sábado, 26 de novembro de 2016

As oito profecias de António Costa

Um ano de Governo. As oito profecias de António Costa

26 Novembro 2016
Há um ano, na tomada de posse, António Costa assumia oficialmente o cargo de primeiro-ministro, prometendo um tempo novo na política e na economia. Será que leu bem as estrelas?
Não estava escrito nas estrelas. Na verdade, nunca ninguém tinha tentado algo semelhante em São Bento. Mesmo alguns dos mais fervorosos adeptos da atual solução política, como o deputado socialista João Galamba, tinham alguma dificuldade em acreditar que a maioria de esquerda fosse possível. Há um ano, no dia de tomada de posse do novo Executivo, o futuro secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, repetia um mantra: “Vai tudo correr bem”. Não se pode dizer que a confiança excessiva abundasse mesmo entre socialistas.
António Costa, sabe-se hoje, tinha preparado o terreno antes das eleições, com conversas informais com vários e destacados comunistas. Viu o cenário antes de todos: era possível formar Governo mesmo sem uma maioria socialista ou, no limite, perdendo as eleições legislativas. Bastava convencer meio Partido Socialista, Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e Heloísa Apolónia a darem-lhe a mão. Visto à distância de um ano, e tendo em perspetiva o que aconteceu nestes 12 meses, tudo pareceu relativamente mais simples. Não foi. A primeira profecia do líder socialista, talvez a mais difícil, concretizava-se com a tomada de posse do XXI Governo, a 26 de novembro de 2015, o primeiro com apoio do PCP e do Bloco de Esquerda.
O feito de António Costa valer-lhe-ia fama internacional, com o jornal espanhol El País a colar-lhe o epíteto de “O Grande Ilusionista“. Em Portugal, e perante o olhar atento e desconfiado dos responsáveis europeus, o secretário-geral do PS conseguia derrotar Pedro Passos Coelho e Paulo Portas. Os líderes da PàF só na reta final da campanha perceberam verdadeiramente a dimensão do trunfo que o socialista estava disposto a jogar. António Costa obrigava Cavaco Silva a aceitar uma solução que, assumidamente, não considerava positiva para o país. Pelo caminho, ainda evitou a tentativa fugaz de levantamento interno, liderada por Francisco Assis.
Naquele dia, no discurso que proferiu no Palácio da Ajuda, o já empossado primeiro-ministro português tentava antecipar o futuro daquele Governo. Olhando pelo retrovisor, o homem que diz que põe vacas a voar nos céus, metáfora para tornar possível o impossível, dono de um “otimismo crónico e às vezes ligeiramente irritante”, como diria mais tarde Marcelo Rebelo de Sousa, parece ter também um dom profético: de uma forma ou de outra, as suas profecias foram-se concretizando. Mas não sem uns quantos acidentes de percurso.
Eis oitos frases do discurso de tomada de posse de António Costa e depois o que veio a verificar-se:

1- A sombra da Europa: “Não ignoro e não minimizo as muitas dificuldades que temos pela frente”

António Costa sabia que a missão ia ser difícil. Avançou para as legislativas prometendo virar a página da austeridade e colocar o país, finalmente, nos trilhos do crescimento económico. Portugal tinha tido a sua saída limpa do programa da troika, mas a economia e o setor financeiro estavam (e estão) fragilizados. Lá longe, em Bruxelas, os responsáveis não escondiam a desconfiança e iam lançando avisos sérios à navegação socialista. Afinal, Bloco e PCP defendiam (e defendem) a reversão das regras orçamentais. Quando a confiança é tudo, Costa sabe que uma escorregadela pode ser fatal. Esse fantasma esteve também no discurso de tomada de posse do socialista:
"Não ignoro, e portanto não minimizo, as muitas dificuldades que temos pela frente, nem as restrições que limitam o nosso leque de opções e condicionarão a nossa ação."
António Costa no discurso de tomada de posse
Uma das maiores expectativas em torno de António Costa era perceber como é que o primeiro-ministro conseguiria impor o seu programa político, gerir a pressão de Bruxelas, respeitar a promessa de uma “leitura inteligente das regras orçamentais europeias” e acomodar as exigências de Bloco de Esquerda e PCP. Era a quadratura do círculo de António Costa.
O líder socialista foi fazendo esse caminho e aproveitando o cenário favorável: os efeitos da “bazuca” de Mario Draghi para compra de dívida prolongaram-se no tempo; o processo eleitoral espanhol, com o eurocético Podemos no centro da equação, arrastou-se durante meses; o Brexit apanhou de surpresa meia Europa; e o reforço dos movimentos de extrema-direita inspirava (e inspira) cautelas.
Neste contexto, António Costa conseguiu a bênção dos responsáveis europeus: devolveu rendimentos, descongelou pensões, evitou a suspensão dos fundos estruturais, alcançou uma quase garantida saída do Procedimento por Défice Excessivo e, cereja no topo do bolo, a recapitalização da Caixa Geral de Depósitos não foi considerada uma ajuda de Estado.
Não sem uns cartões amarelos pelo meio, é certo. Basta lembrar que, em fevereiro, Bruxelas devolveu o esboço do primeiro Orçamento do Estado e que a aplicação de sanções chegou a ser um cenário muito provável. Quando se esperava uma advertência de Bruxelas, António Costa termina o seu primeiro ano à frente do Executivo com o título de “melhor aluno da Europa”, segundo as palavras do próprio comissário europeu dos Assuntos Económicos, Pierre Moscovici. Tudo somado, a sombra da Europa é hoje menos negra para o Governo português do que todos imaginavam há um ano.

2- O Governo da estabilidade: “Que não fique a mínima dúvida: este é um governo confiante”

As palavras de Maria Antónia Palla, jornalista e mãe de António Costa, no dia da tomada de posse, resumiam bem toda a expectativa criada em torno da nova solução governativa: “Que corra tudo bem e que seja feliz. E nós também”, soltava à chegada ao Palácio da Ajuda. Era o melhor que mesmo os mais confiantes na capacidade de gestão de António Costa podiam desejar. Ninguém sabia exatamente se esta solução ia, de facto, vingar.
De resto, os dias que antecederam a assinatura das posições conjuntas entre socialistas e os restantes três partidos, foram sendo acompanhados com ceticismo. As notícias sobre os avanços e recuos das negociações foram uma constante. Formalizados os acordos à esquerda, os socialistas precisavam de convencer tudo e todos de que este era um Governo em que podiam mesmo confiar. E António Costa carregou na tinta:
"Que não fique a mínima dúvida: este é um governo confiante. Confiante, antes de mais, no seu projeto mobilizador do País e na solidariedade da maioria parlamentar que lhe manifestou apoio e lhe confere inteira legitimidade."
António Costa no discurso de tomada de posse
A verdade é que, mesmo com todos os episódios de tensão entre os parceiros parlamentares — logo à cabeça, o processo de resolução do Banif com a aprovação do Orçamento Retificativo, que obrigou o PS a apoiar-se no PSD -, a “geringonça” dura, resiliente.
Nem toda a gente imaginava que o Governo durasse. De Belém, onde antes morava Cavaco Silva — o mesmo que dissera que uma solução de esquerdas seria “claramente inconsistente” e “poderia ter consequências financeiras, económicas e sociais mais graves” –, veio o selo oficial de estabilidade: muitos duvidavam da coesão desta aliança, mas António Costa conseguiu cumprir a missão, deixou claro Marcelo Rebelo de Sousa.
“Conseguimos garantir a estabilidade política que se considerava questionável. Estabilidade na existência do Governo. Estabilidade nas relações entre o Governo e a Assembleia da República, com uma prerrogativa particularmente complexa e nunca ensaiada em Portugal, na cooperação institucional entre Governo e Presidência da República”, sublinhou o Presidente da República num discurso esta semana, a antecipar o primeiro aniversário da tomada de posse do primeiro-ministro.
Concretizava-se outra profecia de Costa: contra todas as evidências, a solução de Governo sobreviveu para lá do primeiro e segundo orçamentos. Próxima meta? Autárquicas de 2017, as mesmas que Marcelo sugeriu que iam marcar um novo ciclo político.

3- Os entendimentos permanentes: “[Exige] esforço adicional de diálogo e compromisso”

Bloquistas e comunistas aceitaram dar a mão aos socialistas com base numa premissa muito simples: era preciso garantir a devolução de rendimentos, salários e direitos sociais. E assim foi. António Costa e Mário Centeno foram obrigados a correr mais depressa do que inicialmente queriam e ajustaram o programa. Da versão original já pouco resta.
Ao mesmo tempo, Bloco de Esquerda e PCP tiveram de seguir as regras de um jogo que, no que dependesse deles, nunca aceitariam jogar: durante um ano aceitaram os constrangimentos impostos pela União Europeia e as regras de consolidação orçamental, notando, vezes e vezes sem conta, as limitações e constrangimentos do programa de Governo socialista.

"A todos [se] exige um esforço adicional de diálogo e compromisso, de modo a que seja possível assegurar um governo coerente, estável e duradouro."
António Costa no discurso de tomada de posse
A decisão de bloquistas e comunistas teve um custo político. Enquanto fizerem parte desta solução, Bloco de Esquerda e (sobretudo) PCP terão de guardar na gaveta algumas das bandeiras que têm marcado a intervenção pública dos dois partidos. À cabeça, as mais óbvias: a nacionalização de vários setores estratégicos do país, a saída do euro e da NATO. Nos 12 meses que passaram, PS, Bloco de Esquerda, PCP e PEV conseguiram manter este equilíbrio estreito. Costa, “O Grande Ilusionista”, conseguira novamente.
Agora, bloquistas e comunistas vão exigindo mais. A estratégia de devolução de rendimentos e de direitos sociais parece esgotada e é preciso ir mais longe, rompendo com as “amarras” impostas por Bruxelas. O “monstro” da dívida é demasiado evidente para desaparecer através de um truque de magia, sugerem Catarina Martins e Jerónimo de Sousa. E esta profecia Costa não acautelou.

4- O ciclo do crescimento: “Este Governo prosseguirá através da exigente trajetória de redução do défice orçamental e da dívida pública no ciclo desta legislatura”

No dia da tomada de posse prometeu acabar com a austeridade com esta frase: “O aumento e proteção do rendimento disponível das famílias, o alívio da asfixia fiscal da classe média, o desendividamento e condições de investimento das empresas, o combate à pobreza, a garantia de serviços e bens públicos essenciais são necessidades do tempo da urgência social e económica, condição de relançamento da economia e da criação de emprego”.
O primeiro-ministro conseguiu ir acabando com uma parte da austeridade, com a redução gradual da sobretaxa, concluiu o processo de devolução dos salários aos funcionários públicos iniciado no Governo anterior e conseguiu que empregos fossem criados: é ouvir os ministros a repetirem que há mais 90 mil novos empregos. O Executivo socialista ainda aumentou pensões e o salário o mínimo. Ainda assim, espera garantir o menor défice da história da democracia portuguesa, como António Costa gosta de dizer.
"(...) este Governo prosseguirá através da exigente trajetória de redução do défice orçamental e da dívida pública no ciclo desta Legislatura (...) o objetivo essencial de qualquer boa governação de assegurar finanças públicas equilibradas"
António Costa no discurso de tomada de posse
Nem tudo foram boas notícias. Apesar de ter visto nas sombras o que aconteceria à economia portuguesa, não se pode dizer que tenha acertado exatamente no diagnóstico. Quando apresentou a sua proposta de Orçamento do Estado para 2016 o Governo previa um crescimento económico de 1,8% do PIB, que seria uma aceleração face aos 1,5% que se verificaram em 2015. Agora, a previsão é de 1,2% em 2016 e 1,5% para 2017. Muito longe dos 3% em 2017 com que a equipa liderada por Mário Centeno chegou a imaginar.
E o que tem ajudado a mover o motor económico do Governo socialista? Em grande parte, aquela que era a principal aposta do anterior Executivo — o mercado externo. Apesar de todos os receios — Brexit, crise nos mercados angolanos e brasileiros, estagnação das economias europeias — as exportações têm desempenhado um papel importante na recuperação económica portuguesa. Em contrapartida, o investimento apresentou os piores números desde 2013.
Noutro plano, a criação de emprego e a diminuição de desemprego tornaram-se a grande linha de comunicação Governo. E os números parecem dar-lhe razão: Portugal terminou o terceiro trimestre com uma taxa de desemprego de 10,5%, menos 0,3 pontos percentuais face ao trimestre anterior e 1,4 pontos em relação ao trimestre homólogo, e mais 59 mil empregos criados em relação ao período anterior.
No entanto, o facto de ter acelerado a devolução de rendimentos e o aumento de salários e pensões obrigou António Costa a ajustar a máquina. Apostou numa estratégia de aumento de impostos indiretos, para compensar a carga fiscal sobre o trabalho, e aceitou que o ministro das Finanças apostasse a execução orçamental em cativações.
Mas a pior notícia para o primeiro-ministro socialista, foi o aumento da dívida pública. O “monstro”, como lhe chamou o Bloco, continua a crescer. No terceiro trimestre, bateu um novo recorde em alta ao atingir 133,1% do PIB. Os investimentos estruturais de que o país precisa para inverter o ciclo é que continuam por cumprir, vão ensaiando em coro bloquistas e comunistas.
"O aumento e proteção do rendimento disponível das famílias, o alívio da asfixia fiscal da classe média, o desendividamento e condições de investimento das empresas, o combate à pobreza, a garantia de serviços e bens públicos essenciais são necessidades do tempo da urgência social e económica, condição de relançamento da economia e da criação de emprego."
António Costa no discurso de tomada de posse

5- Prioridades: “Daí a centralidade atribuída à Cultura, à Ciência e à Educação como pilares da sociedade do Conhecimento. (…) Ou a dimensão transversal da Modernização Administrativa, fator-chave de desenvolvimento.

No discurso de tomada de posse, António Costa prometeu colocar a Educação, a Cultura e a Ciência no centro das políticas do novo Governo. Sempre com uma ideia no horizonte: a modernização administrativa, o fator-chave do desenvolvimento.
Os primeiros passos foram dados logo no Orçamento para 2016. Mas seria Orçamento do Estado para 2017 a marcar essa viragem: o Orçamento para a Cultura aumento cerca de 30 milhões face a 2016, embora fique ainda muito longe de corresponder a 1% do PIB como PCP e BE sempre defenderam. Mais: o Orçamento para o programa de ciência e tecnologia e ensino superior aumentou 75 milhões de euros face a 2016, ainda que o próprio ministro da Ciência e Tecnologia tenha vindo a admite que ficava “aquém” do que o setor precisava.
Finalmente, o aumento na Educação, um tema que motivou uma intensa troca de argumentos entre Governo socialista e a oposição, como explicava aqui o Observador. Na prática, o Governo anunciou um reforço de quase 180 milhões para o setor, referindo-se à dotação prevista para 2017, um total de 6.022,7 milhões de euros. No entanto, como houve uma derrapagem em 2016, a Educação deve gastar já este ano 6.192,2 milhões de euros, um valor superior à dotação prevista para 2017. O que implica que, não havendo uma derrapagem (cenário pouco provável), haveria uma redução no Orçamento para a Educação.
Os argumentos do Governo são diferentes: “Depois de anos sucessivos de redução do orçamento inicial da Educação, com uma diminuição de 440 milhões de euros entre 2013 e 2015, em 2016 e 2017 este orçamento tem um reforço significativo de 483 milhões de euros”.
Acompanhando este esforço, o líder socialista avançou com o Simplex 2016, um programa com 255 medidas com o objetivo de conduzir uma verdadeira reforma do Estado — o tal projeto que daria o mote a António Costa para entregar uma vaca voadora a Maria Manuel Leitão Marques, ministra da Modernização Administrativa. Em seis meses, o Governo garante ter já implementado 26 medidas e espera, até maio de 2017, concluir as restantes 213. E já existe um novo Simplex na calha, prova de que António Costa está disposto a levar esta profecia até ao fim.

6- A queda do muro: “A democracia portuguesa ficou demasiado tempo refém de exclusões de facto”

A nova solução política trouxe o fim de um ciclo: em 40 anos de democracia, nunca foi possível desenhar uma maioria à esquerda. António Costa, Catarina Martins, Jerónimo de Sousa e Heloísa Apolónia puseram fim ao velho arco de governação e atiraram para a oposição sociais-democratas e democratas-cristãos. Foi a queda do muro que António Costa previu e preparou meses antes das eleições, que reconfigurou o espectro partidário.
"A democracia portuguesa ficou demasiado tempo refém de exclusões de facto, que limitavam o leque de soluções políticas possíveis e defraudavam o sentido do voto de boa parte dos nossos concidadãos. Através de um processo de diálogo político transparente e democrático, formou-se uma maioria estável que assegura, na perspetiva da legislatura, o suporte parlamentar duradouro a um Governo coerente."
António Costa no discurso de tomada de posse
No Bloco de Esquerda, o período foi de reunificação. O partido que ninguém acreditava ser capaz de sobreviver às eleições legislativas, tinha agora um papel decisivo nos destinos do país. Catarina Martins, que em 2014 tinha sido desafiada por Pedro Filipe Soares, tem agora a anterior oposição interna ao seu lado. A convenção bloquista, em junho, marcou oficialmente o início da era pós-Louçã.
Do PCP, onde todas decisões são tomadas à porta fechada, vinham rumores de contestação a Jerónimo de Sousa. Depois de uma decisão histórica de apoiar um Governo socialista, o secretário-geral comunista prepara-se para enfrentar o congresso de dezembro como líder incontestado.
À direita, Paulo Portas percebeu que António Costa não ia quebrar e deu lugar a uma nova liderança. Assunção Cristas pegou na batuta e tem procurado gerir uma herança difícil: defender a herança do anterior Governo, procurando ao mesmo uma identidade própria que vinque as diferenças entre PSD e CDS.
Pedro Passos Coelho, por sua vez, manteve-se à frente dos destinos do PSD, agarrando-se à ideia de que enfrentaria novamente António Costa nas urnas. Vestiu a armadura de líder da oposição e pagou para ver. Mas eleições não chegaram, pelo menos ao fim de um ano: Costa mantém-se como primeiro-ministro e a subir nas sondagens, aproximando-se em alguns estudos da maioria absoluta.

7- O novo quadro político: “O Governo provém da Assembleia da República”

Ditas naquele dia, a 26 de novembro de 2015, as palavras de António Costa tinham um destinatário muito concreto: Aníbal Cavaco Silva. O então Presidente da República nunca escondeu a resistência em aceitar a solução proposta pelo líder socialista e fez questão de o expressar várias vezes, incluindo no dia de tomada de posse do novo Governo — foi o primeiro round aceso entre os dois.
Com Cavaco Silva cada vez mais isolado em Belém, António Costa sabia que a chave do poder estava no Parlamento, onde Bloco de Esquerda, PCP e Verdes há muito que se haviam incompatibilizado institucionalmente com o Chefe de Estado. E fez questão de o dizer, em jeito promessa: a partir de agora, o poder pertence à Assembleia.
"O Governo provém da Assembleia da República - e é perante a Assembleia que responde politicamente."
António Costa no discurso de tomada de posse
A vitória de Marcelo Rebelo de Sousa nas eleições presidenciais de 2016 alterou as regras de jogo. A gozar de uma popularidade imensa que Cavaco Silva já não tinha, equipado com todos os poderes presidenciais, Marcelo entrava no jogo como personagem coadjuvante mas interventiva, voltando a interferir nos pratos da balança: o poder não é apenas do Parlamento, mas também passa pelo Presidente.
O primeiro-ministro passava a ter em Belém um jogador que antecipava cenários e que não hesitava em usar os seus instrumentos institucionais — e outros — para condicionar o Governo.

8- O tempo da união: “Não é altura de salgar as feridas, mas sim de sará-las”

Apesar do apelo deixado por António Costa naquele dia de tomada de posse, nunca como nesta legislatura houve dois blocos tão demarcados. Esquerda de um lado, direita do outro, os argumentos são repetidos ad nauseam: Este Governo vai provocar um novo resgate, é o tom de argumentos do PSD e do CDS; “A cartilha neoliberal do vosso Governo destruiu o país, respondem os socialistas, apoiados pelas bancadas mais à esquerda; “Herdámos a herança de José Sócrates”, contrapõem sociais-democratas e democratas-cristãos, debate atrás de debate.
Se houve profecia em que António Costa falhou foi esta. Pedro Passos Coelho olhou as estrelas, vestiu o fato de “profeta da desgraça” e previu o desastre do Governo. “Vem aí o diabo”, terá sugerido o líder do PSD. Mas ele não veio. Os socialistas responderam com um pedidos de exorcismo. “Passos Coelho está tomado pelo diabo”, ironizou Carlos César, presidente e líder parlamentar do PS, colocando álcool nas feridas por sarar.
"Este é o tempo da reunião. Não é de crispação que Portugal carece, mas sim de serenidade. Não é altura de salgar as feridas, mas sim de sará-las. O bom conselheiro desta hora não é o despeito, mas a determinação em mobilizar as vontades para vencermos os desafios que temos pela frente."
António Costa no discurso de tomada de posse
Também não parece muito provável que os próximos meses confirmem a profecia de António Costa: os tempos não são dados a sarar de feridas. PSD (e CDS) continuarão a acusar os socialistas de arrogância democrática e de se terem vendido à extrema-esquerda. Já o PS deve continuar a insistir na tese de que sociais-democratas (e democratas-cristãos) estão despeitados. A verdade estará algures no meio. O futuro, esse, fica para os verdadeiros profetas.

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