segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Família condenada por escravizar angolano durante 26 anos


 EM ACTUALIZAÇÃO

Casal do Alentejo condenado a sete anos de prisão efectiva e os filhos a seis anos. Vítima deste caso revelado pelo PÚBLICO em 2013 morreu antes de ser proferida acusação.


Um angolano trabalhou para a família em Évora sem direito a descanso nem salário. Em 2013 deu uma entrevista ao PÚBLICO
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Um angolano trabalhou para a família em Évora sem direito a descanso nem salário. Em 2013 deu uma entrevista ao PÚBLICO VERA MOUTINHO

Uma família, composta por um casal e os dois filhos, foi condenada por escravizar um homem durante 26 anos numa quinta no Alentejo. O casal foi condenado a sete anos e os filhos a seis. Todas as penas são de prisão efectiva. A sentença foi lida nesta segunda-feira no Tribunal de Évora, depois de o julgamento ter decorrido à porta fechada.


A vítima, um angolano que morreu a 3 de Novembro de 2015, antes de o Ministério Público proferir acusação, ficou às mãos de um homem que hoje tem 69 anos e de uma mulher com 58 anos e dos seus dois filhos, acusados de não lhe pagarem qualquer remuneração pelo trabalho que fazia, com o gado e na agricultura, numa quinta em Évora, e de lhe retirarem os documentos de identificação. 


O tribunal deu como provado que "Francisco", nome fictício pelo qual o PÚBLICO o identificou quando revelou este caso, em Dezembro de 2013, executava várias tarefas para os arguidos, trabalhando de “domingo a domingo”, sem que tivesse qualquer dia de descanso.
“Finalmente faz-se justiça. Era uma coisa que ele queria”, comentou ao PÚBLICO Marco Carvalho, da equipa da Saúde em Português e uma das pessoas que privou com “Francisco”. Esta Organização Não-Governamental gere um Centro de Acolhimento e Protecção a vítimas de tráfico de seres humanos do sexo masculino e é financiada pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

Arguidos vão recorrer

Já o advogado da família, Sidónio Santos, disse ao PÚBLICO que depois de analisar o acórdão irá interpor recurso já que os seus clientes contestam a condenação. “Era um indivíduo acolhido por esta família, que nunca se queixou. A quinta nem tinha um portão, ele era livre de sair – e saía com frequência”, contestou o advogado.
Segundo o acórdão ao qual o PÚBLICO teve acesso, em 1986 os arguidos pediram a “Francisco” os elementos de identificação e nunca mais os devolveram. A retenção dos documentos de identificação pelos patrões é um dos principais sinais do crime de escravatura que todos os peritos nesta área apontam.
O tribunal deu também como provado que os arguidos, que foram absolvidos do crime de tráfico de seres humanos, sabiam que "constrangiam o ofendido na sua liberdade e dignidade", com o objectivo de obter vantagens económicas do seu trabalho, e que o reduziam "à condição de escravo". De acordo com o tribunal, “Francisco” sofria "de atraso mental leve". Os arguidos trataram-no de forma “degradante e desumana”, “considerando que tal tratamento era o adequado ao seu défice cognitivo”, explorando-o, conscientes de que ele “se sentia e estava limitado na sua liberdade, incapaz de fugir da quinta dadas as circunstâncias em que vivia”.
Sobre os filhos, condenados ainda por detenção de arma proibida (um revolver e uma espingarda) a sentença refere que mesmo depois de atingirem a maioridade e terem tomado consciência das condições em que vivia "Francisco", continuaram a ter a mesma atitude para com a vítima, compactuando com os pais. A sentença refere que "Francisco" várias vezes pediu a remuneração pelo seu trabalho aos arguidos, mas que estes sempre a negaram. 

Reduzido a uma “coisa”

O tribunal disse “ainda que o reduziram "a 'coisa' sua e a um estado de sujeição total, tratando-o como [um] ser destituído de dignidade humana".
“Em 26 anos nunca vi 5 tostões. Zero”, disse “Francisco” ao PÚBLICO em entrevista em Dezembro de 2013, três meses depois de ter escapado da quinta em Évora, ajudado por um amigo e pela GNR. Tinha um tumor nos pulmões, detectado logo quando foi acolhido. Até então não tinha recebido qualquer tratamento médico para a doença.
Quando o PÚBLICO o entrevistou, estava aos cuidados da associação Saúde em Português. Foi com eles que ficou até ao final da vida. Os arguidos ficaram por isso condenados ao pagamento de uma indemnização e terão que pagar as despesas relativas ao acolhimento e aos cuidados de saúde da vítima durante 20 meses (em quantia que se vier a liquidar em sede de execução de sentença).
No acórdão, os juízes repreenderam ainda a conduta dos arguidos ao longo do julgamento por não aceitarem as suas responsabilidades, mentindo e desculpando-se com o défice cognitivo “da vítima dando a ideia de que alguém como ele tinha uma dignidade inferior aos demais”.
Para os juízes, isso indica que “eles continuam a demonstrar o mesmo caracter que os levou à prática dos factos, deixando evidente a forte possibilidade de, reunidas as circunstâncias, continuarem a agir nos mesmos moldes”.
As condenações por crime de escravatura não são comuns. Segundo os dados do Ministério da Justiça há apenas registo de 15 condenações (relativas a processos nos tribunais de primeira instância e são uma contabilização que tem em conta o crime mais grave pelo qual foram condenados; exclui os processos transitados, remetidos a outra entidade, apensados e incorporados ou integrados).
Tudo aponta para que estes dados sejam inferiores ao número real, já que em 2014, por exemplo, o ministério registou três condenações, mas este foi o ano em que no maior processo de escravatura em Portugal, julgado no Tribunal de São João Novo, no Porto, 13 dos 30 arguidos foram condenados.

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