia colonial, a PIDE,
devolveu as publicações de Ernesto Chilaule, o grupo africano em Lourenço
Marques perdeu o medo. Eles se reuniam aos domingos perto da movimentada feira
Xipamanine, na sombra duma árvore. Usando um sistema de amplificação de som,
consideravam o texto do dia. O grupo se separava então em pares para
visitar as casas e as lojas em volta da feira. Às 11h30 voltavam ao lugar
original de reunião para um lanche antes de começarem seu amplamente anunciado
discurso público ao meio-dia. Ocasionalmente, quando alguns publicadores
demoravam em voltar do ministério, eram chamados pelo sistema sonoro: “Está na
hora . . . Está na hora . . . Vamos voltar que já está na
hora . . .”
Começava a ajuntar-se uma multidão.
Além dos pessoalmente convidados e dos próprios irmãos, vinham muitos curiosos
atraídos pelo som. Formavam um grande círculo nesta área movimentada e então
começava o discurso. Os moradores da redondeza saíam às varandas de suas casas
para escutar, muitos com a Bíblia para acompanhar os textos lidos. Os irmãos
continuaram fazendo isso por alguns anos, revezando entre as feiras de
Xipamanine e Chamanculo, e a Avenida Craveiro Lopes (agora Avenida Acordos de
Lusaka). Isto contribuiu, nos anos 60, para o aumento de uma para quatro
congregações.
Teve cartão primeiro na PIDE
Quem foi contatado assim foi Micas
Mbuluane. Quando aceitou o livro “Seja
Deus Verdadeiro” e solicitou um estudo bíblico, ele perguntou: “Quanto é
que vou pagar por isso?” Nunca se cobra por esses estudos, mas os irmãos
sugeriram que ele colocasse sua casa à disposição para um discurso no domingo
seguinte. Ele concordou prontamente. O orador era Ernesto Chilaule e havia
umas 400 pessoas presentes. Um informante da PIDE comunicou a reunião à
polícia. O chefe de polícia intimou Micas a comparecer ao seu gabinete.
Micas ficou preocupado. Segundo ele disse: “Eu, dobro gentio, tendo assistido
só a uma reunião. O que vou responder?” (Localmente, “gentio” significa um
descrente; “dobro gentio”, enfatizava a inutilidade que sentia.) Chamou
imediatamente o irmão que estudava com ele, para receber um treinamento nos
poucos minutos que tinha antes de atender à intimação.
Chegando à polícia, perguntaram a Micas
qual era sua religião. Ele respondeu sem hesitação: “Testemunha de Jeová.”
Mário Figueira, o chefe de polícia, passou então a interrogá-lo: “Então, em sua
casa se fez uma grande reunião, com elementos do estrangeiro, atrás de portões
fechados e sem a polícia poder entrar. Com certeza tratava-se de assuntos da
Frelimo.” Ele se referiu à Frente de Libertação de Moçambique, movimento que na
época lutava pela independência de Moçambique. Micas pensava em como ia
responder; não era nada do que haviam “treinado”. Procurou explicar com
diplomacia todo o arranjo que havia visto e em que havia participado pela
primeira vez.
“Está bem, Micas, basta”, interrompeu o
Sr. Figueira. Abraçando Micas, prosseguiu: “O que você disse é verdade.
Desde o início da história, os servos de Deus têm sido perseguidos e vocês
também, porque falam a verdade. Só peço uma coisa: da outra vez nos avise sobre
uma reunião tão grande, para evitar controvérsias. Vá em paz. Mas amanhã volte
aqui, trazendo duas fotos para abrir seu cartão de Testemunha de Jeová.”
(Naquela época, todos os responsáveis na congregação tinham um cartão arquivado
na PIDE.) Micas gosta de dizer com uma boa gargalhada: “Eu, dobro gentio, tive
cartão primeiro na PIDE do que na congregação!” Lamentavelmente, este
tratamento benévolo dos agentes de polícia não era a norma.
Eventos em Malaui beneficiam a obra no norte
Três dos Congressos de Distrito “Fazer
Discípulos” em Malaui, em 1967, foram realizados perto da fronteira de
Moçambique, facilitando assim a alguns irmãos moçambicanos estar presentes. Mas
em outubro, o Presidente H. Kamuzu Banda decretou que as Testemunhas de
Jeová eram uma sociedade proibida em Malaui. Irrompeu contra elas uma feroz
perseguição. Em todo o país, suas propriedades foram destruídas, elas foram
espancadas, algumas foram mortas e mais de mil cristãs foram estupradas. Em
desespero, muitos sobreviventes procuraram refúgio em Moçambique. Ao contrário
do que se podia esperar, as autoridades portuguesas as receberam
hospitaleiramente. Providenciou-se para elas alimento em dois grandes campos
perto de Mocuba, na província de Zambézia. Só num destes campos havia 2.234 de
nossos irmãos. Sua presença contribuiu muito para a divulgação da mensagem do
Reino no norte.
Na Beira, a segunda maior cidade do
país, as Testemunhas moçambicanas usufruíam maior liberdade durante aquela
época do que as na capital. Podiam realizar suas reuniões, mas eram restritas
quanto à pregação de casa em casa, especialmente nos bairros residenciais
europeus.
Uma notificação polêmica causa divisões
Em 1968, os anciãos em Lourenço Marques
receberam uma intimação da PIDE. Receberam uma “Notificação” que dizia que as
Testemunhas de Jeová estavam proibidas de fazer proselitismo e que se deviam
reunir apenas com os seus familiares. Deviam assinar esta “Notificação” em
comprovação de que os anciãos a tinham recebido.
Entendendo que isso de forma alguma
constituía uma renúncia à sua fé, mas apenas era um comprovante de que
receberam a notificação, os anciãos a assinaram. No entanto, estavam decididos
a continuar a obedecer as injunções bíblicas de se reunir e de pregar, embora
discretamente e em grupos menores. (Mat. 10:16; 24:14; 28:18-20; Heb.
10:24, 25) Apesar da sua intenção, ocorreu uma divisão entre os irmãos.
Alguns achavam que os anciãos tinham transigido por assinarem o documento.
Na tentativa de provar ao grupo
dissidente que não agiram por medo nem transigiram, os anciãos formaram uma
comissão encabeçada por Ernesto Chilaule. Dirigiram-se às autoridades da PIDE
para saber o motivo da proscrição. “O que há de errado com as Testemunhas de
Jeová?” perguntaram. Disseram-lhes: “Não temos problemas com vocês, mas esta
religião está proscrita em Moçambique. Mesmo que não façam nada de errado, o
governo não autoriza esta religião.” As autoridades acrescentaram que, se
alguém quisesse praticar esta religião, teria de ir a outro país.
A resposta dada pelo irmão Chilaule e
seus companheiros foi firme: “Se o governo achar que ensinar as pessoas a não
roubar, não matar e não praticar nenhuma maldade é errado, então que nos
prenda. Continuaremos a ensinar a verdade, e é exatamente isso que faremos ao
sair daqui.” Essas expressões nos lembram de novo um dos apóstolos de Jesus
perante o Sinédrio. — Atos 4:19, 20.
Será que esta ação corajosa reconciliou
os dissidentes? Infelizmente, não. Apesar de toda a ajuda que se lhes ofereceu,
inclusive repetidas visitas de um representante especial da congênere
sul-africana da Sociedade, continuaram a seguir um rumo independente,
chamando-se de “Testemunhas de Jeová Livres”. Tiveram de ser desassociados por
apostasia. A Sociedade escreveu mais tarde que a adoção de cautela em face
de perseguição não é um indício de medo, mas está em harmonia com o conselho de
Jesus em Mateus 10:16.
A PIDE desfecha um duro golpe
Menos de um ano depois dessa rebelião,
a PIDE prendeu 16 irmãos que ocupavam cargos de responsabilidade. Entre
estes estavam Ernesto Chilaule, Francisco Zunguza e Calvino Machiana. Foi nesta
ocasião que agentes da PIDE dirigiram ao irmão Chilaule as palavras citadas no
início deste relato.
Houve mais prisões. Como a PIDE chegou
a saber os nomes e os endereços dos servos designados? Numa busca policial na
casa do irmão Chilaule encontraram numa mesa um arquivo de cartas da Sociedade
com os nomes dos servos designados, bem como o manual Pregando Juntos em União.
De posse desta informação, foram à procura especificamente do servo de
congregação, do servo ajudante de congregação, do dirigente do Estudo de A Sentinela, do dirigente do Estudo de Livro de Congregação e de
outros. Estes foram lançados na penitenciária da Machava sem julgamento
— condenados a dois anos de prisão.
A congênere sul-africana encorajava os
irmãos na prisão e fornecia ajuda às famílias dependentes deles. A Anistia
Internacional fez esforços para libertar esses irmãos, e forneceu também algum
apoio às suas famílias dependentes. Os irmãos livres em Moçambique
providenciaram fornecer alimentos aos em necessidade. Alita, filha do irmão
Chilaule, diz sobre este arranjo: “Nunca nos faltou o alimento diário. Às vezes
era até de qualidade superior ao que estávamos acostumados.”
A pregação prossegue
Apesar dessa “época dificultosa”, o
povo de Jeová não podia parar a obra vitalizadora da pregação das boas novas do
Reino. (2 Tim. 4:1, 2) Fernando Muthemba, que se tornou uma das
colunas da obra neste país, conta que na sua congregação tanto o servo de
congregação como o servo ajudante de congregação foram presos. Visto que ele
era servo de estudo bíblico, foi preciso que tomasse a dianteira.
A Sociedade deu instruções para que fossem proferidos uma série de
discursos baseados no livro A Verdade Que Conduz à Vida
Eterna. Usando de devida cautela, ele
providenciou que fossem proferidos à noite, nos grupos de estudo de livro. Cada
orador proferiria seu discurso em dois grupos por noite. Muitos convidados
receberam assim este alimento espiritual, aumentando seu apreço pela verdade.
Deu-se um treinamento intensivo aos
novos, para que pudessem ser eficazes no seu ministério e corajosos em face de
perseguição. Felipe Matola descreve como tirou proveito deste treinamento:
“Éramos treinados a partilhar aquilo que aprendíamos com outros, e com
habilidade provar na Bíblia tudo o que ensinávamos. Após duas semanas de
estudo, já começávamos a pregar informalmente. Na terceira semana, juntávamos
outros interessados para participar do estudo. Na quarta semana, começávamos a
pregar de casa em casa. Os novos eram encorajados a suportar provações e
prisões, e a não ter medo. Apenas um irmão com cargo de responsabilidade dessa
congregação estava em liberdade, e ele dizia: ‘Não sei quando também serei
preso. É por isso que todos vocês devem aprender a cuidar da
congregação.’” Quando também o irmão Matola foi mandado para a prisão da
Machava, seu zelo não diminuiu.
Pregação e reuniões na prisão
Assim que foi possível, o grupo na
prisão da Machava organizou todas as reuniões, a fim de continuarem
espiritualmente fortes. Como puderam fazer isso, visto que estavam sob a
vigilância de guardas? Foi assim, disse Filipe Matola: “Aproveitávamos as
ocasiões em que tínhamos acesso ao pátio da prisão. O designado a proferir
um discurso na Escola do Ministério Teocrático andava em volta com mais quatro,
como se estivessem passeando e conversando. Deixava então o primeiro grupo e
fazia o mesmo com um segundo, e assim sucessivamente, até que tivesse proferido
seu discurso em cada grupo.”
No início, tentaram fazer o estudo de
livro nas celas usando uma publicação, mas o seu estudo foi descoberto e foram
proibidos de continuar. Mudaram de método. Luís Bila, um dos presos, conta:
“Passamos a preparar-nos individualmente, e no dia e hora marcados, e sem
publicação na mão, andávamos em volta usando o mesmo método da Escola do
Ministério Teocrático, cada um destacando os pontos principais da matéria. Este
método era altamente proveitoso, pois tínhamos de memorizar a matéria, para
nunca mais a esquecermos.”
Os familiares em liberdade ajudaram por
esconder publicações embaixo da comida e introduzi-las clandestinamente na
prisão quando faziam visitas. Os irmãos eram assim nutridos física e
espiritualmente.
Houve também ocasiões em que outros
presos puderam beneficiar-se das reuniões. Numa ocasião, em que 3 irmãos
partilhavam uma ala da prisão com outros 70 presos, proferiu-se um
discurso público. Um irmão serviu de presidente e outro fez a oração. Os três
cantaram então e se proferiu o discurso. A assistência foi de 73 pessoas.
Ernesto Chilaule ocupava a mesma cela
com um membro da Frelimo, preso pela PIDE por lutar pela independência.
Mantinham conversações amigáveis e se deu testemunho sobre a esperança do Reino
de Deus. Mais tarde, iam encontrar-se de novo sob circunstâncias diferentes.
Ansioso de transmitir a verdade em Inhambane
Inhambane, uma das províncias sulinas,
tornou-se o palco de atividade intensa realizada por um humilde pedreiro. Este
homem, Arão Francisco, depois de ouvir em 1967 um discurso em Lourenço Marques,
não teve dúvidas de ter encontrado a verdade. Sentiu-se compelido a transmitir
a pessoas na sua terra o que tinha aprendido. E fez isso. Depois de
retornar a Lourenço Marques, ele foi batizado por volta da época em que o
grande grupo de anciãos foi preso pela PIDE. Arão sentia-se responsável pelo
interesse que tinha estimulado entre a sua própria gente e temia que fosse
preso antes de poder ajudá-los mais. Alguns dos irmãos tentaram dissuadi-lo,
dizendo que ainda era novo demais na verdade para ir pregar sozinho. Esperou
alguns meses, mas então não podia mais resistir ao desejo de dar testemunho à
sua gente. Reuniu a esposa e dois filhos, e eles voltaram a Inhambane.
Começando apenas com a sua família, ele realizava todas as reuniões.
Disseminou a verdade na cidade de
Inhambane, em Maxixe e em outras localidades da região, lançando a base para as
congregações hoje encontradas ali. Quando um sacerdote católico quis intervir,
dizendo: “Você não pode formar nenhum grupo aqui”, Arão respondeu corajosamente:
“As boas novas que trago não têm limites. Podem entrar em qualquer parte.”
E é isso mesmo que Jesus disse que ia acontecer, conforme mostra Atos 1:8.
O sacerdote local convocou uma reunião
para decidir se Arão devia ser expulso da região. Arão afirmou que não ia
mudar-se. O que não era surpresa, o sacerdote recorreu então à sua aliada
favorita, a PIDE.
PIDE caça um pregador-construtor
Certo domingo, quando Arão estava
visitando outros grupos distantes, quatro agentes da PIDE assistiram à reunião
em Inhambane. Afirmaram ser Testemunhas de Jeová que estavam de passagem. No
fim da reunião, porém, identificaram-se e exigiram ver Arão. Não o encontrando,
prenderam oito dos irmãos presentes.
Visto que Arão estava construindo uma
casa para o administrador de Ngweni, os agentes o foram procurar ali. Arão
ouviu o administrador dizer-lhes: “Não posso permitir que ele vá por causa de
religião. Primeiro ele tem de acabar o trabalho de minha casa.” Os agentes
perguntaram então: “Então é ele quem está construindo esta casa?” “Sim”,
respondeu o administrador, “e ele construiu também aquela casa de Maxixe e
outras mais. Este serviço que ele está fazendo na minha casa, ninguém aqui sabe
fazer. Ele construiu o escritório de registro em Maxixe, e ainda tem de
construir a casa de pouso na paragem”. Depois de ouvirem isso, os agentes
disseram: “Voltaremos a buscar Arão para construir a casa do administrador de
obras públicas.”
Arão foi preso e usado para fazer
construções em vários projetos do governo. Mesmo preso, porém, teve muitas
oportunidades de dar testemunho.
Um oficial da PIDE costumava chamar
Arão à noite para o seu gabinete, a fim de que o ajudasse a estudar o livro Verdade. Quando apareciam pessoas, o
oficial, o Sr. Neves, apanhava depressa alguns documentos e fingia fazer
um interrogatório. Certo dia ele disse: “Arão, com aquilo que me tens ensinado,
fico convencido. Toda a minha vida, desde Lisboa até aqui, tenho falado com
Testemunhas de Jeová. Agora, quando me aposentar em breve, vou ser uma delas.
Mas antes de eu sair tenho de libertar-te. Acaba com o trabalho atual, e eu vou
falar com o inspetor geral para arranjar outro pedreiro. Para evitar problemas,
não vou voltar a Lisboa, mas venderei tudo o que tenho e vou para a América.
Estás-me ouvindo, Arão? Não digas nada a ninguém.”
O Sr. Neves estava decidido a
cumprir a sua promessa e até mesmo libertou os irmãos encarcerados em
Inhambane. No entanto, libertar Arão não era tarefa fácil. A PIDE passara
a considerá-lo seu construtor. O Sr. Neves já se tinha então aposentado,
mas ia todos os dias falar com seu amigo e apelar para o inspetor geral, a fim
de que libertasse Arão. Conforme prometera, só depois de Arão ser liberto é que
o Sr. Neves seguiu seu caminho. Onde estará agora o Sr. Neves? Será
que cumpriu o resto da sua promessa? Esperamos sinceramente que sim.
Mudanças políticas trazem um alívio temporário
Em 1.° de maio de 1974 ouviu-se um
grito de alegria na prisão da Machava. A “Revolução dos Cravos”, de
25 de abril, tinha acabado com a ditadura em Portugal, resultando em
mudanças dramáticas nas suas colônias ultramarinas. Em 1.° de maio,
concedeu-se anistia a todos os presos políticos. As Testemunhas de Jeová,
encarceradas por sua neutralidade política, estavam incluídas na anistia.
Moçambique preparava-se então para se tornar uma nação independente.
Os irmãos, ao serem libertos, ficaram
animados de ver os aumentos no número de servos de Jeová. Agradou-lhes também
ver como estavam espiritualmente fortes os que tinham permanecido livres. (Note
Filipenses 1:13, 14.) Aproveitando-se da sua nova liberdade, realizaram
uma assembléia de circuito em grande estilo. O que aumentou o seu prazer
foi a presença de dois irmãos sul-africanos muito queridos — Frans Muller,
coordenador da Comissão de Filial da África do Sul, que mostrara vivo interesse
no bem-estar dos irmãos em Moçambique, e Elias Mahenye, que servira por muitos
anos como superintendente de circuito no sul de Moçambique.
Nesta assembléia, os que haviam ficado
encarcerados foram incentivados a trabalhar unidos com a organização de Jeová
que avança rapidamente. O irmão Mahenye lembrou aos irmãos: “A PIDE
desapareceu, mas o avô dela, Satanás, o Diabo, ainda existe. Fortaleçam-se e
ganhem coragem.” Pediu então aos que tinham estado na prisão que se
levantassem. Eram algumas dezenas. A seguir, pediu que se levantassem
aqueles que tinham entrado na verdade durante o período de encarceramento
desses irmãos. Metade da assistência de cerca de 2.000 presentes pôs-se de pé.
O irmão Mahenye concluiu: “Não há razão para vocês terem medo.”
Estas eram palavras oportunas de
encorajamento. Nuvens escuras se formavam no horizonte, e um teste supremo de
amor a Deus aguardava todos os do povo de Jeová em Moçambique.
O ano de 1974 passou rapidamente.
Durante aquele ano, 1.209 foram batizados; 2.303 em 1975. Muitos dos que hoje
são anciãos foram batizados naquela época.
Entretanto, o fervor revolucionário
tomava conta do país. O slogan
“Viva Frelimo” tornou-se símbolo da luta de dez anos pela liberdade e
independência. Havia uma euforia em toda a nação, e para a maioria parecia
inimaginável que alguém não participasse nisso. Os sentimentos prevalecentes
estavam prestes a fechar a cortina para a curta liberdade dos irmãos, e ia ser
uma cortina de ferro.
Ordens de prisão
À medida que os preparativos para o dia
da independência, 25 de junho de 1975, ganhavam forma, a posição neutra
das Testemunhas de Jeová ficava cada vez mais evidente. Irmãos responsáveis
procuravam conseguir uma entrevista com o novo governo, mas em vão.
O recém-empossado presidente praticamente deu uma ordem ao gritar num
discurso de rádio: “Nós daremos destino definitivo a essas Testemunhas de Jeová
. . . Nós pensamos que eles são agentes deixados pelo colonialismo
português; são da antiga PIDE . . . Por isso, nós propomos ao povo
prendê-los imediatamente.”
A tempestade tinha começado. Os
chamados grupos dinamizadores de bairros foram mobilizados com um só objetivo,
prender todas as Testemunhas de Jeová — no trabalho, em casa, nas ruas, a
qualquer hora do dia e da noite, em todo o país. Todos foram compelidos a
comparecer às reuniões de bairro, realizadas nas empresas e nos logradouros
públicos, e quem não acompanhasse a massa no grito “Viva Frelimo” era
identificado como inimigo. Esse tipo de espírito prevalece quando as paixões
nacionalistas atingem o auge.
No entanto, é bem conhecido que as
Testemunhas de Jeová, embora neutras em assuntos políticos, respeitam a lei e a
ordem, tratam as autoridades com respeito, são honestas e pagam
conscienciosamente os impostos. Ao longo dos anos, o governo moçambicano iria
comprovar este fato. No ínterim, porém, a situação das Testemunhas de Jeová em
Moçambique mostrou ser como a dos primeiros cristãos, mortos nas arenas romanas
por se recusarem a queimar incenso para o imperador, e como a dos seus irmãos
na Alemanha, lançados em campos de concentração por se negarem a gritar “Heil
Hitler”. As Testemunhas de Jeová são conhecidas no mundo inteiro pela sua
recusa de transigir na sua obediência a Jeová e a Jesus Cristo, o qual disse a
respeito dos seus seguidores: “Não fazem parte do mundo, assim como eu não faço
parte do mundo.” — João 17:16.
Deportação em massa — para onde?
Em pouco tempo, as prisões de
Moçambique ficaram superlotadas com milhares de Testemunhas de Jeová. Muitos
familiares ficaram separados. A propaganda intensa gerou tal hostilidade
contra as Testemunhas, que muitos, embora não incentivados pelos anciãos,
preferiram entregar-se por se sentirem mais seguros com os irmãos e os parentes
já na prisão.
A partir de outubro de 1975, as
congêneres da Sociedade no Zimbábue (então Rodésia) e na África do Sul
receberam muitos relatórios de superintendentes de circuito, de diversas
comissões responsáveis e de irmãos individuais, transmitindo o lastimável
quadro. Estes relatórios, por sua vez, foram transmitidos ao Corpo Governante
das Testemunhas de Jeová. Assim que a fraternidade mundial foi informada da
aflitiva situação dos irmãos em Moçambique, em todas as partes da Terra
elevavam-se ao céu incessantes orações a favor dos irmãos perseguidos, em
harmonia com o conselho de Hebreus 13:3. Somente Jeová podia sustentá-los e ele
fez isso a seu modo.
É bem provável que não tenha sido a
intenção das altas autoridades governamentais infligir às Testemunhas de Jeová
o tratamento brutal que realmente sofreram. No entanto, algumas autoridades de
escalão inferior, no esforço decidido de mudar convicções bem arraigadas de
consciência, procuravam com meios violentos conseguir um “Viva”. Um dos muitos
exemplos é o de Julião Cossa, de Vilanculos, espancado por três horas no
esforço de fazê-lo transigir na sua fé, mas em vão. Quando esses atormentadores
conseguiam às vezes arrancar à força de alguém um “Viva”, ainda assim não
ficavam satisfeitos. Exigiam que a Testemunha também gritasse “Abaixo Jeová” e “Abaixo
Jesus Cristo”. As atrocidades sofridas pelos nossos irmãos são demais para
serem contadas e muito horríveis para serem descritas. (Veja Despertai! de 8 de março de 1976,
páginas 12-22.) No entanto, sabiam que, conforme o apóstolo Paulo escreveu aos
cristãos filipenses no primeiro século, sua posição corajosa em face de
tribulação e de perseguição era prova da profundeza do seu amor a Deus e
fornecia garantia de que Ele os recompensaria com salvação. — Fil.
1:15-29.
As condições sufocantes das prisões
superlotadas, agravadas pela sujeira e pela falta de alimentos, causaram a
morte de mais de 60 crianças num período de quatro meses, nas prisões de
Maputo (ex-Lourenço Marques). Os irmãos ainda livres faziam o melhor que podiam
para sustentar os irmãos presos. Nos últimos meses de 1975, algumas Testemunhas
venderam seus bens para continuar a fornecer alimentos aos irmãos encarcerados.
No entanto, identificarem-se com os em prisão significava pôr em perigo sua
própria liberdade, e muitas foram presas ao cuidarem das necessidades de seus
irmãos. Era o tipo de amor que Jesus disse que seus verdadeiros seguidores
teriam uns aos outros. — João 13:34, 35; 15:12, 13.
Paradoxalmente, no mesmo período,
algumas Testemunhas na província de Sofala foram tratadas de modo bem
diferente. Ao serem presas, foram levadas ao luxuoso Grande Hotel na cidade da
Beira, e foram alimentadas enquanto esperavam seu destino final.
Que destino? Este era uma incógnita,
mesmo para os motoristas dos muitos ônibus e caminhões que iam transportá-las.
Destino: Carico, no distrito
de Milange
Entre setembro de 1975 e fevereiro de
1976, todas as Testemunhas de Jeová detidas, quer nas prisões quer em campos
abertos, foram transferidas. Não revelar o destino foi mais uma arma usada pela
polícia e por outras autoridades locais na tentativa de intimidar os irmãos.
“Vocês serão comidos por animais ferozes”, disseram-lhes. “É um lugar
desconhecido lá para o norte e nunca mais voltarão.” Mesmo familiares
descrentes participaram no coro de choro e lamentações, insistindo que os
irmãos crentes renunciassem. No entanto, foram poucos os que transigiram.
Mesmo recém-interessados lançaram
corajosamente sua sorte com as Testemunhas de Jeová. Este foi o caso de Eugênio
Macitela, apoiador zeloso de ideais políticos. Seu interesse foi despertado
quando soube que as prisões estavam cheias de Testemunhas de Jeová. Para
descobrir quem elas eram, pediu um estudo bíblico, mas logo uma semana depois
foi preso e deportado. Ele foi um dos primeiros a ser batizados nos campos de
concentração, e hoje serve como superintendente de circuito.
As Testemunhas não demonstravam nenhum
medo ou apreensão quando foram tiradas das prisões e embarcadas em ônibus,
caminhões e até mesmo aviões. Uma das caravanas mais impressionantes saiu de
Maputo em 13 de novembro de 1975. Havia 14 ônibus, ou machibombos como são chamados aqui.
A aparentemente inexplicável alegria dos irmãos induziu os soldados
encarregados a perguntar: “Como podem estar tão alegres quando nem sabem para
onde vão? Para onde vão não é nada bom.” Mas a alegria dos irmãos não diminuiu.
Ao passo que parentes descrentes choravam, temendo pelo futuro dos seus entes
queridos, as Testemunhas entoavam cânticos do Reino, tais como o intitulado
“Investi com Destemor”.
Em cada cidade ao longo do caminho, os
motoristas telefonavam para seus superiores para saber o rumo a tomar, e
recebiam ordens para seguir até a próxima parada. Alguns dos motoristas se
perderam. Finalmente, porém, chegaram a Milange, cidade e distrito situados na
província de Zambézia, a 1.800 quilômetros de Maputo. Ali os irmãos foram
recebidos pelo administrador com um “discurso de boas-vindas”, uma diatribe
cheia de ameaças.
Foram levados 30 quilômetros para
o leste, a um lugar nas margens do rio Munduzi, na região conhecida como
Carico, ainda no distrito de Milange. Milhares de Testemunhas de Jeová de
Malaui, que haviam fugido da perseguição no seu próprio país, viviam ali como
refugiados desde 1972. A inesperada chegada dos irmãos moçambicanos foi
uma surpresa para os malauianos. Foi uma surpresa para os moçambicanos serem
recebidos por irmãos falando uma língua estranha. Mas, foi uma surpresa
agradável, e os irmãos malauianos acolheram as Testemunhas moçambicanas com tal
cordialidade e hospitalidade, que os motoristas ficaram impressionados.
— Note Hebreus 13:1, 2.
O administrador do distrito era o homem
que, anos antes, tinha estado na prisão da Machava com os irmãos. Ao receber
cada grupo, ele perguntava: “Onde estão o Chilaule e o Zunguza? Sei que hão de
vir.” Quando o irmão Chilaule finalmente chegou, o administrador lhe disse:
“Chilaule, nem sei como te vou receber. Estamos agora em campos diferentes.”
Ele se apegou às suas ideologias e não facilitou as coisas para seus
ex-companheiros de cela. Ele era, como costumava dizer, “um cabrito governando
no meio de ovelhas”.
Apoio amoroso da fraternidade
internacional
A fraternidade internacional das
Testemunhas de Jeová expressou sua amorosa preocupação com os irmãos em
Moçambique. Inundaram o sistema postal do país com mensagens que apelavam às
autoridades moçambicanas. Colegas de trabalho numa firma de telecomunicações
costumavam zombar de Augusto Novela, uma Testemunha, e dizer que as Testemunhas
de Jeová eram apenas uma seita local. Mas foram silenciados quando começaram a
receber mensagens por telex de todas as partes do mundo. A reação
sobrepujante atestou que o povo de Jeová está realmente unido pelo amor.
Depois de dez meses, um ministro do
governo, de visita para inspecionar os campos, reconheceu que os irmãos tinham
sido encarcerados sob falsas acusações. Mas, ainda era muito cedo para esperar
a libertação.
Os desafios de uma
nova vida
Iniciara-se um novo capítulo da
história do povo de Jeová em Moçambique. Os irmãos malauianos na região se
tinham organizado em oito aldeias. Obtiveram muita experiência na adaptação
para um novo estilo de vida no mato e tinham desenvolvido sua experiência em
construir casas, Salões do Reino e até Salões de Assembléias. Os que não tinham
experiência anterior na agricultura também aprenderam muito sobre este tipo de
trabalho. Muitos dos moçambicanos, que nunca tinham cultivado uma machamba (lavoura), iam aprender pela
primeira vez o trabalho duro no campo. Nos primeiros meses, os recém-chegados
tiraram proveito da amorosa hospitalidade dos seus irmãos malauianos, que os
acolhiam nas suas casas e compartilhavam os alimentos com eles. Mas chegara
então o tempo para os irmãos moçambicanos construírem suas próprias aldeias.
Não foi uma tarefa fácil. Começara a
estação das chuvas, e a região foi abençoada com água do céu como nunca antes.
No entanto, quando o rio Munduzi, que passa pelo centro do campo, transbordou
numa região que normalmente passa por secas, os irmãos consideraram isso um
sinal de como Jeová cuidaria deles. De fato, nos 12 anos seguintes, o rio nunca
se secou como antes. Por outro lado, “o terreno escorregadio e lamacento,
provocado naturalmente pelo tempo chuvoso, criava um desafio a mais para os
ex-citadinos”, conforme conta o irmão Muthemba. Além disso, não era fácil para as
mulheres cruzar o rio, equilibrando-se em pontes improvisadas que nada mais
eram do que troncos de árvores. “Para nós homens acostumados a escritórios, o
desafio era entrar na mata densa e cortar árvores para construir nossas casas”,
conta Xavier Dengo. Essas condições mostraram ser uma prova para a qual alguns
não estavam preparados.
Lembramo-nos de que, nos dias de
Moisés, as queixas começaram entre “a multidão mista” que acompanhou os
israelitas na saída do Egito para o ermo, e que então se estendeu aos próprios
israelitas. (Núm. 11:4) De modo similar, entre os que não eram Testemunhas
batizadas, um grupo de insatisfeitos surgiu logo no princípio e alguns dos
batizados se juntaram a eles. Dirigiram-se ao administrador e o informaram que
estavam dispostos a pagar qualquer preço para ser mandados de volta para casa o
mais depressa possível. Mas isso não resultou num pronto regresso para casa
como haviam esperado. Foram mantidos em Milange, e muitos deles tornaram-se
como uma pedra no sapato dos fiéis. Ficaram conhecidos como “os rebeldes”.
Viviam no meio dos irmãos fiéis, mas estavam sempre prontos para traí-los. Seu
amor a Deus não suportou esta prova.
Por que os salões
caíram
Os irmãos malauianos nos campos tinham
usufruído considerável liberdade de adoração. Quando os irmãos moçambicanos
chegaram, estes inicialmente se beneficiaram com isso. Diariamente, reuniam-se
num dos grandes Salões de Assembléias para considerar o texto do dia. Muitas
vezes era um superintendente de circuito malauiano quem presidia. “Era
fortalecedor”, conta Filipe Matola, “depois de meses de prisão e de viagens,
ouvir exortações espirituais na companhia de tantos irmãos”. Mas esta liberdade
relativa não durou.
Em 28 de janeiro de 1976, as
autoridades governamentais, acompanhadas por soldados, passaram pelas aldeias e
anunciaram: “Ficam proibidos de adorar ou rezar nesses salões ou em qualquer
parte das aldeias. Os salões serão nacionalizados e usados pelo governo segundo
seu critério.” Mandaram que os irmãos trouxessem todos os seus livros e então
os confiscaram. Naturalmente, os irmãos esconderam o que puderam. Depois disso,
hastearam-se bandeiras na frente de cada salão e postaram-se soldados como
guardas para garantir o cumprimento da ordem.
Embora os salões tivessem sido construídos
com estacas e tivessem aparência rústica, eram bastante fortes. No entanto, num
tempo relativamente curto, todos eles passaram a desintegrar-se. Xavier Dengo
conta que, em certa ocasião, ele e o administrador acabavam de chegar a uma das
aldeias quando o salão começou a desabar, embora não estivesse chovendo nem
ventasse. O administrador exclamou: “O que está acontecendo? Vocês são
muito maus. Agora que nacionalizamos os salões, estão todos a cair!” Numa
ocasião posterior, o administrador disse a um dos anciãos: “Vocês devem ter
rezado para que caíssem os salões, . . . e o vosso Deus os fez cair.”
Organização nas aldeias
Seguindo uma faixa paralela e frontal
às oito aldeias malauianas surgiram nove aldeias moçambicanas. Estes dois
grupos, unidos pela “língua pura”, iriam conviver ali os próximos 12 anos.
(Sof. 3:9) A área de cada aldeia era dividida em quarteirões, com ruas bem
cuidadas, tendo cada quarteirão cerca de oito lotes de 25 x 35
metros. As congregações eram agrupadas segundo esses quarteirões. Depois da
proclamação da proscrição nos campos, não podiam construir Salões do Reino
conspícuos. Assim, em vez disso, construíram para este fim casas especiais em
forma de L. Uma viúva ou uma pessoa solteira morava nelas para dar-lhes a
aparência de residências. Daí, nas reuniões, o orador ficava no canto do “L”
onde podia encarar a assistência em ambos os lados.
Em torno de cada aldeia havia suas machambas. Cada congregação cuidava
também duma “machamba
congregacional”, que todos participavam em cultivar como contribuição para as
necessidades da congregação.
O tamanho de cada aldeia variava
segundo a população. Um censo feito em 1979 mostrou que a aldeia moçambicana
n.° 7 era a menor, com apenas 122 publicadores e 2 congregações, ao passo
que a n.° 9, a maior e mais distante, tinha 1.228 publicadores e 34
congregações. O campo inteiro tinha 11 circuitos. Todo este campo,
composto de aldeias malauianas e moçambicanas, bem como de áreas dependentes,
passou a ser conhecido como “Círculo do Carico”. O último censo de que
temos registro é o de 1981, quando a população do inteiro Círculo do Carico era
de 22.529, com 9.000 publicadores ativos. Depois houve mais crescimento. (O
então presidente, Samora Machel, declarou que a população era de 40.000,
segundo a brochura Consolidemos Aquilo Que nos Une, páginas 38-9.)
Tempo de Chingo, tempo difícil
Naturalmente, as Testemunhas de Jeová
não tinham sido levadas a Milange apenas para se tornarem uma colônia agrícola.
Não foi sem motivo que o governo chamou o campo de Centro de Reeducação do
Carico, evidenciado pelo centro administrativo no meio da aldeia malauiana
n.° 4, ocupado pela equipe do governo, com escritórios e residências.
Havia também um comandante do campo, seus soldados e uma prisão, na qual muitos
dos irmãos ficavam encarcerados por diversos períodos, conforme decisão do
comandante.
O comandante mais notório foi Chingo.
Seu período de dois anos como comandante ficou conhecido como o tempo de
Chingo. Decidido a quebrantar a posição intransigente das Testemunhas de Jeová
e a “reeducá-las”, ele recorreu a todas as táticas psicológicas que conhecia,
bem como à violência, para atingir seu objetivo. Embora quase sem escolaridade
formal, era orador fluente e persuasivo, com uma queda para ilustrações. Usava
seu dom para tentar doutrinar os irmãos com sua filosofia política e para
enfraquecer o amor que tinham a Deus. Um dos seus planos era “o seminário de
cinco dias”.
“O seminário de cinco
dias”
O comandante anunciou que se programou
um “seminário de cinco dias” e que as Testemunhas deviam escolher os homens
mais aptos das aldeias, que poderiam transmitir informações de interesse.
Seriam enviados a um seminário a ser realizado num lugar distante. Os irmãos se
negaram a isso, duvidando das intenções dele. No entanto, “os rebeldes”
presentes indicaram os irmãos em cargos de responsabilidade, inclusive os
superintendentes de circuito. Entre estes estavam Francisco Zunguza, Xavier
Dengo e Luís Bila. Um caminhão partiu com 21 homens e 5 mulheres.
Viajaram centenas de quilômetros para o norte, para uma região ao norte de
Lichinga, na província de Niassa. Os homens foram ali lançados num “campo de
reeducação” junto com criminosos, ao passo que as mulheres foram levadas a um
campo de prostitutas.
Ali foram submetidos a severas torturas,
inclusive o que seus atormentadores chamavam de “tipo Cristo”. Os braços da
vítima eram esticados em posição horizontal, como que numa cruz, e então se
colocava uma estaca paralela aos braços. Enrolava-se fortemente um fio de nylon em volta dos braços e da estaca na
extensão de ambos os braços, desde a ponta dos dedos de uma mão até a dos da
outra mão. Cortando-se completamente a circulação das mãos, dos braços e dos
ombros, a vítima era mantida nesta posição por muito tempo, no esforço fútil de
lhe arrancar um “Viva Frelimo”. Por causa deste tratamento cruel e desumano,
Luís Bila, ancião fiel, sofreu um ataque cardíaco e morreu.
As irmãs foram submetidas a um
tratamento de “ginástica”, que exigia que corressem quase que sem parar, às
vezes entrando em água; dando cambalhotas, e correndo morros para cima e para
baixo sem cessar; e submetidas a outras incontáveis indignidades. Que
seminário! Que “reeducação”!
Apesar deste tratamento cruel, a
maioria desses irmãos manteve a sua integridade; apenas dois transigiram. Um
dos irmãos conseguiu enviar uma carta ao Ministro do Interior em Maputo,
expondo esse tratamento. Isso surtiu efeito. O governador de Niassa veio
pessoalmente de helicóptero. Depôs imediatamente o comandante e seus adjuntos
de toda a autoridade e declarou: “Podem considerar-se presos por praticarem
atos que a Frelimo nunca intencionou.” Quando os outros presos que tinham
sofrido tratamento similar souberam disso, gritaram de alegria, dizendo:
“Graças a vocês estamos tendo esta libertação”, ao que os irmãos responderam:
“Dêem graças a Jeová.”
Depois de um tempo, foram transferidos
para outros campos, onde o tratamento consistia apenas em trabalhos forçados. Foi só quase dois anos depois que
retornaram ao Carico — e Chingo estava lá para recebê-los. Ele continuou a
fazer tentativas malogradas para enfraquecer a lealdade deles a Jeová,
realizando “seminários” similares. Finalmente, quando estava para deixar
Carico, proferiu um discurso no seu característico estilo ilustrativo. Admitindo
derrota, disse: “Um homem dá muitos golpes em uma árvore; faltando pouco para
derrubá-la, é substituído por outro que, com apenas um golpe, completa a
operação. Eu dei muitos golpes, mas não consegui. Virão outros depois de mim.
Usarão outros métodos. Não cedam. . . . Continuem firmes.
. . . Senão, eles receberão toda a glória.” No entanto, os irmãos,
por manterem forte o seu amor a Jeová, esforçavam-se para ter certeza de que
apenas Jeová recebesse a glória. — Rev. 4:11.
Os que ficaram nas cidades
Será que todas as Testemunhas
moçambicanas estavam em prisão ou em campos de detenção naquela época? Embora
seus inimigos as procurassem como que com pente fino nos locais de trabalho e
em virtualmente cada bairro, algumas escaparam. Nem todos estavam querendo
mandá-las para a prisão ou para outra punição. Mas as Testemunhas estavam em
constante perigo de ser presas. As atividades cotidianas, tais como comprar
alimentos ou pegar água na fonte pública, eram arriscadas.
Lisete Maienda, que permaneceu na Beira,
conta: “Negaram-me o cartão para comprar os alimentos necessários porque eu não
comparecia às reuniões políticas exigidas. Felizmente, um homem amigável, dono
duma venda, chamava-me em particular e vendia-me alguns quilos de farinha.”
(Note Revelação 13:16, 17.) O irmão Maienda foi seis vezes despedido
do emprego no porto da Beira, mas seus patrões vieram cada vez procurá-lo de
novo, visto que suas qualificações profissionais eram muito valiosas para a
companhia.
Embora dar testemunho e realizar
reuniões fosse muito arriscado, a luz espiritual não se apagou em nenhuma das
cidades principais do país. À família Maienda, na Beira, juntou-se no
bairro de Esturro um grupo de jovens corajosos e sedentos da verdade. Juntos
mantiveram a luz brilhando nesta capital da província de Sofala. O zelo do
grupo na Beira era tão grande que, apesar do perigo, eles cruzavam a fronteira
para a Rodésia (agora Zimbábue) para obter alimento espiritual.
O escritório da Sociedade em Salisbury
(agora Harare) empenhava-se destemida e incansavelmente para cuidar de todos os
irmãos espalhados na região norte. Portanto, quando o escritório soube que um
grupo ainda se reunia em Tete, a congênere enviou dois irmãos para cuidar das
necessidades deste grupo, visto que, semelhante a Epafrodito, colaborador do
apóstolo Paulo, ansiavam ver os irmãos. (Fil. 2:25-30) Um desses irmãos era o
querido Redson Zulu, conhecido em todo o norte pelos seus vibrantes discursos
em chicheua. Sob grande risco, ele e seu companheiro percorreram a selva de
bicicleta para ministrar a seus isolados irmãos moçambicanos.
De forma similar, a luz da verdade
continuou a brilhar na província de Nampula. Um grupo de não-batizados
remanescera ali e continuara a realizar reuniões do seu próprio modo. No
começo, a assistência foi de 8 pessoas, mas logo aumentou para 50. Quando
um irmão de Carico foi enviado para ser hospitalizado em Nampula, ele entrou em
contato com um dos membros daquele grupo de não-batizados, alguém que
trabalhava no hospital. O irmão hospitalizado avisou a Sociedade e esta
deu-lhe instruções para que estudasse com o grupo, a fim de preparar para o
batismo aqueles que estivessem prontos para isso. Cinco foram batizados.
Receberam ajuda adicional quando uma Testemunha da Holanda, que se encontrava
em Nampula a serviço secular, abriu sua casa para as reuniões. Com o tempo,
alguns daquele grupo se habilitaram para assumir responsabilidades como
anciãos.
Alívio na prisão central
Em 1975, um grupo de presos após outro
foi mandado das prisões de Maputo para o norte, ao passo que outros chegavam
para tomar seu lugar. Daí, em fins de fevereiro de 1976, o governo decidiu
acabar com o incessante translado de Testemunhas presas.
Poucos meses depois, o Presidente
Samora Machel fez uma visita à prisão central de Maputo. A irmã Celeste
Muthemba, uma das presas, aproveitou a oportunidade para dar testemunho ao
presidente. Ele deu atenção de forma amistosa, mas depois da sua partida, a
irmã foi fortemente censurada pelas autoridades carcerárias. No entanto, uma
semana mais tarde, veio uma ordem para que ela fosse posta em liberdade, junto
com um documento que lhe garantia proteção contra hostilizações por motivos
políticos e o direito ao seu anterior emprego no Hospital Central. Além disso,
deu-se autorização para a libertação de todas as Testemunhas de Jeová daquela
prisão.
Os irmãos em Maputo organizaram-se em
congregações. Em pouco tempo, formaram-se 24 congregações num circuito que
se estendia de Maputo ao nordeste, até Inhambane. Fidelino Dengo foi designado
para visitá-las. Além disso, a congênere na África do Sul designou uma comissão
de anciãos para cuidar das necessidades espirituais daqueles grupos.
Desenvolveram métodos cautelosos de dar testemunho informal. Fizeram arranjos
para os irmãos assistirem a congressos na vizinha Suazilândia. E no
próprio Moçambique, quando alguns retornaram do Carico, os irmãos realizaram
assembléias disfarçadas em festas de “boas-vindas”.
E no Carico? Que arranjos se fizeram
ali para atividades espirituais?
Comissão “ON” supervisiona os campos
Os irmãos malauianos, sob a supervisão
da congênere em Zimbábue, tinham formado uma comissão especial para cuidar das
necessidades espirituais nos campos. Quando irmãos do sul de Moçambique foram
levados ao Carico, eles também tiraram proveito do arranjo já em funcionamento
ali. Dois irmãos do sul, Fernando Muthemba e Filipe Matola, foram acrescentados
à comissão.
Os da Comissão ON (Ofisi ya Ntchito: Escritório de Serviço, em
chicheua) se correspondiam com a Sociedade, e organizavam assembléias e congressos.
Compilavam os relatórios de todo o campo e se reuniam periodicamente com os
anciãos das aldeias. Supervisionavam também o trabalho dos 11 circuitos.
Era uma grande responsabilidade, especialmente em vista do relacionamento
precário dos irmãos com as autoridades governamentais.
Pregando e fazendo discípulos nos campos
Um número considerável de interessados
e de estudantes da Bíblia que acompanharam os irmãos até Milange, em 1975,
foram batizados em novembro de 1976.
Muitos dos que tinham sido pioneiros
regulares continuaram a pregar ali mesmo durante o seu encarceramento e depois
da sua transferência para os campos. Mas a quem pregavam? No começo, estudavam
com os que ainda não eram batizados, inclusive com os filhos dos irmãos. Uma
família com muitos filhos era considerada um “bom território”. Os pais
estudavam com alguns dos filhos, e os demais eram divididos entre os
publicadores solteiros. Foi assim que muitos se mantiveram ativos na obra de
fazer discípulos.
Mas isso não era suficiente para os que
realmente tinham espírito evangelizador. Um pioneiro zeloso começou a procurar
território fora dos campos. Naturalmente, isso tinha seus riscos, por causa das
limitações impostas pelas autoridades do campo. Deu-se conta de que precisava
arranjar um pretexto para sair dos campos. O que podia fazer? Tendo orado
a Jeová pedindo orientação, decidiu vender sal e outros bens de consumo às
pessoas fora dos campos. Ele pedia um preço elevado para evitar qualquer
transação comercial, ao passo que criava assim um meio para dar testemunho.
Este método pegou. Com o tempo, viam-se muitos desses “vendedores” oferecendo
seus produtos fora dos campos. Cobrir o território disperso envolvia longas
caminhadas, saindo eles de madrugada e retornando de noite. Era pouca “vegetação”
para tantos “gafanhotos”. Mas deste modo, muitas pessoas daquela região
aprenderam a verdade.
“Centro de Produção da Zambézia”
Devido ao trabalho diligente desses
laboriosos “reeducandos” e as benditas chuvas que regavam aquela região, a
produção agrícola floresceu. As Testemunhas nos campos passaram a ter fartas
colheitas de milho, arroz, mandioca, mapira (milhete), batata-doce,
cana-de-açúcar, feijão e frutas tais como mafura. Os celeiros do Círculo do
Carico transbordavam. A criação de aves e de animais de pequeno porte,
tais como galinhas, patos, pombos, coelhos e porcos enriquecia a alimentação
com proteínas. A fome que passaram no início tornou-se coisa do passado.
Em contraste, o restante do país atravessava a maior falta de alimentos da sua
história. — Note Amós 4:7.
Em reconhecimento deste sucesso
agrícola, o governo passou a chamar a região desses campos de “Centro de
Produção da Zambézia”. Com a receita resultante do excedente de produtos, os
irmãos puderam adquirir roupas, e até mesmo alguns rádios e bicicletas. Embora
presos, estavam bem equipados por causa da sua diligência. Acatavam
escrupulosamente as leis de impostos do governo; de fato, estavam entre os
maiores contribuintes da região. Em harmonia com as normas bíblicas, o
pagamento consciencioso de impostos, mesmo nestas circunstâncias, era um dos
requisitos para alguém ser considerado apto para quaisquer privilégios na
congregação. — Rom. 13:7; 1 Tim. 3:1, 8, 9.
Intercâmbio cultural
Ali no Carico houve um intercâmbio
mútuo de habilidades e de cultura. Muitos aprenderam novos ofícios, tais como o
de pedreiro, de carpinteiro e de escultor de madeira. Juntos desenvolveram a
habilidade de fabricar ferramentas, fundir ferro, fazer mobília de qualidade, e
mais. Além de se beneficiarem pessoalmente com os ofícios aprendidos ou
refinados, esta atividade lhes deu mais uma fonte de renda.
O maior desafio no intercâmbio cultural
envolvia línguas. Os moçambicanos aprenderam chicheua, falado pelos malauianos.
Esta tornou-se a língua predominante falada nos campos, e a maioria das
publicações disponíveis eram em chicheua. Aos poucos e com jeito, os malauianos
também aprenderam tsonga e suas variações, faladas no sul de Moçambique. Muitos
aprenderam também inglês e português, que ia servir-lhes mais tarde em
privilégios especiais de serviço. Lembra um ancião: “Podia cruzar com algum
irmão ou irmã falando fluentemente sua língua, sem saber se era malauiano ou
moçambicano.”
Como o alimento espiritual chegava aos campos?
Vinha da Zâmbia via Malaui. De que maneira?
Um superintendente de circuito respondeu: “Só Jeová sabe.” Nos campos, a
Comissão ON designava jovens malauianos, muitos deles pioneiros, para que
atravessassem a fronteira de bicicleta e, num lugar combinado de antemão, se
encontrassem com os enviados para lhes entregar correspondência e publicações.
Assim se supriam as congregações com o alimento espiritual corrente.
Além disso, os membros da Comissão ON
atravessavam a fronteira para a Zâmbia ou para o Zimbábue, a fim de aproveitar
as visitas anuais dos superintendentes zonais enviados pelo Corpo Governante.
Por estes e outros modos, os irmãos no Carico mantinham fortes laços com a
organização visível de Jeová e assim permaneciam unidos na Sua adoração.
As reuniões congregacionais exigiam
arranjos especiais. Visto que os irmãos eram constantemente vigiados, muitas
das reuniões eram realizadas de madrugada, ou mais cedo. Os presentes
reuniam-se do lado de fora, como que comendo “papinhas” no pátio, enquanto o
orador se postava dentro da casa. Algumas reuniões eram realizadas em vales de
rios e ao abrigo de crateras naturais. No entanto, os preparativos de
congressos exigiam muito mais.
Como se organizavam congressos
Após receber da Sociedade toda a
matéria do programa, a Comissão ON recolhia-se por algumas semanas à aldeia
n.° 9. Neste lugar relativamente remoto, trabalhava noites adentro sob a
luz dum lampião, traduzindo os esboços de discursos, gravando dramas e
designando oradores. Muito útil foi um duplicador manual, recebido de Zimbábue.
Não paravam de trabalhar até completar o programa inteiro para a série de seis
congressos.
Além disso, designava-se uma equipe
para encontrar e preparar um local que serviria para o congresso. Podia ser na
encosta duma montanha ou dentro do mato, mas não menos de 10 quilômetros
distantes dos campos. Tudo tinha de ser feito sem o conhecimento das
autoridades ou dos “rebeldes”. Pequenos rádios portáteis eram tomados
emprestados e à base destes se montava um sistema sonoro para assistências
superiores a 3.000. Sempre havia nas proximidades um riacho, no qual se podia
preparar uma piscina batismal por se fazer uma barragem. Palco, auditório,
limpeza e manutenção eram todos preparados de antemão. Por fim, o local do
congresso estava pronto, cada ano num lugar diferente.
Elaborava-se um arranjo que permitia a
todos nas aldeias assistir. Isso funcionava bem, porque os irmãos demonstravam
um maravilhoso espírito de cooperação. Nem todos podiam assistir ao mesmo
tempo; uma aldeia deserta teria atraído a atenção das autoridades. Portanto, os
vizinhos se revezavam — uma família assistia num dia e a outra no dia
seguinte. A família que ficava fazia movimentos na casa dos vizinhos;
assim, ninguém notava a ausência da família. Significava isso que alguns
perdiam partes do congresso? Não, porque o programa de cada dia era apresentado
duas vezes. De modo que um congresso de três dias durava seis; e uma assembléia
de dois dias, quatro.
Uma corrente de indicadores atentos
fornecia uma rede de comunicação. Ela se estendia desde o centro administrativo
do campo até o lugar do congresso, com um homem postado a cada 500 metros.
Qualquer movimento suspeito que pudesse constituir uma ameaça para o congresso
acionava esta linha de comunicação, transmitindo a mensagem por uma distância de
30 ou 40 quilômetros em apenas 30 minutos. Isto dava tempo suficiente à
administração do congresso para tomar uma decisão. Podia significar encerrar a
assembléia e esconder-se no mato.
José Bana, ancião da Beira, conta: “Em
uma ocasião, na véspera de uma assembléia, um policial advertiu que já tinham
conhecimento da nossa assembléia e que iriam desfazê-la. O assunto foi
levado ao conhecimento dos irmãos responsáveis. Deviam cancelar a assembléia?
Oraram a Jeová e resolveram esperar o amanhecer do outro dia. A resposta
veio — uma chuva torrencial durante a noite fez transbordar o rio Munduzi,
transformando-o num mar. Visto que a polícia estava do outro lado do rio, todos
puderam assistir à assembléia, sem que alguém precisasse ficar em casa e sem a
necessidade da corrente humana de comunicação. Entoamos cânticos do Reino à
vontade.”
Apostasia e a aldeia
n.° 10
Um movimento que causou muitas
dificuldades foi iniciado por um grupo apóstata que se autodenominou de “os
ungidos”. Originando-se principalmente das aldeias malauianas, este grupo
afirmava que o “tempo dos anciãos” tinha chegado ao fim em 1975 e que eles,
como “os ungidos”, deviam tomar a dianteira. A matéria no livro Vida Eterna
na Liberdade dos Filhos de Deus foi de muita
ajuda para auxiliar alguns dos que tinham dúvidas a entender o que estava
envolvido na genuína unção. Mas a influência dos apóstatas se espalhou e muitos
dos que lhes deram atenção foram desviados. Como parte da sua doutrina, diziam
que não era necessário enviar relatórios à Sociedade. Eles simplesmente os
lançavam no ar depois duma oração.
Calcula-se que cerca de 500 foram
desassociados em resultado desta influência apóstata. Decidiram, com a
permissão das autoridades, construir sua própria aldeia. Esta passou a ser a
aldeia n.° 10. Mais tarde, o líder do movimento era servido por um cortejo
de moças, engravidando ele a muitas delas.
A aldeia n.° 10 e seu grupo
continuaram a existir durante todo o período restante da vida nos campos.
Causaram muitas dificuldades aos irmãos fiéis. Alguns dos que no começo se
deixaram influenciar para se juntar a esse grupo arrependeram-se mais tarde e
retornaram à organização de Jeová. A comunidade apóstata foi finalmente
desfeita quando se deixou de viver nos campos.
“O campo é nossa
cadeia e as casas são nossas celas”
Até o começo de 1983, a vida nos campos
tinha certa semelhança com a normalidade. Mas os irmãos não se esqueceram de
que eram prisioneiros. É verdade que alguns, por seus próprios meios,
conseguiram retornar às suas cidades. Outros iam e vinham. Mas a comunidade
como um todo permanecia. Era apenas natural que tivessem saudade de casa.
Trocavam correspondência através do sistema postal ou pela mão dos poucos
irmãos que se atreviam a visitar os campos para visitar familiares ou velhos
amigos — embora alguns deles fossem apanhados e presos.
Xavier Dengo costumava prosar: “Vocês
malauianos são refugiados, mas nós somos prisioneiros. O campo é nossa cadeia e
as casas são nossas celas.” Na realidade, porém, a situação dos nossos irmãos
malauianos era quase a mesma. Qualquer normalidade que as aldeias pareciam ter
iria em breve chegar a um abrupto fim.
Invasão armada causa pânico e morte
No começo de 1983, membros armados do
movimento de resistência começaram a invadir a região do Carico, obrigando o
comandante do centro administrativo a refugiar-se na sede do distrito em
Milange, 30 quilômetros distante. Por um período relativamente curto, os
irmãos pareciam respirar aliviados, embora continuassem ainda sob alguma
vigilância das autoridades.
Mas a tragédia sobreveio em 7 de
outubro de 1984, enquanto se terminavam os preparativos para um congresso de
distrito. Um grupo armado aproximou-se do leste. Ao cruzarem a aldeia
n.° 9, deixaram atrás um rastro de pânico, sangue e morte. Depois de
matarem o irmão Mutola, na aldeia malauiana n.° 7, mataram Augusto Novela
na aldeia moçambicana n.° 4. Na aldeia moçambicana n.° 5, o irmão
Muthemba foi alertado pelo tiroteio. Quando viu o corpo dum irmão no chão,
clamou a Jeová por ajuda. Os homens armados saquearam e queimaram as casas.
Homens, mulheres e crianças corriam desordenados procurando desesperadamente
esconder-se. Este ataque violento foi apenas o prelúdio do que havia de vir.
Depois de atravessar os campos, o grupo escolheu uma área logo ao norte da
aldeia n.° 1 para estabelecer a sua base.
Nos dias seguintes, fizeram incursões
diárias nos campos — roubando, queimando casas e matando. Numa dessas
ocasiões, mataram seis Testemunhas malauianas, inclusive a esposa de Fideli
Ndalama, superintendente de circuito.
Outros foram levados presos à base do
campo. Especialmente os jovens foram submetidos a esforços para integrá-los no
seu movimento militarizado. Muitos dos jovens fugiram das aldeias para se
esconder nas machambas (seus campos
cultivados) e os familiares lhes levavam alimentos. Moças passaram a ser
recrutadas como cozinheiras, mas então os invasores procuravam obrigá-las a
servir como “amantes”. Hilda Banze foi uma das que resistiram à pressão e, por
conseguinte, foi espancada tão severamente, que foi dada como morta.
Felizmente, ela se recuperou.
O grupo armado exigia ser sustentado
pela população e que carregasse suas bagagens. Os irmãos achavam esta exigência
incompatível com a sua posição de neutralidade cristã e por isso se negaram.
Sua recusa provocou furor. Neutralidade e direitos humanos estavam fora de
questão num mundo isolado em que o espancamento e as armas eram a única lei
reconhecida. Cerca de 30 irmãos morreram durante este período turbulento. Um
deles foi Alberto Chissano, que se negou a dar apoio e que tentou explicar:
“Não faço parte da política, esta é a razão pela qual fui trazido de Maputo
para cá. Já recusei no passado e não será diferente agora.” (Note João 18:36.)
Isto era demais para os opressores, que furiosamente o levaram embora arrastado.
Sabendo o que certamente o aguardava, o irmão Chissano despediu-se dos irmãos
com uma expressão de inabalável fé. “Até o novo mundo”, foram as suas últimas
palavras antes de ser severamente espancado e mortalmente ferido. Os irmãos da
equipe médica ainda tentaram salvá-lo, mas sem êxito. Seria de fato “até o novo
mundo”, pois nem mesmo a ameaça de morte conseguiu quebrantar-lhe a fé.
— Atos 24:15.
Libertados da fornalha de fogo
Algo tinha de ser feito para aliviar a
insuportável tensão. A Comissão ON reuniu-se com os anciãos e os
servos ministeriais para considerar como tentar estabelecer um diálogo com o
movimento de resistência. Entretanto, homens do movimento de resistência já
tinham enviado um convite a todos da região para comparecer em sua base. Os
anciãos decidiram ir, junto com um grupo considerável de Testemunhas que se
ofereceu a acompanhá-los. Dois irmãos foram instruídos a servir de porta-vozes
de todas as aldeias. Isaque Maruli, um dos porta-vozes designados, passou pela
sua casa para informar sua jovem esposa e se despedir dela. Alarmada com o que
podia acontecer, ela tentou dissuadi-lo. Ele lhe falou consoladoramente e
disse: “Será que sobrevivemos até agora devido a alguma esperteza da nossa
parte? E será que somos mais valiosos do que os outros irmãos?” Ela
silenciosamente concordou. Fizeram juntos uma oração e se despediram.
Na reunião estavam presentes não só as
Testemunhas, mas também os que não eram Testemunhas, que estavam dispostos a
apoiar o movimento armado. O número dos irmãos, porém, era de 300,
excedendo os outros. Foi uma reunião acalorada, alguns gritando slogans políticos e cantando canções
militares. Fez-se o anúncio: “Hoje vamos gritar ‘Viva Renamo’ [Resistência
Nacional de Moçambique, movimento que combatia o governo Frelimo] até que caiam
as folhas destas árvores.” O comandante, os soldados e os que não eram
Testemunhas ficaram impacientes com o silêncio dos irmãos. O comissário
político que presidia à reunião explicou a ideologia do seu movimento. Falou da
determinação do alto comando de desmantelar as aldeias e de fazer todos
dispersar-se e morar nas machambas.
Deu então oportunidade para os presentes se expressarem. Nossos irmãos
explicaram sua posição neutra. Esperavam que seus motivos de não participar em
fornecer alimentos, carregar bagagem, e assim por diante, fossem compreendidos.
Quanto a se dispersarem das aldeias, já tinham sido obrigados a fazer isso.
O comandante não gostou nada da
resposta corajosa dos irmãos mas, providencialmente, o comissário era mais
compreensivo. Acalmou o comandante e mandou os irmãos embora em paz. Saíram
assim vivos do que descreveram como “fornalha de fogo”. (Note Daniel
3:26, 27.) Mas a paz não estava garantida. O evento único mais
abalador ainda estava por vir poucos dias depois.
O massacre da aldeia
n.° 7
O domingo, 14 de outubro de 1984,
apesar do sol brilhante, foi um dia tenebroso no Carico. Cedo naquele dia, os
irmãos tinham realizado sua reunião congregacional, alguns visitando depois as
aldeias para apanhar o restante dos suprimentos antes de rapidamente retornarem
às suas novas moradas nos campos. Sem aviso, um grupo armado deixou sua base e
foi na direção da aldeia moçambicana n.° 7. Capturaram um irmão nos
limites da aldeia n.° 5 e exigiram: “Mostre-nos o caminho da aldeia n.° 7;
você vai ver o que é a guerra.” Chegando à aldeia, prenderam a todos os que por
acaso estavam ali. Fizeram-nos sentar em círculo, por ordem do número da aldeia
a que pertenciam. Daí começou o interrogatório.
“Quem bateu em nosso mudjiba [um vigia ou informante
desarmado] e o roubou?” queriam saber. Os irmãos, não sabendo do que os homens
estavam falando, responderam que não sabiam. “Então, se ninguém vai falar,
vamos fazer um exemplo deste homem sentado aqui na frente.” E atiraram à
queima-roupa na testa do irmão. Todos ficaram abalados. A pergunta foi
repetida vez após vez, e sempre com uma nova vítima para ser fuzilada. As
mulheres, segurando seus bebês, se viam obrigadas a ver a execução bárbara dos
maridos, como se deu com a irmã Salomina, que viu seu marido Bernardino morrer.
Mulheres também foram assassinadas. Leia Bila, esposa de Luís Bila, que morrera
de ataque cardíaco no campo perto de Lichinga, foi uma delas, e seus filhos
pequenos ficaram assim orfanados. A execução nem poupou os jovens, tais
como Fernando Timbane, que mesmo baleado orou a Jeová e procurou encorajar os
demais.
Quando dez vítimas tinham sido
brutalmente executadas, surgiu um desacordo entre os executores, acabando com o
pesadelo. Às ordens deles, o irmão Nguenha, que teria sido a 11.a vítima,
levantou-se da “cadeira da morte”. Ele conta: “Eu tinha orado a Jeová para que
cuidasse da minha família sobrevivente, pois os meus dias tinham terminado. Daí
levantei-me e senti uma coragem incomum. Foi só depois que me sobreveio o abalo
emocional.”
Após isso, obrigaram os sobreviventes a
queimar as casas remanescentes na aldeia. Antes de partirem, os homens armados
advertiram: “Viemos com a ordem de matar 50 de vocês, mas estes já são
suficientes. Não devem ser enterrados. Vigiaremos, e se algum corpo
desaparecer, serão mortos dez por cada corpo que faltar.” Que ordem mais
estranha e hedionda!
Com o som dos tiros ecoando por toda a
área e a notícia se espalhando pelos que conseguiram escapar, gerou-se uma nova
onda de pânico nas aldeias. Os irmãos, em desespero, fugiram para o mato e para
as montanhas. Só depois se descobriu que as perguntas acusatórias que geraram o
massacre tinham sido instigadas por um desassociado que queria juntar-se ao
movimento de resistência. Ele também se tornara ladrão. Fizera as acusações
falsas contra os irmãos da sua própria aldeia, procurando granjear os favores e
a confiança do grupo. Mais tarde, quando os do grupo descobriram que tinham
sido enganados, prenderam o originador dessa mentira e o mataram da maneira
mais bárbara.
Começa a dispersão
O inteiro Círculo do Carico estava
pesaroso e confuso. Os anciãos, também em pranto, procuravam consolar as
famílias enlutadas pela perda dos entes queridos no massacre. A idéia de
continuar naquela região era insustentável. Assim, começou uma dispersão
natural. Congregações inteiras buscavam lugares de até 30 quilômetros
distantes, onde pudessem sentir-se mais seguras. Alguns decidiram ficar perto
das machambas. De modo que redobrou o
trabalho dos anciãos da Comissão ON. Tinham de andar muitos quilômetros
para zelar da união e da segurança física e espiritual do rebanho em todas as
congregações muito dispersas.
As notícias desses lamentáveis
acontecimentos chegaram à congênere da Sociedade em Zimbábue, que providenciou
que membros da congênere visitassem os irmãos e os edificassem. Consultou-se
também o Corpo Governante em Brooklyn sobre a necessidade de alimentos, roupa e
medicamentos nos campos em Milange. Com profunda preocupação com o bem-estar
dos irmãos, o Corpo Governante deu instruções de se usarem os recursos
financeiros disponíveis para cuidar das necessidades deles, inclusive de sair
da região de Milange e voltar para suas regiões de origem, se fosse
aconselhável. Essa opção parecia mesmo aconselhável.
No começo de 1985, membros da
Comissão ON, assim como haviam feito todos os anos, partiram de
Milange para se encontrar com o superintendente zonal, enviado pelo Corpo
Governante. Don Adams de Brooklyn estava ali. Numa reunião que incluía as
Comissões de Filial da Zâmbia e do Zimbábue, os membros da Comissão ON
expressaram suas preocupações referentes ao Círculo do Carico. Foram
aconselhados a considerar se era sábio continuar no Carico. Chamou-se atenção
para o princípio bíblico em Provérbios 22:3: “Argucioso é aquele que tem visto
a calamidade e passa a esconder-se.”
Com isto em mente, voltaram aos campos.
Sair? Como? E para
onde?
O conselho foi imediatamente
transmitido às congregações. Alguns agiram prontamente, como no caso de João
José, irmão solteiro que mais tarde participou na construção dos prédios para
as congêneres em Zâmbia e em Moçambique. Com um grupo de outros irmãos, cruzou
a fronteira para Malaui, chegando à Zâmbia sem maiores problemas.
Mas a situação não era tão fácil para
outros. Muitas famílias tinham filhos pequenos a considerar. Membros do
movimento de resistência vigiavam constantemente os caminhos, e quem os usasse
estava sujeito a ser atacado. A fronteira com Malaui apresentava outro
desafio, especialmente para os irmãos malauianos, visto que as Testemunhas de
Jeová ainda eram desprezadas e caçadas ali. Surgiram assim questões polêmicas:
Como sairiam? Aonde iriam? Tendo vivido por anos no mato e sem documentos, como
podiam cruzar fronteiras? “Nós também não sabemos”, foi a resposta dos membros
da Comissão ON numa reunião extremamente tensa com todos os anciãos. “Uma coisa
é certa — temos de nos dispersar”, enfatizaram. Concluíram: “Cada um faça
orações, planeje e aja.” — Note 2 Crônicas 20:12.
Nos meses à frente, esse foi o tema
dominante das reuniões. A maioria dos anciãos apoiava a idéia de sair e
incentivava os irmãos neste sentido. Outros decidiram ficar. Por fim, começou
um êxodo esparso. Os irmãos malauianos que tentaram voltar para casa foram
bloqueados na fronteira pelos motivos antigos e tiveram de voltar. Isto
diminuiu o entusiasmo dos que tinham decidido sair e reforçou o argumento dos a
favor de ficar. Um “convite” para outra “reunião importante” na base militar
passou a ser o fator decisivo para a maioria.
Êxodo em massa
Em 13 de setembro de 1985, apenas dois
dias antes da reunião anunciada, os irmãos Muthemba, Matola e Chicomo, os três
membros restantes da Comissão ON, reuniram-se mais uma vez. O que deviam
recomendar aos irmãos com respeito ao “convite”? A reunião durou toda a
noite. Depois de muita oração e ponderações, decidiram: “Teremos de fugir na
próxima noite.” Logo em seguida, no que foi possível, espalharam a notícia da
decisão, bem como a hora e o lugar de encontro. As congregações que decidiram
partir compareceram. Foi o último ato da Comissão ON nos campos.
A partir das 20h30, depois de fazer uma
oração, os irmãos começaram um êxodo cronometrado. Seu êxodo foi um segredo bem
guardado tanto dos soldados como dos “rebeldes”. Serem apanhados teria sido uma
calamidade. Sob a cobertura da noite, cada congregação tinha 15 minutos
para sair, concedendo-se a cada família 2 minutos. A longa fila
indiana se enveredou na mata silenciosamente, sem saber o que no amanhecer os
aguardaria na fronteira de Malaui, se conseguissem chegar lá. Os pastores
espirituais da Comissão ON foram os últimos a partir, à uma hora da madrugada.
— Atos 20:28.
Filipe Matola foi vencido pelo cansaço,
depois de uma caminhada de uns 40 quilômetros e de não ter dormido por
duas noites. Adormeceu à beira da trilha enquanto esperava os últimos dos
idosos passar. Podemos imaginar a alegria que sentiu quando o jovem Ernesto
Muchanga veio correndo da vanguarda com as boas novas: “‘Tio’, os irmãos estão
sendo recebidos em Malaui!” “Este é um exemplo”, exclamou Matola, “de como
Jeová abre o caminho, quando não parece haver saída, como no mar Vermelho”.
— Êxo. 14:21, 22; veja o Salmo 31:21-24.
Nos meses seguintes, sentiram o que
significa viver em campos de refugiados em Malaui e na Zâmbia, antes de
retornarem a Moçambique e de voltarem às suas cidades. Mas o que aconteceu aos
que ficaram na área do Carico?
Os que ficaram
A decisão da Comissão ON não chegou a
tempo a todas as congregações dispersas antes de começar o êxodo. Alguns dos
que o ouviram decidiram permanecer ali e ir à reunião na base militar.
A Congregação Maxaquene, junto com outras, não ouvira o anúncio, mas já
decidira fugir. Estes irmãos, antes de irem à reunião, deixaram sua família
preparada para fugir. Cerca de 500 irmãos compareceram à reunião. Esta foi breve
e ao ponto. O comandante disse: “Foi determinado pelos nossos superiores
que todos aqui presentes deverão comparecer à nossa base superior da região.
Será uma viagem longa. Por lá passarão até três meses.” E a viagem começou
naquele momento.
Valendo-se da vigilância relativamente
pouca da parte dos soldados, os irmãos decididos a fugir escaparam. Juntaram-se
a seus familiares e escaparam como puderam rumo à fronteira de Malaui. Outros,
quer no cumprimento das ordens do movimento armado, quer por falta de
oportunidade, empreenderam a viagem para o sudoeste até a base em Morrumbala,
chegando ali alguns dias depois. Ali foram outra vez pressionados para apoiarem
o movimento. Sua recusa resultou em severas torturas e inúmeros espancamentos,
de que pelo menos um irmão morreu. Três meses depois, receberam finalmente a
permissão para voltar às suas casas.
Muitos continuaram na região do Carico,
totalmente sob o controle do movimento de resistência. Viram-se isolados da
organização de Jeová pelos próximos sete anos. Eram um grupo bastante grande,
de cerca de 40 congregações. Sobreviveriam espiritualmente? Seria seu amor
a Deus forte o bastante para não sucumbirem ao desespero? Voltaremos a eles
mais tarde.
Campos de refugiados em Malaui e na
Zâmbia
Nem todos os que fugiram do Carico
foram prontamente recebidos em Malaui. A Congregação Maxaquene, depois de
cruzar a fronteira e descansar um pouco, foi descoberta pela polícia malauiana
e mandada voltar. Os irmãos suplicaram aos policiais, explicando que fugiam da
guerra na região onde havia morado. Os policiais não se deixaram comover.
Aparentemente sem opção e em desespero, alguém gritou: “Vamos chorar, irmãos!”
E foi exatamente o que fizeram, e choraram tão alto, que atraíram a
atenção da vizinhança. Os policiais, embaraçados, pediram que parassem. Uma
irmã rogou: “Deixem-nos pelo menos preparar algum alimento para as crianças.”
Os policiais concordaram, dizendo que voltariam mais tarde. Felizmente, nunca
voltaram. Mais tarde, uma autoridade veio em socorro das Testemunhas, trazendo
alimentos e encaminhando-os para o campo de refugiados onde estavam os demais
irmãos.
As Testemunhas de Jeová moçambicanas
estavam assim inundando os campos de refugiados em Malaui. O governo
malauiano as recebeu na condição de refugiados de guerra. A Cruz Vermelha
Internacional veio em auxílio, trazendo suprimentos para aliviar o desconforto
e as dificuldades causadas pelas intempéries nos campos a céu aberto. Alguns
foram para a Zâmbia, onde foram encaminhados a outros campos de refugiados.
Filipe Matola e Fernando Muthemba trabalharam então associados com membros da
Comissão de Malaui em busca dos irmãos moçambicanos nesses campos, a fim de
levar consolo espiritual e ajuda financeira, autorizada pelo Corpo Governante.
Em 12 de janeiro de 1986, A. D.
Schroeder, membro do Corpo Governante, deu a esses irmãos encorajamento
espiritual e lhes transmitiu o cordial amor do Corpo Governante. Não podendo
entrar nos campos, proferiu na Zâmbia um discurso que foi traduzido para o
chicheua, gravado e depois levado aos campos em que estavam os irmãos
moçambicanos.
Aos poucos, esses refugiados foram
ajudados a chegar à sua próxima parada, em Moçambique. Para muitos foi Moatize,
na província de Tete. Em Moçambique havia uma mudança na atitude do governo para
com as Testemunhas de Jeová, embora nem todas as autoridades locais ainda
evidenciassem isso.
De volta a Moçambique
Grupo após grupo começou a superlotar
os vilarejos ao leste da cidade de Tete. Vagões abandonados, antes usados como
sanitários públicos, foram usados para abrigá-los. Depois de limpar os vagões,
muitos deles foram usados como locais para celebrar a Comemoração da morte de
Cristo em 24 de março de 1986.
Irmãos de todo o Moçambique ficaram ali
por meses sem saber como seriam transportados de volta aos seus lugares de
origem. Esta espera tinha seu quinhão de tribulação. Tentaram improvisar algum
trabalho a fim de se sustentar ou de juntar algum dinheiro para uma passagem
aérea, mas sem muito sucesso. Por causa da guerra, não era possível seguir
pelas estradas. Nem sempre eram bem tratados pelas autoridades locais, que
ainda tentavam obrigá-los a repetir slogans
políticos. A isso os irmãos respondiam corajosamente: “Fomos levados para
o Carico por esta questão. Ali cumprimos a nossa pena e fomos abandonados à
mercê de atacantes armados. Escapamos pelos nossos próprios meios. O que
ainda querem de nós?” Depois de tal resposta, eram deixados em paz. No entanto,
os jovens ainda continuavam a ser hostilizados e encarcerados na tentativa de recrutá-los
para o exército do governo, a fim de combater a contínua insurgência armada na
região. Muitos irmãos jovens usavam de astúcia para fugir e viver escondidos.
A comissão em Malaui decidiu que
Fernando Muthemba devia ir a Tete para ajudar os irmãos ali. Quando o irmão
Muthemba chegou a Moatize, as autoridades decidiram inspecionar sua bagagem.
Bem a tempo, os irmãos conseguiram resgatar as publicações que tinha consigo.
Portanto, quando os policiais revistaram sua bagagem, o que encontraram?
“Apenas alguns trapos”, ele diz. A polícia desapontada perguntou: “É só
isso?” Sim, era só isso. Esta era toda a bagagem de um homem que arcara com
responsabilidades tão pesadas nos campos. Como todos os demais, voltara
despojado de tudo o que possuíra. De fato, naquele momento, a aparência física
dos irmãos não era nada agradável — sujos, maltrapilhos, famintos e
obviamente maltratados. Enquadravam-se bem na descrição inspirada de muitos dos
servos de Deus no passado: “Andavam vestidos de peles de ovelhas e de peles de cabras,
passando necessidade, . . . sofrendo maus-tratos; e o mundo não era
digno deles. Vagueavam pelos desertos, . . . e pelas cavernas, e
pelas covas da terra.” — Heb. 11:37, 38.
Por fim, transporte para Maputo
Em Maputo, uma comissão designada pela Sociedade
passou a contatar diversas agências governamentais e não-governamentais para
encontrar meios de translado dos irmãos em Tete e na Zâmbia. Quão felizes
ficaram Isaque Malate e Francisco Zunguza quando se dirigiram ao Alto
Comissariado das Nações Unidas Para Refugiados e foram informados: “Já foram
autorizados mais de 50 vôos para trazer de volta as Testemunhas de Jeová”!
Ficaram gratos de que o governo dera a autorização.
Sem saber deste arranjo, os irmãos em
Tete, todos os acampados perto do aeroporto, iam todos os dias a ele na
esperança de que um avião de carga levasse pelo menos alguns deles. Comovido,
Fernando Muthemba fala sobre o dia 16 de maio de 1987: “Eram 7h30 da
manhã. Quando olhei para o aeroporto, vi dois grandes aviões Boeing que iam iniciar
a ‘ponte aérea’ para evacuar todas as Testemunhas de Jeová para Maputo.” Que
emoção! Depois de 12 anos retornar às suas cidades!
Infelizmente, sua aparência não era
nada apresentável. Emídio Mathe, ancião na Congregação Maxaquene, tomou
emprestado uma calça de alguém que tinha mais de uma, para chegar a Maputo mais
ou menos vestido. Os irmãos que esperavam a chegada dos refugiados em Maputo
também levavam roupa aos aviões, para que pudessem desembarcar com um pouco de
dignidade. Sentiam-se envergonhados? “Não”, responde Emídio, “embora tivéssemos
ficado materialmente despojados, tínhamos a esperança de que Jeová, um dia, nos
usasse para que seu nome fosse enaltecido. Não estávamos preocupados com bens
materiais; não nos sentíamos envergonhados. Andávamos esfarrapados, mas a nossa
fé em Jeová estava invicta.” Os irmãos na África do Sul e no Zimbábue
contribuíram de bom grado toneladas de alimentos e de roupa para seus irmãos
moçambicanos que retornaram.
O governo providenciou transporte
adicional às Testemunhas que voltavam para outras províncias. Para os que
retornaram à província de Sofala, à região conhecida como o Corredor da Beira
(por causa da proteção dada por soldados do Zimbábue), ainda ia haver
dificuldades. Dezoito deles, inclusive um ancião, foram capturados e levados à
base do movimento de resistência.
‘Jeová é grande, Jeová é grande!’
O comandante da base, depois de
interrogá-los e ficar sabendo que eram Testemunhas de Jeová, chamou um
religioso que dirigia uma igreja na região controlada pelo movimento de
resistência. Ele disse a este homem: “Estes são Testemunhas de Jeová e agora
vão orar com vocês. Trate-os bem.” Para a surpresa dos irmãos, este pastor (que
algum tempo antes obtivera publicações da Torre de Vigia no Zimbábue), meneou a
cabeça e exclamou: “Jeová é grande . . . Jeová é grande!” Prosseguiu:
“Oramos a Jeová para que enviasse pelo menos um para nos ensinar.”
No outro dia, ele reuniu os
62 membros da sua igreja e pediu que o ancião lhes falasse. O irmão
começou por dizer que todas as imagens deles tinham de ser removidas. (Deut.
7:25; 1 João 5:21) Eles prontamente obedeceram. Ele mostrou também que
Jeová não aprova e nem autoriza a expulsão de demônios por seus servos hoje em
dia e que o toque ritual de tambores não faz parte da verdadeira adoração
conforme delineada na Bíblia. (Mat. 7:22, 23; 1 Cor. 13:8-13) Na
conclusão, o líder do grupo levantou-se e disse: “A partir de hoje, eu e minha
família somos Testemunhas de Jeová.” Com exceção de um casal, a congregação inteira
expressou o mesmo desejo.
Nos quatro meses que os irmãos
permaneceram ali, realizaram regularmente reuniões. Quando chegou o tempo de
irem embora, levaram consigo um bom número deste grupo, muitos deles tendo sido
antes membros ativos das facções combatentes.
Muitos se juntaram ao povo de Jeová
durante este período, pois apesar das condições difíceis de vida, os irmãos
nunca deixaram de pregar as boas novas do Reino de Deus e de fazer discípulos.
— Mat. 24:14; 28:19, 20.
Retorno à vida nas cidades
Os irmãos eram gratos de estar de volta
nas cidades. Mas sem documentos, sem moradia ou serviço secular, a vida
continuava a ser difícil para eles. Era uma nova fase na sua vida cheia de
desafios. A própria nação passava por convulsões, flagelada por guerra
civil, fome, seca e desemprego. Conseguiria o povo de Jeová soerguer-se nestas
circunstâncias difíceis?
O governo veio em seu auxílio, criando
o Departamento de Reintegração Social. Muitas Testemunhas receberam de volta
seus empregos anteriores, ocupando posições importantes em empresas do setor
público e privado. Outros abriram seus próprios negócios.
Muitos puderam voltar às suas
residências anteriores, ainda ocupadas por parentes. Para outros, porém, a
situação não era fácil. Sua casa tinha sido ocupada por estranhos ou por
parentes inamistosos, ou tinha sido nacionalizada pelo Estado. Demonstrando
mansidão, as Testemunhas que voltaram decidiram não criar caso, contrário ao
que o governo talvez temesse. Testemunhas que não tinham sido enviadas aos
campos abriram seus lares, acolhendo seus irmãos sem teto. Aos poucos, acharam
ou construíram para si acomodações. Com a bênção de Jeová sobre a sua
diligência, muitos têm hoje uma boa casa, para a surpresa dos que tinham
observado a condição lastimável em que voltaram. É notável que no meio da
prevalecente pobreza, nenhuma Testemunha de Jeová teve de recorrer à
mendicância. Depois de poucos anos, quando se abriu a oportunidade para as
pessoas comprarem sua própria casa do Estado, a primeira pessoa em todo o país
a conseguir uma casa foi uma Testemunha de Jeová que estivera no Carico.
O depósito de publicações em Maputo funciona atualmente neste lugar.
No entanto, obter uma casa ou conseguir
outros benefícios materiais não era a principal preocupação dos irmãos. Mais
importante era achar locais para reuniões de adoração. Afinal, não era este o
principal motivo de Jeová os ter trazido a salvo para casa? Certamente era isso
o que os irmãos acreditavam firmemente. (Note Ageu 1:8.) Prontamente,
improvisaram todo tipo de Salão do Reino — em quintais, em salas de estar
e em cozinhas, em barracos de zinco e de sapé; às vezes — um luxo
— reuniam-se em salas de aula em escolas ou auditórios de hospitais.
É nestes Salões do Reino improvisados que a maioria das 438 congregações
em Moçambique se reúne até agora. Há raras exceções. Uma delas é na Beira onde,
com a ajuda da congênere da Sociedade no Zimbábue e da sua valente equipe de
construção, os irmãos superaram os muitos obstáculos e finalmente, em
19 de fevereiro de 1994, dedicaram em Moçambique seus primeiros dois
Salões do Reino construídos com tijolos.
Comissões especiais — reconhecimento legal
Com o objetivo de cuidar das
necessidades materiais e espirituais dos irmãos ao reorganizarem sua vida, o
Corpo Governante designou comissões especiais em Tete, na Beira e em Maputo,
supervisionadas pelas congêneres no Zimbábue e na África do Sul. Com este
arranjo, as congregações puderam receber mais atenção. Para fornecer as muito
necessitadas publicações bíblicas, estabeleceram-se depósitos nestas cidades.
Estes serviram também como centros de distribuição de alimentos e de roupa.
Organizaram-se assembléias e congressos, embora ainda fosse preciso vencer
alguns obstáculos antes que pudessem ser realizados abertamente.
Daí, em 11 de fevereiro de 1991,
correu uma notícia emocionante por todo o país, para a alegria do povo de Jeová
em todo o mundo. O governo de Moçambique concedera reconhecimento legal à
Associação das Testemunhas de Jeová de Moçambique. Fernando Muthemba, que
ajudara lealmente a cuidar dos irmãos no Carico, serviria como seu primeiro
presidente. O povo de Jeová em Moçambique regozijou-se também de ter no
seu meio os primeiros missionários treinados em Gileade. Estes ficavam em lares
missionários em Maputo e na Beira. Mas outro lar estava sendo preparado em
Tete, para receber mais missionários que iam chegar em breve.
Missionários alegram seus irmãos
Abriu-se em Moçambique um verdadeiro
campo missionário. Abnegados e desejosos de participar na reconstrução e
colheita espirituais em Moçambique, os formados em Gileade e pioneiros
especiais experientes que já serviram em outros campos aceitaram prontamente o
convite de servir aqui. Vieram de cinco continentes, muitos deles de países
onde se fala português, tais como o Brasil e Portugal. Sua nova designação não
deixava de ser um desafio, porque em 1990 e 1991 o país apenas estava começando
a sair do atoleiro econômico causado pela guerra e pela seca. Hans Jespersen,
missionário dinamarquês que servira no Brasil e que atualmente serve como superintendente
de distrito, conta: “Não havia praticamente nada nas lojas, e eram evidentes as
marcas da guerra e suas conseqüências.” No entanto, já se evidencia a constante
recuperação econômica. Apesar disso, muitos de nossos irmãos nas regiões norte e
rurais continuam a viver em condições extremamente difíceis.
Os missionários se confrontaram com
muito do que era novidade para eles. Por exemplo, antes da assinatura do acordo
de paz entre o governo Frelimo e a Renamo, as designações dos missionários às vezes
exigiam que viajassem em colunas (comboios compridos de veículos escoltados
pelas forças armadas do governo), e estes às vezes sofriam ataques. Mas tiveram
muita alegria em conhecer irmãos; e para muitos destes, conhecer Testemunhas de
outras raças e nacionalidades era a realização dum sonho.
Numa parte remota do norte, uma criança
andou o dia inteiro com o pai para ver um missionário que viera da Austrália.
Notando a expressão de admiração no rosto da criança, o pai disse: “Eu não lhe
disse que havia irmãos brancos?” Muitos, ao cumprimentar missionários,
expressavam sua satisfação dizendo: “Conhecíamos vocês apenas pelas
experiências no Anuário.” Testemunhas
moçambicanas, que em 1993 ainda estavam em campos de refugiados na Zâmbia,
disseram: “Quando ouvimos na Zâmbia que em Tete havia um lar missionário,
fizemos tudo para retornar, para ver isso com os nossos próprios olhos e para
continuar o serviço aqui, 18 anos depois de termos sido levados para o
Carico.”
O objetivo principal desses
missionários em Moçambique é pregar as boas novas do Reino de Deus. Isso tem
sido muito gratificante. Os primeiros missionários em Maputo e na Beira contam:
“A fome espiritual era tão grande, que quantidades enormes de publicações eram
colocadas diariamente.” As publicações da Sociedade, em quatro cores, são
novidade neste país e atraem muito a atenção do público. Os lares missionários
são muitas vezes usados como base central para dirigir estudos bíblicos, visto
que muitos estudantes parecem preferir isso.
Atualmente, há seis lares missionários
espalhados pelo país, com 50 missionários servindo em diferentes
designações. Alguns missionários viajam cada mês em rotas estabelecidas pela
filial para recolher relatórios e levar correspondências, revistas e outras
publicações. Estas rotas incluem o lugar onde antes havia o Círculo do Carico,
em Milange.
A propósito, o que aconteceu com as
Testemunhas que ficaram nessa região e que ficaram isolados do restante dos
seus irmãos?
Abre-se o Círculo do Carico
Em 4 de outubro de 1992, foi assinado
em Roma o Acordo Geral de Paz entre a Frelimo e a Renamo pondo fim oficial a
16 anos de guerra civil em Moçambique. Este evento amplamente festejado
possibilitou levantar a cortina que separava a região do anterior Círculo do
Carico. E o que se viu? Mais de 50 congregações das Testemunhas de
Jeová emergindo do isolamento que durara sete anos. Como sobreviveram
espiritualmente a este severo isolamento?
Em fevereiro de 1994, realizou-se em
Milange uma entrevista com 40 irmãos responsáveis. Também estavam presentes mil
outros que andaram mais de 30 quilômetros para ver os missionários. Os
anciãos que permaneceram depois do êxodo contaram: “Depois de muitos de nós
termos sofrido espancamentos naquela base militar, permitiram que voltássemos
para viver nas machambas das extintas
aldeias. Com o tempo, a Renamo autorizou-nos a construir Salões do Reino e
realizar reuniões. Prometeram — e o cumpriram — que enquanto
estivéssemos nos nossos salões ou em caminho para a nossa adoração, não
seríamos molestados. No entanto, não se responsabilizavam se num dia de reunião
alguém estivesse em casa ou mesmo fora do Salão do Reino.” E quanto à
pregação? A resposta dos irmãos é tocante: “Sem roupa e despojados,
vivíamos como bichos, mas não esquecíamos que éramos Testemunhas de Jeová e que
tínhamos a obrigação de pregar o Reino.” Que demonstração eloqüente de apreço e
de amor a Deus!
Em 1993, o superintendente de distrito
e sua esposa presenciaram um evento sem paralelo numa assembléia de circuito
realizada em Milange, algo que confirmou que esses irmãos deveras haviam
continuado a fazer discípulos. Quando o orador do discurso do batismo pediu que
os candidatos ficassem de pé, 505 se levantaram dentro duma assistência de
2.023, apresentando-se para o batismo! E tem mais.
O “Saulo” do Carico
Saulo de Tarso, ferrenho perseguidor
dos seguidores de Jesus Cristo no primeiro século EC, tornou-se servo
zeloso de Jeová. O Carico também teve seu “Saulo”. Ele é um homem de
traços finos e de aparência mansa, e é atualmente servo ministerial e pioneiro
regular. Não há nada que o diferencie dos seus colegas de trabalho quando estes
dão duro para ganhar o sustento. Mas escute-o ao contar sua história, ao fazer
uma pausa no seu trabalho:
“Em junho de 1981, a região em que eu
vivia foi tomada pelo movimento de resistência. Fui levado com outros homens ao
seu quartel. Foi-nos exposto o motivo da sua luta e a importância de apoiá-la
para a libertação de nosso povo. Recebi treinamento militarizado e participei
em combates bem-sucedidos. Esta tornou-se minha rotina nos próximos sete anos.
Dada a minha lealdade ao movimento, fui promovido a comandante. Chefiei sete
pequenos exércitos. Muitas regiões vieram a estar sob o nosso controle, e uma
delas era o Carico. Destaquei homens para penetrarem nas aldeias onde estavam
as Testemunhas de Jeová em busca do seu apoio. Autorizei a queima das suas
casas e que algumas delas fossem mortas. Meus comandados me disseram:
‘Mataremos a todos, mas nunca conseguiremos mudá-los.’ Com o tempo, fui
transferido para outras bases.”
Embora este comandante não tivesse
escrúpulos de perseguir o povo de Jeová, o próprio Jeová, na sua misericórdia,
deu-lhe a oportunidade de mudar. O homem explica: “Após sete anos sem ver
a minha esposa, pedi dispensa para visitá-la. E foi em Malaui, num campo
de refugiados, que tive meu primeiro contato com a verdade. Recusei
inicialmente. Depois, ao ouvir sobre o novo mundo, o Reino de Deus e um mundo
sem guerras, perguntei-me: ‘Pode alguém que fez tantas coisas más beneficiar-se
com isso?’ Foi-me respondido com a Bíblia: ‘Sim, por ter fé e obedecer a Deus.’
Aceitei um estudo bíblico, e em junho de 1990 fui batizado. Desde então tenho
sido pioneiro, ajudando a muitos dos meus colegas ex-combatentes. Só ali
naquele campo ajudei a 14 pessoas a se tornarem servos de Jeová. Tendo
servido onde há mais necessidade, já sofri o meu quinhão por motivos de
neutralidade. Sou muito grato a Jeová pela sua misericórdia e por não levar em
conta os tempos da minha ignorância, perdoando-me por meio do sacrifício de
Jesus Cristo.” (Atos 17:30) Este é apenas um dos muitos exemplos que mostram
por que os irmãos moçambicanos dizem tantas vezes com profundo apreço: “Jeová é
grande.” — Sal. 145:3.
Uma filial em Maputo
Quem diria? Aconteceu mais cedo do que
esperávamos. O Corpo Governante aprovou que houvesse uma filial em
Moçambique. Desde 1925, quando o mineiro Albino Mhelembe trouxe a verdade de
Johanesburgo, a obra em Moçambique havia sido cuidada pelas congêneres na
África do Sul, em Malaui e no Zimbábue. Finalmente, em Maputo, a partir de
1.° de setembro de 1992, numa grande casa que a Sociedade adquiriu e
renovou na área de muitas embaixadas, a filial moçambicana iniciou seu trabalho
de supervisionar este vasto campo. Começando com uma reduzida família de 7 membros,
a recém-designada Comissão de Filial tinha pela frente um trabalho desafiador.
Tinha de organizar a obra no campo, cuidar das necessidades espirituais
— e mesmo materiais — dos irmãos, ajudar na construção de Salões do
Reino e construir um novo prédio para a filial. Era uma tarefa e tanto. Mas
começou a chegar ajuda.
Equipes de voluntários internacionais
de construção, vindas de partes diferentes do mundo, participam agora com os
irmãos moçambicanos na construção do novo prédio da filial num lugar agradável
perto duma praia. A própria família de Betel aumentou para 26 membros
regulares. Irmãos e irmãs da região de Maputo também ajudam. Como grupo unido,
todos trabalham para enaltecer a adoração do verdadeiro Deus, Jeová, nesta
parte da Terra. — Isa. 2:2.
“Tende em estima a homens desta sorte”
Um trabalho desafiador é também
realizado pelos superintendentes viajantes. Mencionamos homens tais como Adson
Mbendera, que costumava visitar as congregações no norte e que depois serviu
como membro da Comissão ON nos campos; Lameck Nyavicondo, lembrado com
apreciação pelos irmãos de Sofala; Elias Mahenye, que veio da África do Sul
para servir, sofrendo atrocidades e advertindo: “A PIDE [a polícia colonial]
desapareceu, mas o avô dela, Satanás, o Diabo, ainda está por aí.
Fortaleçam-se e tomem coragem.” (1 Ped. 5:8) Sem contar com as comodidades
normais, renunciaram a quaisquer confortos que tivessem para servir aos seus
irmãos.
Há pouco tempo, na região de Milange,
onde estavam as aldeias “carcerárias”, formou-se um circuito. Os irmãos que
moram naquela região são especialmente gratos a Jeová por serem beneficiados
mais plenamente pelos cuidados providos por meio da Sua organização visível.
Orlando Phenga e sua esposa acharam ser um privilégio sair de Maputo para
servir ali, onde ele e milhares de outros tinham atuado no “Palco do Carico”.
Ao oeste da cidade de Tete, ajudando a reintegrar congregações que por anos
também ficaram isoladas pela guerra, Benjamin Jeremaiah e sua esposa viajam por
dias a pé a lugares onde muitos nunca viram um automóvel. Raymund Phiri,
solteiro abnegado, teve de dormir no alto duma montanha junto com os demais da
congregação que servia para escapar a possíveis ataques, e foi ali que preparou
seu relatório para o escritório. Também Hans e Anita Jespersen servem um
distrito que abrange o país todo e chegaram a conhecer tanto as riquezas
espirituais como a pobreza material dos seus irmãos.
Todos estes irmãos demonstraram ter o
espírito que induziu o apóstolo Paulo a escrever a respeito de Epafrodito:
“Tende em estima a homens desta sorte.” — Fil. 2:29.
Avanço com zelo piedoso
Os fiéis em Moçambique, além de terem
mantido a integridade em severas provas, têm manifestado seu amor a Deus e ao
próximo de outros modos. No ministério público, aproveitam bastante sua
recém-conseguida liberdade e as abundantes provisões de Jeová na forma de
revistas e de outras publicações. Podem ser vistos pregando livremente nas
ruas, nas praças públicas e em mercados tais como o de Xipamanine. Os resultados
são evidentes no aumento rápido do número de louvadores de Jeová.
Além do acréscimo de novos
publicadores, o aumento tem sido ampliado pelo retorno de irmãos dos campos de
refugiados em países vizinhos. Circuitos inteiros têm retornado. Constroem
rapidamente Salões do Reino com qualquer material disponível. Fazem isso até
mesmo em comunidades temporárias de refugiados, tais como Zóbuè, na fronteira
de Malaui, e Caboa-2, fora de Vila Ulongue. Sem esperar tempos melhores, muitos
se têm alistado como pioneiros. Há agora mais de 1.900 participando neste
serviço de tempo integral. Expressam grande apreciação pelo treinamento
recebido na Escola do Serviço de Pioneiro, em funcionamento aqui desde 1992.
Pode imaginar quem foram os instrutores
numa recente escola em Maputo, onde quase a turma inteira era daqueles que
estiveram no Círculo do Carico? Francisco Zunguza, recordista moçambicano do
número de vezes que foi preso por causa da sua fé, e Eugênio Macitela, preso e
mandado a Milange depois de ter estudado apenas por uma semana. Ambos servem
atualmente como superintendentes de circuito. E um dos estudantes foi
Ernesto Chilaule. Ele tem uma lembrança que gosta de contar: “Quando passo
naquela rua onde está o prédio da extinta PIDE, olho para aquela janela e
lembro — foi ali que os agentes me disseram: ‘Fica sabendo, Chilaule, que
aqui é Moçambique, e vocês nunca serão reconhecidos neste país.’ E logo
ali perto, rua abaixo, está a nossa filial legalizada!”
Como o irmão Chilaule deve sentir-se
recompensado, pois a sua pequena Alita, que costumava buscar alimentos das
provisões congregacionais enquanto seu pai estava na prisão de Machava, é agora
a esposa de Francisco Coana, um dos membros da Comissão de Filial! O irmão
Coana era aquele pioneiro zeloso no Carico que espertamente “vendia” produtos
aos de fora dos campos, para poder pregar-lhes. Por certo, Jeová tem abençoado
os milhares de fiéis que, lá no norte no distrito de Milange, no Círculo do
Carico, escreveram uma bela página repleta de amor, de fé e de integridade para
a honra e a glória de Jeová. — Pro. 27:11; Rev. 4:11.
Mas a batalha ainda não acabou. Há
novos perigos desafiadores. O espírito permissivo do mundo que se espalhou
pela Terra também pode fazer vítimas aqui e já os tem feito. Imoralidade,
materialismo e indiferença causados pelos tempos aparentemente mais fáceis, têm
causado dano. No entanto, os servos fiéis de Jeová, em Moçambique, continuam
fervorosamente a manter constante vigilância. Sobreviveram a tremendas provas
de fé. Estão decididos, com a ajuda de Jeová, a continuar a dar evidência
de que amam a Jeová de todo o coração, mente, alma e força, e que amam seu
próximo como a si mesmos. Têm fé inabalável em que o Reino de Deus em breve
transformará a Terra num paraíso, em que não somente não haverá guerra e fome,
mas que terão ali a grande alegria de acolher de volta os seus entes queridos
falecidos, inclusive todos os que se mostraram fiéis a Deus mesmo até a morte
no Círculo do Carico. — Pro. 3:5, 6; João 5:28, 29; Rom. 8:35-39.
[Foto/Mapas na
página 123]
(Para o texto formatado, veja a
publicação)
Mapa encaixado: Muitos
irmãos foram exilados para São Tomé, no oceano Atlântico, distante uns
3.900 quilômetros
ZÂMBIA
MALAUI
MOÇAMBIQUE
ZIMBÁBUE
ÁFRICA DO SUL
Milange
Carico
Mocuba
Inhaminga
Beira
Maxixe
Inhambane
Maputo
Tete
[Foto na
página 131]
Disseram a Ernesto Chilaule: “Vocês
nunca serão reconhecidos neste país. . . . Mas você esquece isso!”
[Fotos nas
páginas 140, 141]
No campo de refugiados no Carico,
nossos irmãos (1) cortavam lenha e (2) pisavam barro para a
fabricação de tijolos, ao passo que (3) as irmãs carregavam água.
(4) Achavam um meio de realizar assembléias. (5) Xavier Dengo,
(6) Filipe Matola e (7) Francisco Zunguza ajudavam por dar ali
supervisão espiritual como superintendentes de circuito. (8) Salão do
Reino construído ali por Testemunhas malauianas, ainda em uso.
[Foto na
página 175]
Testemunhas reunidas para o Congresso
de Distrito “Devoção Piedosa” perto de Maputo, em 1989, logo depois de
retornarem dos campos
[Fotos na
página 177]
Em cima: anciãos e superintendentes de
circuito no lugar onde missionários entregam cada mês publicações e
correspondência
Embaixo: missionários em Tete recebem
aulas de chicheua
[Fotos na
página 184]
Comissão de Filial (da esquerda: Emile
Kritzinger, Francisco Coana, Steffen Gebhardt) com foto dos prédios da filial
agora em construção em Maputo
[Gravura de
página inteira na página 116]