quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Os contornos do medo em “7 estórias” (1)


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O medo é mais forte do que o amor
Tupac
“Todo o amor que eu dei não significou nada quando o medo chegou”, disse, Tupac, numa entrevista dirigida por Ken Peters, quando o rapper encontrava-se a cumprir pena na prisão lá vão muitos anos. Com uma dor na alma a transparecer pelos olhos, Shakur frisou, nessa comunicação ao mundo, que “o medo é mais forte do que o amor”, uma ideia também defendida por Maquiavel, em “O Príncipe”, ao sugerir-nos que um grande líder não é aquele que é amado pelo seu povo, mas o que é temido – pois nisso vive o respeito. Verdade ou não, o medo move meio mundo, fazendo com que um Trotsky, por um exemplo, vá parar ao México por receio a Stalin, e que Dhlakama, no nosso contexto, se desloque a uma parte incerta, por não querer perder a democracia. Mas, cá entre nós, o que é isso de democracia? Bem, para George Orwell “a democracia é apenas um nome educado para a ditadura”, daí que os grandes democratas, deduzimos, podem ser um grande perigo para a própria democracia. Poderíamos remar a maré por esta via, que terminaríamos a falar da tensão ou diálogo político. Mas não. Aqui impõem-se um atalho que nos conduz ao medo enquanto sensação fictícia retratada na obra “7 estórias sobre a origem de quem come quem”, de Celso Cossa. Quem sabe, a partir desse plano, encontraremos algumas respostas para o presente…
“7 estórias sobre a origem de quem come quem” é um livro destinado, sobretudo, ao público infanto-juvenil. E, de facto, é constituído por sete fábulas, as quais, em conjunto, vão testemunhado, de forma didáctica e bem inventada, como a cadeia alimentar surgiu. É uma proposta apropriada, com boa habilidade de atiçar a curiosidade do leitor e de o envolver numa ladainha doce, mas sem cárie.
A partir das relações entre os animais, Celso Cossa, como um autor que escreve para crianças, cumpre nesta obra a missão de engendrar uma sucessão de cenários prontos a divertir na mesma onda que conduzem o leitor ao questionamento sobre realidades aparentemente banais. Essas mesmas realidades, com as quais convivemos sem nunca termos ousado questionar ganham uma dimensão narrativa peculiar, pois contribuem para dirigirmos o olhar a nós e às circunstâncias à volta com uma percepção mais microscópica. Nisso descobrimos vários nada que fazem um todo ter mais sentido. Afinal, a mente humana existe para dar razão às coisas e, com isso, garantir a evolução da natureza.
Através de sete estórias, aparentemente inofensivas, Cossa retrata como é que as hostilidades emergem num contexto de convivência saudável, de tal ordem que uns se põem a matar aos outros para, em função disso, alimentar a fome, a traição, a cobardia, a malandrice, a ganância, a vingança e a intolerância. Muitas vezes, o que move tudo isso é o medo, num contexto em que as paredes do amor cedem todas, pela incapacidade de gerar consensos e fortalecer a irmandade. Por exemplo, no segundo texto da obra, “O clã de hienas manchadas e a dona Bem-atriz”, a traição ganha proporções incontroláveis, que fazem com que a humana Bem-atriz, depois de se envolver com um amante na sua casa, veja-se obrigada a mendigar ajuda às amigas hienas, com as quais convivia num gesto de solidariedade. Bem-atriz, ao aperceber-se de que o marido poderia descobrir a traição, foi pedir que as hienas a ajudasse a desfazer-se do corpo do amante que morrera sufocado no armário. As hienas até recusaram-se, mas ao pensarem na possibilidade de perderem as refeições diárias, proporcionadas por Bem-atriz, cederam e, pela primeira vez, comeram um corpo humano, por não verem outra forma de se livrar do mesmo.

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