quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Uma análise, uma achega e um repto


Por: Carlos Nuno Castel-Branco
Num mural do FB, o assunto de diversão (no duplo sentido, divertimento e ilusionismo analítico, ou desvio da atenção) consiste em denegrir as previsões feitas da crise económica moçambicana actual, com base no já habitual discurso assente em dois princípios: primeiro, falsificação das questões; segundo, pôr em causa o atrevimento de pensar.
Falsificações: há-as de vários tipos. Falsificar o que foi previsto, falsificar a base de previsão, falsificar o tempo de previsão, falsificar a intenção da previsão, falsificar a intenção de lembrar a previsão e falsificar a ordem dos factores (o evento ocorre devido à previsão???). Vamos deixar os feiticeiros dos nossos amigos e tentar pensar na ecoonomia de Moçambique neste período.
1) A construção de uma previsão
Vamos ver alguns factos. Entre 2005 e 2014, a dívida pública cresceu, anualmente, e em média, 4 vezes mais depressa que o PIB de Moçambique. Este são dados registados nas contas gerais do estado e nos relatórios anuais da dívida pública. Usando estes dados públicos, é facil prever que a continuação do mesmo cenário faria com que em 5 anos o rácio da dívida pública sobre o PIB crescesse de 15% para 50% (isto é, saísse de uma base de extremo conforto conservador para uma de indício de crise de sustentabilidade) e que, em mais cinco anos, este rácio ultrapasse os 100%, isto é, que a dívida pública excedesse o PIB. Portanto, a excessiva velocidade do crescimento da dívida pública relativamente ao PIB faria com que a economia de Moçambique deixasse o seu extremo e conservador conforto fiscal e passasse para crise de insolvência fiscal. Repito, estes dados estão nas contas gerais do estado e nos relatórios anuais da dívida, ambos produzidos pelo governo de Moçambique. Quem quiser, vá buscar os documentos e faça pos cálculos.
Segundo o Primeiro Ministro de Moçambique, no seu informe à nação sobre a crise da dívida, os projectos que deram origem à dívida, do lado da despesa, foram orientado para os megaprojectos do complexo mineral-energético, nomedamente 60% do montante para infraestruturas e 15% para projectos de segurança (por esclarecer). A dívida não é só causada pela despesa, mas pela relação entre a despesa e a receita. Segundo várias estimativas de peritos nacionais e internacionais, a combinação dos incentivos fiscais aos megaprojectos (essencialmente redundadantes, como o demonstram dois estudos independentes de peritos internacionais tornados públicos há cinco anos), com as concessões de infraestruturas, terra e depósitos minerais a preços baixíssimos, com a venda de gás à Sasol significativamnete abaixo do preço de mercado, com a livre circulação e repatriamento do capital e lucros dos megaprojectos e com as baixas taxas de reinvestimento dos lucros na economia (dados disponíveis nos relatórios anuais do Banco de Moçambique), resultaram numa perda de receita para a economia equivalente a cerca e 12% a 18% do PIB, anualmente, depdendendo do ciclo dos ciclos de negócios. Por exemplo, a perda é maior quando os megraprojectos são mais lucrativos, pois transferem mais recursos para fora da economia. Além disso, os ganhos com as baixas tarifas sobre infraestruturas, terra e depósitos minerais são partilhados entre proprietários ou especuladores nacionais e estrangeiros. Se a estes montantes juntarmos as volumosas perdas com as parcerias público-privadas em torno de grandes investimentos (perdas de receita e despesa porque o estado garante as dívidas), não é preciso muita ciência nem grande sofisticação para se concluir que (i) a dívida ia rapidamente entrar em fase crítica e (ii) estava sobretudo relacionada com a aposta concentrada do estado no complexo mineral-energético.
De acordo com todas as melhores previsões, o grosso do complexo mineral-energético não iria começar a gerar receita tributável antes de 2020. Estas previsões foram, sendo ajustadas ano a ano, apontando para 2022-2025. Se voltarmos atrás neste texto, vamos ver que a velocidade estonteante do crescimento do rácio dívida pública/PIB fazia prever que em 2011 o rácio ficaria crítico e em 2014 ficaria insustentável, muitos anos antes de o grosso das receitas dos projectos que criaram esta dívida começassem a fluir. Por outras palavras, a economia ia "explodir" e "implodir" antes de o gás e o carvão terem alguam hipótese de a salvarem desse destino.
Além disso, há outras duas questões a considerar: (a) estas resceitas dos hidrocarbonetos já estão comprometidas, tanto com as taxas de recuperação dos lucros acordadas com os investidores, como com o serviço da dívida já existente. (b) neste quadro, pouco ou nada sobra para usar os hidrocarbonetos para o desnevolvimennto mais amplo e inclusivo do país. Vão pagar-se a si próprios e vão pagar os lucros do capital.
Nesta fase do texto, podemos concluir o seguinte: (i) a dívida ia rapidamente entrar em fase crítica; (ii) estava sobretudo relacionada com a aposta concentrada do estado no complexo mineral-energético e (iii) o complexo mineral-energético não ia ser capaz de gerar o excedente para pagar a dívida antes de a economia entrar em crise de dívida.
Vamos introduzir outro elemento. A estrutura da dívida foi forçada a mudar pois o montante de recursos necessários só podia ser obtido no mercado de capitais. Em 2005, a dívida comercial era cerca de 7% da dívida total, e era apenas interna; em 2015, a dívida comercial já era 50% da dívida total e era dominantemente externa. A enorme aceleração do endividamento público entre 2010 e 2014 foi quase exclusivamente devido a dívida comercial externa. A dívida comercial externa é mais cara (taxas de juros mais altas) e mais difícil de renegociar e reestruturar que a dívida concessional, e tem impacto nas reservas externas (limitando os graus de liberdade para utilização destas reservas) e na credibilidade financeira externa da economia (fazendo subir o custo do acesso a capitais e do serviço da dívida). Logo, à medida que a dívida se torna mais comercial, os mecanismos e estratégias de gestão e programação finaneira têm que sofisticar-se pois a dívida adquire dinâmicas de crescimento muito diferentes da dívida concessional.
Correndo o risco de estarmos a tornarmo-nos ainda mais enfadonhos do que o habitual, nesta fase do texto podemos concluir o seguinte: (i) a dívida ia rapidamente entrar em fase crítica; (ii) estava sobretudo relacionada com a aposta concentrada do estado no complexo mineral-energético, (iii) o complexo mineral-energético não ia ser capaz de gerar o excedente para pagar a dívida antes de a economia entrar em crise de dívida, (iv) estando a tonar-se aceleradamente mais comercial, estava a tornar-se mais cara, mais difícil de renegociar; e (v) tendo a componente comercial ficado dominantemente externa, a dinâmica de endividamento reduziu as reservas internacionais e a capacidade de as mobilizar para outros fins, e tornou o capital externo e o serviço da dívida mais caros, alimentando as dinâmicas de autoreprodução da dívida.
Já em 2013, o governo havia começado a contrair empréstimos comerciais internos para pagar dívida (relatórios anuais da dívida e relatórios anuais do Banco de Moçambique). Qual era o signficado disto? Primeiro, a armadilha da dívida estava a fechar-se. Segundo, dada a relativa pequena dimensão do sistema financeiro doméstico, o peso da dívida interna exacerbou as tendências especulativas deste sistema: 80% das transacções na bolsa de valores eram títulos de dívida pública, acima de 25% das operações activas dos bancos comerciais eram títulos da dívida pública (sendo este o principal item nessas operações), os bancos comerciais tornaram-se insensíveis às taxas de referência do banco central quando estas baixam, e os juros comerciais mantiveram-se elevados. Em vez de mobilizar recursos financeiros para o investimento produtivo directo, o sistema fianceiro doméstico investiu na dívida, na bolsa especulativa imobiliária e nos megaprojectos. Do ponto de vista de racionalidade capitalista, o sistema financeiro doméstico foi influenciado pelas dinâmicas de acumulação e contribuiu para as reforçar e consolidar.
O rápido crescimento do PIB (dinamizado pelo investimento nos megaprojectos), o grande investimento em hidrocarbonetos atraído pela presença dos recursos, facilidade de acesso e oportunidades especulativas, e as fragilidades do sistema financeiro internacional combinaram-se para gerar uma bolha imobiliária em Moçambique, tornando a especulação de terras e da construção um negócio favorito para o capital nacional, para especuladores e lavadores de dinheiro internacionais, e para a banca. A especulação imobiliária tornou-se no "hidrocarboneto" das zonas urbanas.
O afunilamento da economia nacional, que está sendo discutido há quase duas décadas, foi agravado. Por afunilamento pretendemos dizer três coisas: redução da variedade das actividades económicas, simplificação das actividades económicas e sua redução às suas fases mais primárias, e redução da articulação intra e inter sectorial dentro da economia. Exemplos de afunilamento: 90% do investimento privado, dois terços da taxa de crescimento do PIB e 95% das exportações de Moçambique são associados com o complexo mineral-energético e outras mercadorias primárias. No que diz respeito a exportações, por exemplo, 9 produtos primários concentram 90% de todo o valor exportado [alumínio (39%), carvão (13%), areias pesadas e energia eléctrica (7% cada), gás natural (6%), tabaco e banana (5% cada), açúcar e madeira (4% cada)]. Na última década e meia, apenas 10% de todo o investimento privado foi aplicado na agricultura, e apenas 1% foi para produtos alimentares destinados ao mercado doméstic. [Como não podia deixar de ser, estes dados estão todos disponíveis em fontes estatísticas oficiais, bastando que os interessados as procurem e façam os cálculos].
Bom, quais são os problemas com o afunilamento da economia? Primeiro, é a restrição das oportunidades de emprego, produção, comércio e interligação. Segundo, é a dependência estrutural e dinâmica de importações. Terceiro, é a vulnerabilidade com que o afunilamento expõe a economia nacional à volatilidade dos mercados financeiros e de mercadorias internacionais. Quarto, é a instabilidade fiscal e macroeocnómica que esta vulnerabilidade cria. Quinto, é a redução da capacidade da economia de resolver os problemas sociais. Sexto, no contexto específico da economia moçambicana, é a incapacidade da economia de alimentar a força de trabalho e os processos internos de reprodução.
O afunilamento da base produtiva e comercial é acompanhado, naturalmente, por deficiências nas infraestruturas, ligações, variedade e quantidade de qualificações, indisponibildiade dos serviços financeiros e, quando a economia não consegue disponibilizar bens e serviços básicos de consumo a baixo custo, encarecimento relativo da força de trabalho. Em resumo, o afunilamento torna a economia não competitiva e não apetecível em todas as áreas menos aquelas áreas primárias em que se concentra.
Uma economia afunilada e com tendência a afunilar mais é mais difícil de diversificar precisamente porque acaba por se especilizar num leque muito reduzido de actividades e capacidades primárias e perde ou não adquire tudo o resto. Para resolver os problemas que o afunilamento cria é preciso enfrentar desafios de diversificação, aprofundamento e articulação da base produtiva. No entanto, neste momento do texto estamos em condições de saber que: (a) o investimento privado foi dominantemente para as áreas primárias e extractivas da economia; (b) que a capacidade financeira do estado foi esgotada nessas mesmas áreas; (c) que o sistema financeiro doméstico se mobilizou para outras actividades (títulos de dívida pública, bolha imobiliária, e megaprojectos). A título de exemplo, o valor gasto pela banca comercial interna na especulação com titulos de dívida iguala a soma do valor total do financiamento bancário comercial no turismo, agricultura, construção, transportes e comunicações e indústria (dados disponíveis pelos próprios bancos comerciais e nos relatórios do banco de Moçambique). (d) que os negócios da dívida extraíram liquidez da economia, transferiram-na para actividades não produtivas e tornaram as taxas de juro proibitivas para a diversificação da base produtiva. (e) que as infraestruturas construídas, para os mega projectos, não podem servir eficazmente a diversificação da base produtiva e comercial.
Para diversificar a base produtiva e gerar empregos competitivos é preciso reduzir os custos de reprodução da força de trabalho disponilibilizando bens e serviços básicos a baixo custo, e aumentar a produtividade na eocnomia como um todo, o que não pode acontecer com o afunilamento da base produtiva. Os dados económicos gerais e os dos inquéritos agrícolas e dos censos populacionais apontam para uma redução da produtividade do trabalho e da rentabilidade das culturas agrícolas para o mercado doméstico; para o crescimento rápido da casualização do emprego nas zonas rurais, com consequente redução da produtividade do trabalho nas plantações; e para uma inflação dos bens alimentares largamente superior à inflação média, o que afecta os custos da força de trabalho, a qualidade de vida e a estabildidade social, e as oportunidades de gerar empregos e diversificar a base produtiva.
Nesta altura do texto, para quem o tenha lido com atenção até aqui, fica claro que o rápido endividamento deteriorou as reservas externas, limitando a capacidade do estado de as usar para outros fins. Desde 2008, as autoridades monetárias vinham financiando a estabilidade da moeda, mantendo-a excessivamente valorizada para reduzir o impacto da inflação importada no custo de vida. A deterioração das reservas externas e da capacidade de as usar para revalorizar a moeda provocou a magnitude extrema da desvalorização da moeda, aumentando o custo de vida e as dificuldades de diversificar a economia.
Toda esta informação estava evidente, disponível, nos relatórios financeiros do governo, das empresas, dos bancos, e das organizações financeiras internacionais. Organizações multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial, começaram a ficar preocupados com o problema a partir de 2011-2012. Instituições de pesquisa, como o IESE, vinham demonstrando estes problemas desde o incício do novo milénio. Não era difícil prever estes problemas, como foi suncintamente demonstrado no texto acima. O que era necessário fazer era recolher a informação, estudar o funcionamento da economia, ver como as pontas se uniam e onde se uniam, e eliminar a cegueira que advém seja de interesses no sistema social de acumulação capitalista, seja de compromissos políticos, ou o que quer que seja. Não é preciso ser feiticeiro - charlatão ou não - nem se tratava de profetizar o futuro (de desgraça ou não). É possível olhar para as tendências da economia, em detalhe, e nas suas ligações num todo, e prever os riscos, os problemas, os desafios.
É claro que estes problemas aconteceram num contexto de crise internacional. Alguns vão dizer que todas as economias entraram em crise - é verdade, mas isso não justifica a acção que torna a nossa economia ainda mais vulnerável a essa crise. Alguns vão dizer que muitas moedas desvalorizaram em relação ao US$ - é verdade, mas a nossa moeda desvalorizou em relação a todas as outras moedas, e desvalorizou mais do qualquer outra moeda no mesmo período. Os mecanismos descritos estavam em acção, para além dos ajustes que aconteceram na economia mundial. É claro que se contava com o apoio dos "doadores" ou "parceiros" internacionais, tradicionais e não tardicionais, e que esse apoio não se materializou na magnitiude esperada, em grande medida por causa da crise internacional e da violação das mais elementares regras de gestão responsável das finanças públicas, o que limitou as opções de mobilização de capitais aos mercados especulativos da finança internacional.
Mas também é verdade que poderíamos ter revisto e alterado as opções de investimento. Gastámos mais de US$ dois biliões em projectos e empresas que ainda ninguém conseguiu explicar; gastámos mais de US$ meio bilião num aeroporto que não tem movimento e dá prejuízo; estamos a gastar US$ um bilião numa ponte e estradas para alto turismo com potencial impacto muito limitado na melhoria do nível de vida e na diversificação e articulação das actividades económicas; US$ 1 bilião foram usados para comprar as acções da HCB; várias centenas de milhões de US$ são prejuízos de grandes PPPs e perdas fiscais com incentivos redundantes. Em face da crise, optámos pelos mercados financeiros especulativos com garantias do governo em vez de rever e reestruturar as prioridades e as opções. A crise mundial não foi criada por Moçambique, mas a extrema vulnerabilidade com que a ela fomos expostos foi nossa criação.
Portanto, em resumo, as previsões foram fundadas em anos de estudo dos dados e dos mecanismos de funcionamento da economia e das suas vulnerabilidades, para identificar problemas, desafios e outras opções. Não há nada de extraordinário aqui, a não ser que entre as autoridades apenas duas, sem poder de decisão, prestaram atenção - a Autoridade Tributária (que tentou o que pode para rever os contratos fiscais com os megaprojectos) e o Banco de Moçambique (que alertou para a dívida pública e privada, para o perigo das garantias públicas à dívida privada e para a necessidade de renegociar os contratos com os megaprojectos no que diz respeito às facilidades fiscais e de repatriamento de capitais).
O único factor extraordinário nisto foi a rejeição de factos com "factos alternativos" - o último e o actual Ministro das Finanças insistiram até ao fim que a dívida era sustentável, mesmo quando todas as contas mostravam que não era; o actual disse que não havia empréstimos escondidos mas era tudo um erro do FMI; o anterior PR, o seu MF e o seu MPD insistiram que não havia nada a renegociar com mega projectos, contra toda a evidência; depois de negarem que Moçambique seria afectado pela crise internacional, rejeitando, por isso, a necessidade de precaução, quando a crise explodiu disseram que era culpa da crise internacional; não aprenderam nem da Europa, nem de outros países africanos, nem da nossa própria história (por exemplo, da crise gerada no período do PPI).
Porquê? Há, certamente, factores de economia política, associados com o sistema social de acumulação e as suas motivações de reprodução. Também existem inexperiência e incompetência, cegueira política, e tal. Há, certamente, opiniões e abordagens económicas diferentes. Mas como é que isto permite negar factos como, por exemplo, em quanto tempo vai a dívida ficar insustenável se continuar a crescer 4 vezes mais depressa do que o PIB? Quais são as implicações socioeconómicas de dois terços da taxa crescimento do PIB e 90% das exportações provirem de menos de duas dezenas de empresas empregando menos de cinquenta mil trabalhadores e produzindo menos de uma dezena de produtos primários, de 90% do investimento privado e quase todo o esforço fiscal do estado estarem concentrado nessas empresas?
2) A utilidade da previsão
Em economia, a previsão só tem uma utilidade - mostrar os desafios, as opções e as suas possíveis implicações. A análise detalhada da economia de Moçambique - dos dados, das tendências, das ligações entre as tendências e processos em curso e do modo de funcionamento da economia - permitia colocar questões práticas sobre os problemas de reprodução e de acumulação e da sua sustentabilidade.
Claro que o debate sobre opções não decorre apenas automaticamente da demonstração de problemas - as opções também são influenciadas por ideologia, interesses e luta de classes, o que de facto é possivel fazer na prática, a inércia das instituições, etc., etc.
Mas não havia dúvidas nenhumas que estávamos a caminhar para uma crise profunda, extensa e com grande impacto negativo na qualidade de vida da maioria dos cidadãos, embora os processos envolvidos nessa crise estivessem a reestruturar a distribuição do rendimento a favor da sua concentração e centralização.
Quando em 2013 e 2014 tentámos introduzir estes assuntos nos debates das campanhas eleitorais, fomos recebidos com uma versão alternativa do mundo - a crise de dívida só preocupa intelectuais de capelinha (não sei o que isto significa) e não o povo! Espera lá, mas a crise económica não se reflecte nas condições de vida e de trabalho das pessoas? Por que é que não quisemos discutir estes assuntos a tempo?
Seja qual for a razão, nenhum economista profissional e sério fica satisfeito se as suas previsões negativas se concretizam. Não é verdade, ao contrário do que dizem, sugerem ou insuam alguns, incluindo alguns com responsabildiade pessoal directa nas decisões na época, que eu ou qualquer um dos meus colegas do IESE esteja muito satisfeito por ter "acertado" na previsão. Pelo contrário, foi profundamente deprimente ver os piores cenários previstos acontecerem sem que nada fosse feito para os impedir, como se de facto quiséssemos testar a credibilidade de tais cenários na prática. Testar com a vida e o bem-estar das pessoas.
3) Por que é que continuamos a falar destas previsões?
Os diversionistas dizem que continuamos a falar destas "previsões" e das suas consequências por gabarolice. Pouco é mais falso que isso.
Como tentei explicar ao longo do texto, o processo de análise é gradual, meticuloso, evolutivo, aumentando de complexidade. O que mais importa na análise é o processo - que perguntas, que dados, que modelos, como se ligam, que novas perguntas, como as pontas se vão unindo, etc. O resultado depende dos dados. O debate de opções é também ideológico e de classe. Mas as lições do processo permanecem.
Ao longo dos últimos meses, a par de muita informação que revela a magnitude e contornos da crise, tem havido uma acção sistemática para "lavar" e "normalizar" o que aconteceu e desacreditar todo o debate e toda a crítica que não se conformem com essa accção de lavagem e normalização. O recurso contínuo à deturpação do debate e da crítica tornou-nos pioneiros na táctica dos factos alternativos. Alguém que há 3 anos defendia a EMATUM como estratégia de "nacionalização" da riqueza pesqueira, hoje diz que nunca o foi; quem nessa altura atacou qualquer crítica ao endividamento meteório e à EMATUM como atentado à soberania nacional ao serviço da mão externa, hoje diz que se pudesse faria de tudo de novo, e tem um coro de fãs qeu acham isso honroso porque coerente (bom, Salazar foi coerente durante 50 anos, Franco durante 40, Stalin durante 30, Hitler e Mussolini durantee uma década, Zedu e Mugabe há três décadas de meia, mas essa "coerência" deles não é muito aplaudida. Desculpem-me os meus amigos de leão verde e branco ao peito, mas até podemos dizer que o SCP é coerente, pois coerentemente falha em ser campeão há 15 anos ou mais). Perante uma campanha de desinformação, lavagem e normalização, é importante continuar a mostrar os factos, os processos, as fraquezas, os desafios, as opções.
Neste momento, as autoridades monetárias moçambicanas estão a seguir um programa monetarista de ajuste económico que deixa de lado as implicações que possa ter para as estruturas e base produtiva e distribuição do rendimento. É importante relembrar que há análises que discordam deste tipo de abordagem e mostram que o retorno ao neoliberalismo monetarista não resolve os desafios e fecha mais opções do que as que abre.
Algum do debate público tem um enfoque analítico e conclusões de política bastante problemáticos - por exemplo, quando tudo é explicado em termos de corrupção ou da frelimo ou das mordomias dos dirigentes, ou as conclusões apontam para cortes não selectivos e brutais na despesa pública.
Neste contexto, é importante lembrar o debate, as análises, os desafios e opções que foram sendo apontados, e o impacto que também resultou da incapacidade de ouvir, pensar e prestar alguma atenção. É importante voltar atrás e rever os processos, para menter o debate, relembrar a experiência e tentar aprender dela.
Não é a primeira vez que se tenta deturpar o problema e destruir a credibilidade de qualquer análise crítica pondo em causa as motivações da análise e da chamada de atenção sobre a análise.
Ora, primeiro, ninguém se está a gabar de ter acertado. Como disse antes, se algum sentimento criou, o ter "acertado" criou depressão e desânimo e nenhuma satisfação. Segundo, mesmo que o estivesse fazendo, esse seria um problema de carácter pessoal do tal gabarolas. O problema social central nunca seria esse, mas sim a crise nacional, o que aprendemos com ela e como podemos fazer melhor no futuro. Isto é o que interessa, estudar, perceber, aprender e fazer melhor no futuro.
4) Sobre charlatanices e coerência - alguns exemplos
Dívida pública é um não assunto e um problema de intelectuais de capelinha. Dívida pública é um problema, mas faríamos tudo idêntico dadas as mesmas circunstâncias - atenção, não foi explicitado se nas tais circunstâncias se incluiria saber o que sabemos hoje sobre as consequências das acções.
Discutir as acções (endividamento ilícito) é antipatriótico pois estas visava a defesa da soberania nacional. A violação deliberada da constituição, neste caso é justificável, e as suas consequências são pequenos erros de governação (nota, "pequenos" "erros" que criaram a segunda maior crise de dívida da história registada de Moçambique). A culpa é da Renamo.
Quando tentamos internalizar a pesca do atum e proteger o recurso, os incautos, ao serviço da mão externa, criticam a EMATUM. A EMATUM nunca foi a estratégia de internalização da pesca de atum. 
Não entendo nada do assunto mas repudio o debate. 
A EMATUM foi aprovada pelo parlamento. Entenderam-me mal.
Ser altamente endividado aumenta a nossa visibilidade internacional. A dívida não é sustentável e não podemos servi-la.
Taxas de juros muito altas foram proveitosas porque permitiram mobilizar US$ 300 milhões adicionais em relação aos US$ 550 milhões iniciais para a EMATUM. As taxas de juro e os prazos de pagamento são insustentáveis e temos de renegociar.
Dívidas secretas? É um erro de compreensão do FMI.
Devemos pensar em sair do FMI. A culpa é dos doadores e do FMI.
Qual é o mérito de ter previsto o óbvio? (questão/mistério: se era óbvio, por que não fizemos nada para evitar a concretização da tal previsão?)
5) Um repto final.
Alguns dos colegas do FB estão a especializar-se na crítica da ousadia da crítica e em desconsiderar todos os outros e todas as outras formas de fazer coisas. A moda agora é achar que os outros arrastam diplomas pela lama (é estranho que estes comentários venham de pessoas que há poucos anos até concordavam com as análises críticas mas agora se limitam a denegrir as pessoas que fizeram essas análises). Bom, cada um tem a sua maneira de ser e de pensar e tem direito a isso.
O meu repto seria o seguinte:
1) vamos disutir a análise e os factos. Deixemos de lado se o tal e o tal têm diploma, têm mania de ser feiticeiros, ou o que quer que seja. Deixemos os indivíduos fora da questão. Vamos discutir a análise e os dados sem mentir.
2) vamos apresentar as narrativas alternativas. Não basta acusar alguém de pensar que a sua é a única narrativa, nem basta sugerir que existam outras. Existem, certamente, pois se não existissem seria impossível perceber como é que a "única" narrativa foi tão desconsiderada ao nível do bloco do poder, embora fosse lógica, consistente com os factos e aceite academicamente. Portanto, é certo que existem outras narrativas com igual ou superior poder de explicação. Então vamos apresentá-las e discuti-las.
Assim, deixaríamos de perder tempo e de desperdiçar as nossas capacidades a desviar os assuntos. Vamos discutir a análise e não a pessoa que a fez; e vamos pôr na mesa as várias narrativas lógicas e completas que competem para melhor descrever, explicar e gerar lições da primeira grande crise estrutural do século XXI (serão também aceites, para debate, narrativas que digam que não há crise alguma e que estamos firmes ou bem, desde que a narrativa possa ser demonstrada logicamente e com evidência).

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