sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

As clarificações das ciências sociais


Uma coisa que compromete a “cientificidade” das ciências sociais é a sua tendência de usar conceitos sem muita preocupação com a sua clarificação. Infelizmente, conceitos significam coisas diferentes para diferentes pessoas. Não devia ser assim, mas é assim. Num outro “post” (ontem) eu falava da noção de “paz”. O que dizia era que ela não significa apenas a ausência de guerra. Pode significar muitas outras coisas, incluíndo a extensão infinita de tréguas. Nessas circunstâncias, falar de “paz” e partir do princípio de que os nossos interlocutores têm o mesmo entendimento do termo, pode ser complicado e arriscado ao mesmo tempo.
O problema torna-se ainda mais bicudo quando tomamos em consideração o facto de que as ciências sociais muitas vezes lidam com questões de âmbito ético. É difícil abordar um assunto dessa natureza com alguma utilidade sem nenhuma preocupação com a clarificação dos conceitos que nos ajudam a descrever o problema. Questões éticas muitas vezes resolvem-se na base da clarificação de conceitos. Paz, para ficar por este exemplo, só é paz quando é “paz justa” para algumas pessoas. Mas o que é “justo” é função de muitas coisas que precisam de ser clarificadas.
Dei em mim a pensar nisto a propósito duma noção que nos últimos tempos, e pelas razões mais sérias possíveis, tomou (não só) a esfera pública de assalto. Refiro-me à noção de “violência doméstica”, um termo cuja frequência de uso até dá a impressão de ter havido um aumento dramático do fenómeno. Na verdade, o que aconteceu é que provavelmente existe um outro tipo de consciência em relação ao lugar da mulher na sociedade e à qualidade da relação conjugal ou entre sexos opostos. Esta nova consciência, que felizmente cada vez mais terreno ganha, tornou muita gente legitimamente intolerante em relação a certos comportamentos que tinham sido “normalizados” na nossa sociedade. Com o recurso às redes sociais, a indignação que acompanha essa intolerância faz com que notícias sobre actos suscpetíveis de serem descritos ao abrigo dessa noção sejam logo veiculadas e discutidas com paixão.
O problema com este tipo de noções é que partilham aquela característica que alguma gíria da indústria do desenvolvimento tem de pensar por nós – uma doença de que padece também o dogmatismo ideológico nas ciências sociais e alguma militância social. No caso desta noção o problema não é só de pensar por nós, mas também de produzir o fenómeno através do seu emprego indiscriminado. Seria completamente imbecil questionar a existência da violência doméstica, mas quando um termo é usado para descrever toda a violência que acontece no contexto doméstico como “violência doméstica” os ganhos que isso possa ter para a consciencilização pública podem comprometer (para além de serem possivelmente anulados) não só a nossa compreensão do problema como também a viabilidade de possíveis soluções. Intuitivamente pode não fazer sentido supor que nem toda a violência que ocorre em contexto doméstico seja “violência doméstica” ou, já que a morfologia é quase a mesma, que violência contra mulher seja “violência de gênero”. Aqui surge uma responsabilidade acrescida dos mais cuidadosos na fala, e na reflexão, de insistirem na clarificação do conceito para que aquilo que for descrito como “violência doméstica” corresponda mesmo a isso.
Não é tarefa fácil, sobretudo porque existe o perigo de qualquer preocupação com a clarificação ser vista como uma forma de negação do fenómeno. Só que esse é um risco que vale a pena correr pela sanidade do debate. “Violência doméstica”, em minha opinião, tem que ser articulada como conceito com uma perspectiva crítica sobre como a sociedade se estrutura na base da reprodução de formas patriarcais de dominação. Dessa maneira, será possível distinguir nas manifestações de violência a violência que ocorre por conta dessa lógica, mas também a outra violência que ocorre na nossa terra por conta de outros factores que podem não estar ligados à reprodução dessa lógica patriarcal.
Circulou, por exemplo, no Facebook um “clip” dum indivíduo que agrediu uma jovem com quem vinha numa viatura e deixou-a estatelada no passeio. É claro que a estrutura patriarcal da nossa sociedade faz parte do contexto causal. Esse energúmeno foi capaz de agir dessa maneira porque de certeza foi socializado para pensar que mulher é para ser agredida e também porque muito provavelmente pensou que todo o circundante que o visse acharia legítimo que marido/namorado ou homem “disciplinasse” uma mulher. Mas pode também ser que estejamos perante um indivíduo que faria o mesmo com qualquer outra pessoa (aliás, a situação de não-paz que o país vive é uma espécie de tipo-ideal dessa agressividade telúrica assente na ideia de que o mais forte tem todo o direito de fazer uso dessa força para se impor). Se essa possibilidade for legítima, então há uma obrigação analítica de clarificarmos os conceitos através dos quais nos constituímos como comunidade moral.
A sanidade do debate público agradece. E pode ajudar a educar o Djuwawane...
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