quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

A síndroma da miséria crónica e consentida QUARTA, 04 JANEIRO 2017 09:30 HÉLDER MUTEIA


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Descaracterização da economia e dos mercados são efeitos da miséria crónica
A miséria existe nas mais variadas formas. Todas elas degradantes e dilaceradoras da dignidade humana. Muitas vezes, associada à pobreza, persiste por décadas e gerações, através de um ciclo vicioso de empobrecimento, perda de valores e negação de direitos fundamentais do Homem, incluindo o Direito Humano à Alimentação.
Esta condição de vulnerabilidade crónica suscita, naturalmente, reacções de variados actores locais, nacionais e internacionais com responsabilidade de acção na matéria: autoridades locais, instituições governamentais e não-governamentais e entidades multinacionais.
Gera-se assim uma plataforma multifuncional e multissectorial de apoio e solidariedade, de crucial importância para atenuar o sofrimento das pessoas.
Importa, entretanto, ter presente alguns prós e contras de uma abordagem puramente assistencialista. Por detrás dos esforços humanitários pode surgir uma faceta aberrante, de manipulação e instrumentalização da pobreza alheia com o fim de garantir fluxos de bens e capitais em benefício próprio.
Felizmente estes casos não representam a maioria, mas nem por isso o tema deixa de merecer uma reflexão profunda e um maior escrutínio, para que a miséria e pobreza não sejam, paradoxalmente, convertidos em negócio.
Causas e motores da miséria
A miséria pode resultar de uma complexa gama de factores económicos, sociais, ambientais, conjunturais e políticos, entre os quais destacam-se as guerras, os conflitos e os desastres naturais.
Estes factores podem actuar isoladamente ou combinados, gerando uma cascata de efeitos secundários: pobreza absoluta, malnutrição, elevada morbilidade e mortalidade, descaracterização do tecido social, falhas económicas, elevados índices de desemprego, escassez de água potável, etc.
Na ausência de uma abordagem sistemática para controlar ou eliminar os factores primários e secundários, eles tendem a cristalizar-se e associar-se num ciclo de retroalimentação contínua.
A insistência na administração de “paliativos” caracterizada pela acção filantrópica pontual para atenuar as crises imediatas, sem uma perspectiva de médio e longo prazos, acaba abrindo janelas para a exploração da miséria alheia, com recurso a uma retórica oportunista e assistencialista.
Neste caso, o assistencialismo, que é por definição “a acção de pessoas, organizações governamentais e entidades sociais junto às camadas sociais mais desfavorecidas, marginalizadas e carentes” poderá revelar-se fútil, caso não seja conciliada com uma acção de longo prazo e que vise a prossecução de direitos fundamentais e a integração social e económica.
Crise de valores e princípios
A miséria tem um efeito individual sobre a auto-estima e um efeito colectivo sobre os valores morais e culturais. Seguem-se a auto-exclusão, o desespero, e a predisposição para a humilhação e a manipulação.
Com a perda destes elementos essenciais da dignidade, vivência e convivência humana, cessa a busca pelo rigor, educação, primor e excelência e reduzem os estímulos para o trabalho árduo como meio de afirmação, integração e complementaridade.
Este quadro pode permitir uma ardilosa retórica assistencialista que a todos contamina, incluindo as próprias vítimas, com argumentos sobre a inevitabilidade e fatalidade do seu destino. A miséria passa a ser absurdamente sacralizada. As estatísticas são manipuladas e instrumentalizadas. Os casos mais degradantes são intencionalmente mediatizados para induzir a comoção colectiva.
Ao mesmo tempo, a criatividade constructiva é manietada. Alguns princípios são invertidos ou escamoteados: o sucesso deixa de ser um resultado do trabalho árduo e dedicação, passando a estar associada à capacidade de comover e mobilizar a solidariedade e caridade.
Nasce assim aquilo que designo de “síndroma da miséria crónica consentida”, mais conhecida em Moçambique como a síndroma do “estou a pedir”.
Efeitos na economia e nos mercados
Um dos efeitos da miséria crónica é a descaracterização da economia e dos mercados. Na ausência de capacidade produtiva, há um natural e necessário fluxo de ajuda humanitária que, mantido por muito tempo, pode retardar o restabelecimento dos mercados.
Os actores económicos podem ser desencorajados a investir pelas incertezas geradas pelas doações e pela volatilidade do poder de compra. A volatilidade dos mercados é agravada pelas ondas de consultoria pagas a preços elevados. Esta sazonalidade e má distribuição no seio das comunidades geram incertezas na procura e na oferta.
Nos casos de prevalência de conflitos armados pode surgir uma economia de guerra alimentada pelo fluxo de doações.
Gestação dos barões da miséria
O conceito pode parecer chocante e paradoxal, mas traduz uma realidade igualmente chocante de certos grupos ou entidades que se aproveitam da miséria alheia para obterem ganhos avultados e reconhecimento indevido.
Esses grupos podem ser armados, organismos públicos corruptos ou organismos não-governamentais de conduta duvidosa.
O conceito não deve ser confundido com a existência de organismos multinacionais, governamentais e não-governamentais genuínos e bem-intencionados. Estes existem e são movidos pelos sentimentos nobres de solidariedade entre pessoas e povos. O papel destas organizações de solidariedade é tão importante que vale a pena abrir um parênteses para esclarecer a diferença. Seria uma injustiça e um mau serviço público não fazê-lo.
Alguns destes esforços são coordenados por organismos das Nações Unidas, mas inclui uma longa lista de organismos internacionais governamentais e não-governamentais (USAID, DFID, DANIDA, NORAD, Cooperação Italiana, ASDI, Caritas, Oxfam, Médicos sem Fronteiras, Save the Children, Care International, Action Aid, Cruz Vermelha, etc), e outros de carácter mais local.
Na classe dos “barões da miséria” cabem aqueles que não são movidos pelo interesse genuíno de ajudar, mas sim de se aproveitar da miséria alheia para se apropriarem de recursos e alcançarem indevidamente posições de influência e prestígio.
Se o regime institucional não estiver munido de mecanismos preventivos adequados (para uma abordagem social, humanitária e solidária, dentro dos limites da dignidade), estas aberrações poderão ocorrer com frequência.
Captura de lideranças e processos decisorios
Nas situações mais graves, as malhas do processo de alienação podem capturar as lideranças sociais e políticas, graças a uma retórica intencionalmente articulada para manipular a opinião pública e os mecanismos de exercício de poder.
Os mecanismos de manipulação podem também envolver a disponibilização de bens e serviços (por exemplo, meios de transporte, meios de comunicação e infra-estruturas às elites e lideranças políticas e sociais). Eles são usados como elementos de charme e factor persuasor e aliciador.
Por isso, estas entidades podem também estar evolvidas em campanhas políticas e associar-se a movimentos religiosos, culturais e económicos, estabelecendo relações de cumplicidade e simbiose.
Quanto maior for a fraqueza do Estado e do sector público em geral, incluindo os regimes legais e institucionais, maior será a permeabilidade do sistema a estas práticas.
Manipulação da comunidade internacional
O grande “prémio” dos “barões da miséria” é a solidariedade (entenda-se doações) da comunidade internacional. A sua devoção às causas humanitárias torna a comunidade internacional particularmente susceptível à retórica assistencialista.
Na hora de buscar soluções aceitáveis e transparentes para a canalização de apoios humanitários, os mecanismos estatais, em algumas situações, apresentam-se excessivamente burocráticos, corruptos, ineficientes e ineficazes. Os barões da miséria podem, assim, apresentar-se como a alternativa mais viável.
Caminhos e soluções
A melhor forma de garantir o aprovisionamento das populações em situação de crise é ter, simultaneamente, as perspectivas de curto, médio e longo prazos.
A curto prazo, importa garantir a assistência imediata das populações em risco para impedir a perda de vidas e o agravamento dos índices de vulnerabilidade. Algumas falhas podem ser consideradas toleráveis, em função da necessidade de agir com celeridade. Todas as forças vivas que mostrem predisposição para colaborar podem ser enquadradas na estratégia, respondendo às necessidades de salvaguarda da integridade das pessoas, abastecimento em água potável, disponibilização de cuidados básicos de saúde, provisão de alimentos básicos, garantia de condições de alojamento, distribuição de agasalho, etc.
A médio prazo, importa começar a pensar em definir prioridades, estabelecer metas e prazos, revitalizar ou estabelecer mecanismos de governança e introduzir medidas de transição da emergência e assistência humanitária para o restabelecimento dos tecidos económicos e sociais, na perspectiva do desenvolvimento.
Sempre que possível, a liderança do Estado deve ser restabelecida e fortalecida, devendo se criar mecanismos efectivos de diálogo entre os diferentes actores e entidades envolvidas, garantindo transparência e eficiência.
A longo prazo, a fixação deve estar na eliminação das causas primárias da crise, na criação de condições de integração económica e social e na promoção do auto-sustento. Em contextos rurais, a produção agrícola oferece a possibilidade de aumentar a disponibilidade de alimentos básicos como também de integração na economia e melhoria dos rendimentos. Intervenções na cadeia de valor dos mesmos (transporte, processamento e comercialização) podem expandir as possibilidades e oportunidades de combate à pobreza.
Tudo isso deve ser enquadrada num clima de estabilidade e numa solução política adequada. Só assim toda a abordagem de combate à miséria estará munida dos elementos essenciais da dignidade humana e isenta de oportunismos absurdos.

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