segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A dívida (oculta) ou o deserto (aberto)?


Marques Malua





I. Antes, éramos primitivos. Vivíamos da caça, da recolecção e duma agricultura rudimentar, em palhotas e cavernas. Bebíamos água dos rios, lagos e charcos não tratados juntamente com os nossos bois, cabritos e os outros animais da floresta. Usávamos lenha para produzir a energia necessária para cozinhar, aquecer os nossos corpos, iluminar-nos nas noites mais escuras e afinar os nossos tambores que, quando rufassem, todas palhotas da aldeia se desfaziam em frenéticos movimentos de contagiante euforia. Em fim, éramos mais ou menos felizes. Venerávamos, sem inibições, os nossos mortos e antepassados. Tínhamos árvores e pedras sagradas servindo de santuários. Tínhamos sonhos e esperanças.

II. Depois veio o colono. Forçou a sua estadia no nosso seio. Com falinhas mansas, primeiro e mais tarde, com chicote, espada e espingarda e, finalmente, com a bíblia. Falou-nos da civilização. Através de nós, construiu algumas casas de cimento e ferro, algumas estradas e alguns templos. Forçou-nos a trabalhar sem paga nas obras, nas machambas e nas minas. Arrebanhou-nos em currais apertados e vendeu-nos como bois a quem nos quis comprar. Exportou-nos como carne viva ou máquinas biológicas para grandes latifúndios além Atlântico. Roubou e aproveitou-se de tudo de bom que nós tínhamos e, em troca, deu-nos miséria total e completa. Em algum momento, revoltamo-nos. Lutamos. Reconquistamos uma partinha pequenininha da dignidade. O colono continuou com outras tácticas subtis. Mas nacionalizamos as poucas casas de cimento e ferro e distribuímos para alguns de nós. Estamos a tentar manter e ampliar um pouco, algumas estradas. Os templos viraram outro negócio.

III. Agora, veio o chinês. Com visto de entrada e autorização de residência e de trabalho. Tudo legal. Veio também construir algumas coisas – casas, pontes, estradas e outras. Em troca, não quer deixar nem uma única árvore de pé ao longo de todo o território nacional. Sejam árvores ou florestas sagradas ou santuários. Tudo tem que ser abatido, serrado em touros, empacotado em contentores e enviado para a metrópole. Os elefantes e os rinocerontes e outros paquidermes não ficam por fora. Chacinam-se manadas inteiras só para tirar uma pontinha de corno ou dois dentes de marfim. As pedras são reviradas uma a uma. Preciosa, semi-preciosa. Multi ou hiper preciosa. Sagrada ou não. Tudo serve para pilhar. No mar, no solo, no subsolo moçambicanos, esgravata-se e tira-se tudo o que se pode. É uma rapina total. À luz do dia e, de noite, aos holofotes e com carimbo oficial. A pequena resistência dos nossos Farahanes e Ngungunhanes de hoje, não foi vencida com polvora ou aço malhado. Foi-o com percentagens e alguns envelopes especiais. E o discurso oficial diz que, mesmo assim, estamos absolutamente pobres e devemos lutar contra essa pobreza absoluta de todas as maneiras e todos os dias. Em algum momento, revoltar-nos-emos outra vez. Só que não sei o que nacionalizaremos: a dívida ou o deserto?

Sem comentários: